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O ex-ministro Pedro Malan afirmou com uma frase magistral que “no Brasil até o passado é incerto”. Joaquim Falcão, em capítulo do livro De Belíndia ao Real intitulado “A ambição do Supremo (Tribunal Federal) e o Plano Real”, nos diz que “além de poderoso intérprete da Constituição, o Supremo passou a ser poderoso fazedor dela… Passou [o STF] a deter dois instrumentos “técnico-jurídicos” para mudar a Constituição: (a) interpretar seus artigos e (b) proibir ou permitir novos artigos.
Em certo momento, afirma ainda: “Foi a pressa, poderia ter dito Técio Lins e Silva, que acordou ‘o monstro por dentro’. Despertou a ambição do Supremo”.
Desde então, o assanhamento do Judiciário tem sido esplendoroso. Talvez caso único no planeta, o Judiciário, a seu bel prazer, ordena despesa do Executivo, determina o que pode ou o que não pode ser feito no Executivo, escreve e edita lei como se não existisse Legislativo e descumpre lei votada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo.
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Enfim, expande sua esfera de atuação e subtrai poder dos demais poderes. É receita certa para grave conflito de poderes no futuro.
É bem verdade que, após o “pecado original”, o STF, dentre as esferas do Judiciário, tem sido mais sensato e revelado maior senso de justiça em suas decisões do que as instâncias inferiores.
Mas, como se disse certa vez a respeito de ditaduras, o problema muitas vezes não é o ditador, o general, mas o guardinha da rua.
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Não vou aqui tratar dos infindáveis casos que a meu juízo configuram flagrante excesso de atuação e ameaçam o equilíbrio de poderes, como suspender a nomeação legítima de administradores no âmbito do Executivo, ou a tentativa de retirar o mandato de parlamentar sem que o mesmo sequer fosse réu, ou estabelecer estatuto legal, tendo como justificativa o fato de o Legislativo não ter votado legislação específica sobre certo tema.
Judiciário não pode ser Executivo, nem tampouco Legislativo, seja qual for o pretexto ou argumento.
Nesta e nas próximas duas colunas, me concentrarei apenas na atuação do Judiciário em aspectos ligados à Previdência e Assistência Social.
Tratarei de casos específicos, de decisões de instâncias do Judiciário que em muito ultrapassam o limite constitucional de sua atuação e produzem enorme judicialização e gastos superlativos.
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Nesta coluna, tratarei do adicional de 25% para os aposentados por invalidez que necessitem de cuidados permanentes.
A Lei 8.213 de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social. trata, inicialmente, da finalidade e dos princípios básicos da Previdência Social brasileira e institui o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) – uma burocracia infernal composta por seis representantes do governo federal e nove representantes da sociedade civil, sendo três representantes dos aposentados e pensionistas; três representantes dos trabalhadores em atividade e três representantes dos empregadores (conformação dada pela Lei 8.619/93).
Mas a referida lei define muitas outras coisas, como quem são os segurados, quem são os beneficiários, os requisitos para obtenção de cada benefício e as carências, o cálculo do valor dos benefícios etc.
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Quando trata da Aposentadoria por Invalidez, a lei determina, em seu art. 45, que o valor da aposentadoria por invalidez do segurado que necessitar da assistência permanente de outra pessoa será acrescido de 25%.
Parágrafo único. O acréscimo de que trata este artigo:
a) será devido ainda que o valor da aposentadoria atinja o limite máximo legal;
b) será recalculado quando o benefício que lhe deu origem for reajustado;
c) cessará com a morte do aposentado, não sendo incorporável ao valor da pensão.
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Evidentemente que a lei está mal formulada, pois a necessidade de assistência permanente pode decorrer da invalidez ou simplesmente da idade avançada.
Nada há que ligue essa necessidade exclusivamente à aposentadoria por invalidez. É um evidente erro do legislador.
Mas é assim que está na lei. E leis devem ser respeitadas. Se estão mal escritas, ou não compreendem a diversidade empírica, deve-se mudar a lei. E não desrespeitar a lei ou pior, reescrever a lei sem o devido processo legislativo.
Pois bem, em junho de 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu estender para todos os tipos de aposentadoria o direito ao adicional de 25% sobre o valor do benefício se o segurado comprovar que precisa de ajuda permanente de outra pessoa.
Em poucas palavras, o Judiciário reescreveu o texto legal, como se Legislativo fosse.
Com a decisão do STJ, segurados que recebem aposentadoria por idade ou por tempo de contribuição, por exemplo, também poderiam pedir os 25% a mais no valor do benefício, desde que comprovada a dependência de outra pessoa para atividades diárias.
Destaque-se que, durante o julgamento, a ministra Regina Helena Costa, que havia pedido vista no processo, destacou que a situação de vulnerabilidade e necessidade de auxílio permanente pode acontecer com qualquer segurado do INSS.
E então vem a pérola: “Não podemos deixar essas pessoas sem amparo”, afirmou ela.
Ora, se tem agenda e muita “preocupação social”, é simples. Filie-se a um partido, obtenha a vaga, coloque-se como candidata, ganhe o voto dos eleitores, apresente uma proposta de lei e a faça aprovar no Congresso.
Isso vale para os demais juízes que tomaram tal decisão. Isso não é aplicar a lei. É escrever um novo artigo na lei. E, em uma democracia como a nossa, essa tarefa é reservada ao Legislativo.
Essa simples decisão (transgressão) custaria aos cofres públicos R$ 7,15 bilhões apenas no primeiro ano. Em dez anos, o aumento de despesa poderia atingir R$ 90 bilhões, mais de 10% da economia obtida com a aprovação da Emenda 103/19.
E mais: uma vez entendido que esse é um direito de qualquer aposentado, servidores públicos que ganham R$ 20 mil, R$ 30 mil ou valores ainda maiores poderiam, desde que necessitados de ajuda permanente, requerer o mesmo benefício, por uma questão de isonomia. O rombo poderia ser ainda maior.
Em algumas poucas horas, um punhado de magistrados pôs por terra o que centenas de parlamentares, legitimados por dezenas de milhões de votos, demorou meses para deliberar.
A AGU recorreu ao Supremo e, em março de 2019, a Primeira Turma do STF aceitou os argumentos do governo e mandou suspender as ações dessa natureza em todas as instâncias da Justiça.
A decisão do STF vale até que o caso seja analisado de forma definitiva pela própria Corte. O ministro-relator declarou: “Em termos de repercussão econômica, a informação do Ministério da Fazenda é no sentido de que essa utilização imoderada e excepcional leva a um benefício de R$ 7,15 bilhões por ano num ano em que se discute reforma da Previdência, em que se antevê a dificuldade da Previdência. Então realmente essa benesse judicial me pareceu extremamente exagerada”.
Para mim, há duas coisas surpreendentes: (1) se a benesse fosse pequenininha, estaria tudo bem e (2) que ninguém se perguntou se pode o Judiciário escrever um novo artigo na lei, ultrajando o Legislativo e quebrando o equilíbrio de poderes.
Na próxima coluna, tratarei da interpretação elástica do conceito de pobreza para concessão do BPC. Boa passagem de ano e até lá.