Streaming não deve matar a mídia esportiva, mas será desafio para clubes

Sem profecia, sem catástrofe; quem monitora e se prepara tem mais chance de se adaptar às mudanças

Cesar Grafietti

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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Meados dos anos 2000 recebi uma ligação de um gestor de fundo de investimentos. Eu era o responsável por acompanhar o setor de Telecom na área de crédito do Itaú BBA, e ele começou a falar, incomodado: “O VOIP (ligações telefônicas via internet) vai acabar com as operadoras de Telecom!”. E falava das maravilhas do VOIP, que Skype e Vonage acabariam com as demais operadoras. Ponderei uma série de coisas, mas ele desligou assustado.

O resto é história, e o VOIP não acabou com as grandes operadoras, sendo incorporado por elas, mas gerou impactos em preços e na forma como nos comunicamos. O problema das profecias catastrofistas é que elas tratam sempre de terra arrasada, e só lembramos dos profetas que acertaram, pois os que erraram permanecem em silêncio e esquecidos.

Lembrei dessa história para falar sobre o “futuro” das transmissões esportivas, o Streaming, ou OTT (Over The Top) para os íntimos, e que nada mais é que a oferta de serviços de vídeos e conteúdos em redes de internet banda larga. Se isto te lembrou o Netflix, acertou no exemplo.

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A profecia do momento é que o Streaming vai revolucionar as transmissões esportivas, acabando com o domínio das mídias “tradicionais” e “democratizando” as transmissões, e consequentemente o esporte. Vamos explorar um pouco o tema para ver que nem tanto, nem tão pouco.

Como é hoje

O grande valor do esporte na TV é o fato de ser ao vivo e mexer com a emoção das pessoas. Por isso os valores dos direitos de transmissões das grandes ligas esportivas mundiais são tão grandes.

Competição Valor Anual pelos Direitos de Transmissão
NFL US$ 8,2 bi
Premier League (Futebol inglês) Local + Int’l US$ 4,0 bi
NBA US$ 3,9 bi
MLB (Baseball) US$ 3,5 bi
Champions League US$ 2,8 bi

Fonte: Sports Business Consulting

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Os direitos de transmissões esportivas movimentaram US$ 49,5 bilhões em 2018 e estima-se que podem chegar a US$ 53,3 bilhões em 2022.

Quem paga por esses direitos costumam ser grandes empresas de mídia, como a Globo, Sky (Europa), ESPN, Fox. O retorno por investimentos tão elevados se dá através da venda de publicidade ao longo dos jogos ou pela cobrança por acessar canais de jogos (o chamado Pay-Per-View).

O que está por vir

A profecia diz que os canais de streaming tomarão o lugar dos grandes grupos de mídia nas transmissões esportivas. Para justificá-la dizem que ao longo do tempo o perfil do telespectador está mudando, que os mais jovens preferem transmissões com flexibilidade, que permitam engajamento e que possibilitem preços mais baixos. Vamos então tratar destes pontos, mas antes precisamos entender quem são os canais de streaming, pois há mais de um modelo em ação e simplificaremos a explicação em 3 grandes:

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Modelo Quem faz Porque
Grandes Mídias Facebook, Amazon, Twitter, Youtube Já são mainstream hoje. Não há nada de revolucionário, apenas o objetivo de continuar ocupando espaço das chamadas “mídias tradicionais”. Precisam agregar valor a seus modelos de streaming (Amazon Prime), num momento em que a disputa se acirra (Disney +, Netflix, Apple TV+) e/ou buscam fluxo de pessoas nas suas redes, podem aumentar receita com publicidade e trazendo mais um grande captador de dados para seus modelos.
Grandes Apostas DAZN São os novos canais de streaming exclusivos de esportes, as “Netflix do esporte”. A ideia é seguir o modelo, cobrando mensalidades para que o assinante tenha a cesso ao acerve de jogos e competições. Claramente entram na disputa pelas competições mais importantes, como as ligas europeias de futebol, a NFL e MMA.
Nicho NSports (Brasil), MyCujoo São canais de streaming mas voltados a competições cujo interesse é menor por parte das grandes mídias. Não tem na cobrança de assinatura um vínculo necessário, mas eventualmente usam desse expediente. Publicidade é a principal fonte de receitas. O NSports tem várias competições de esportes olímpicos e o campeonato catarinense de futebol.

São estes os players que tentarão desbancar as grandes corporações de mídia, que já se mexem na disputa pela audiência. Todos os grandes detentores de direitos possuem apps onde é possível assistir partidas e programação no celular ou computador, se você for assinante, como nos casos do ESPN+, da SporTV, da SKY na Europa. O Supor Bowl de 2019 teve 5% de sua audiência via streaming, através de app da NBC. Se a questão é meio, então está todo mundo de preparando para a disputa.

Agora, se falarmos de preço, a coisa fica um pouco mais complicada. O assinante do streaming tem a experiência de pagar pouco para acessar muito. Resultado de anos pagando pacotes caros de TV por Assinatura para usar poucos canais. A flexibilidade de assinar apenas o que se quer acaba reduzindo o valor pago. A DAZN e a Amazon entram nessa estratégia, a NSports é ainda mais flexível, pois não cobra assinatura, assim como Facebook, que se apresenta como uma espécie de “TV Aberta”.

Mas há uma questão no futuro, e que impacta o negócio de esporte: os custos de direitos de transmissão são altíssimos, como vimos. Hoje, participando apenas com frações do todo e consequentemente gastando menos que os grandes grupos, os negócios ainda não se justificam financeiramente. Veja os números da DAZN:

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€ milhões dez/17 dez/18 mar/18 mar/19
Receitas 308,3 447,2 138,0 212,3
Custos (318,0) (563,0) (129,6) (198,2)
Despesas (291,5) (503,2) (95,3) (158,5)
Lucro Operacional (301,2) (619,0) (86,9) (144,5)
Lucro Líquido (444,2) (582,6) (99,5) (156,7)
EBITDA (254,4) (517,8) (74,8) (121,8)
Dívida (Bancos+Direitos) 1.336,8 362,9 1.259,8 787,0
PL (279,7) 863,4 (397,7) 692,3
Aumento de Capital 1.725,7 1.246,7
Direitos de Transmissão 3.000,0 5.280,0 3.113,5 5.923,8

Claro que há um aspecto de evolução do negócio. Mas há também um acionista bilionário que coloca dinheiro para ajudar a fechar as contas. Até quando isto se sustenta, não se sabe. Vale o mesmo para os demais negócios, afinal, será que apenas a coleta de dados fechará a conta para o grupo das Grandes Mídias?

Isso num momento em que os direitos de TV de futebol já dão indício de estagnação, vide a redução no preço da Premier League inglesa, no pacote local, que caiu de US$ 6,8 bi para US$ 6,3 bi (cerca de 7,5% de redução). Neste cenário quem deve se preocupar são os donos do negócio, as ligas e clubes, pois talvez terão que enfrentar desafios que hoje parecem distantes, como queda de receitas para se adaptar aos novos públicos.

Uma alternativa que trabalha no campo da flexibilidade e preço é a de fracionar as assinaturas. Segundo estudo da Deltrate, alguns players e assinantes gostariam de poder contratar apenas partes dos jogos, por exemplo, o último quarto de uma partida de basquete, ou os últimos 15 minutos de um jogo de futebol. Mas assim como os canais de streaming pode fazer, qualquer operadora pode. Não estamos falando de tecnologias diferentes, mas de mentalidades diferentes.

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Um aspecto que pode ser favorável aos canais de streaming é a capacidade de criar conteúdo para rechear seus canais, retendo e mantendo os assinantes e usuários em suas bases. Também não é nada que não possa ser feito em qualquer meio já existente. E além do mais, também tem custos, brigando então com a ideia de custos menores no streaming.

Este aspecto dos produtos específicos e que podem ser vistos em qualquer lugar e a qualquer momento é algo que os canais de streaming tem e que as mídias tradicionais precisam buscar. É uma questão da linguagem que vira engajamento.

Alguns movimentos tem sido feitos nesse sentido, pelos próprios detentores dos negócios esportivos, como é o caso da F1 TV, da WTA (Associação de Feminina de Tenistas), FIVB (Vôlei) e mesmo nas ligas americanas, com destaque para a NBA. O risco e o grande desafio é ter conteúdo exclusivo, mas que não compita com os direitos oficiais. A NSports, por exemplo, opera a TV Corinthians, mantendo transmissões de outros esportes, criando e gerindo conteúdo do clube.

Um fato recente e interessante, e que mostra que muito dessa expectativa em relação ao streaming deve ser corretamente ponderada é o fato da DAZN ter entrado na grade de canais da SKY na Itália. O assinante das duas plataformas pode agora ver os jogos do campeonato italiano através de um canal da rede de tv paga. Ou o inimigo mora (no canal) ao lado, ou se não se pode vencê-lo, junte-se a ele. O tempo dirá qual o ditado que melhor se adapta a esta situação.

Agora, imagine que fosse possível um clube brasileiro de futebol operar seu próprio canal de streaming e apresentar suas 19 partidas como mandante no Campeonato Brasileiro. Claro, é uma hipótese, pois a lei hoje não permite a transmissão sem que os dois clubes estejam de acordo. Mas mantemos a premissa apenas para o exercício de quantos assinantes/torcedores o clube precisa ter para atingir um certo valor do que seria sua receita com direitos de TV. Veja:

Receita TV (R$ MM)

75 90 110 125 150 175 200

Número Assinantes (R$ 79,90/Mês)

     78.223      93.867    114.727    130.371    156.446    182.520    208.594
Número Assinantes (R$ 39,90/Mês)    156.642    187.970    229.741    261.069    313.283    365.497

   417.711

Ou seja, para ter R$ 75 milhões anuais de receita o clube precisa ter 78.223 assinantes pagando 12 parcelas mensais de R$ 79,90, ou 156.642 pagando R$ 39,90. Para clubes que vão bem no campeonato esse número parece atingível, mas quando o resultado em campo não vem, o torcedor pode perder o interesse e a receita vai embora. Sem contar uma certa canibalização em relação ao público no estádio, os custos de transmissão, assim como há possível receitas de publicidade que compensem isso. No fim, parece ter riscos que podem ser transferidos para alguém para um terceiro que pague pelo direito integral.

Enfim, o que me parece é que vivemos um processo de mudança importante na forma como os conteúdos esportivos são transmitidos ao público, que a cada nova geração tem demandas, poder aquisitivo e interesses diferentes. Fico com a sensação de que o meio em si será o menos importante, o que se sustentará serão formas de transmissão adaptadas aos novos públicos, seja na ideia de fracionamento, na forma de interação com o torcedor, e na captura de sua atenção.

Assim como o VOIP, que não acabou com as grandes operadoras mas mudou a forma de consumirmos telefonia (de voz para dados), o streaming talvez não mude a relação de forças entre as empresas de mídia, mas altere substancialmente valores que chegam aos clubes e federações, pois as novas gerações parecem querer mais por menos – efeito do modelo Netflix (que está longe de ser brilhante financeiramente, diga-se) – e o que hoje tem cara de oportunidade de incremento de receitas será, na verdade, mais um desafio para as gestões.

Sem profecia, sem catástrofe. Quem monitora e se prepara tem mais chance de se adaptar às mudanças.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti