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Partindo em um voo de uma companhia aérea de baixo custo, por R$ 350, Joachim Sauer, um professor de química quântica em uma universidade alemã, chegou a Nápoles para curtir o feriado de Páscoa.
Sua esposa havia chegado cerca de 4h antes, em um avião próprio, um A340, da força aérea alemã. Afinal, a esposa de Sauer cumpre a função de primeira-ministra da Alemanha.
Sauer é o que no Brasil se chamaria de “mão de vaca”, um poupador compulsivo, enquanto a legislação alemã, que obriga o marido da chanceler Angela Merkel a pagar até 10 vezes mais para viajar junto da esposa no avião exclusivo, o que poderíamos chamar se “utopia”.
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A notícia foi vinculada em parte da mídia internacional, mas ganhou uma repercussão quase nula na própria Alemanha, afinal, é a lei.
Casos deste tipo também não chegam a ser novidade em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, Michelle Obama contou como era a vida na Casa Branca.
A residência oficial do presidente americano disponibiliza funcionários para atender o casal, incluindo chefs de cozinha prontos para preparar qualquer refeição desejada. No final, claro, o presidente paga a conta da cozinha, afinal, não existe almoço grátis.
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Também saem do bolso do presidente americano os custos de hospedagens em férias privadas, festas e recepções privadas dentro ou fora da Casa Branca, e claro, custos com advogados de defesa em eventuais processos.
Como Bill Clinton declarou em 2018, ao término do seu mandato de 8 anos, ele estava devendo US$ 16 milhões à Casa Branca, em boa parte graças aos custos com os advogados que o defenderam em processos privados durante o mandato, como o escândalo Whitegate.
Descendo um pouco mais ao sul e chegando ao Brasil, as manchetes ganham uma composição diferente.
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Em 2019, por exemplo, tivemos um recorde pouco falado na época. Nunca antes ninguém havia utilizado tanto os aviões da Força Aérea quanto Rodrigo Maia.
Maia viajou nos jatinhos da FAB 250 vezes, ou 16 vezes na média mensal e em 8 ocasiões a mais do que o recorde anterior, de Alexandre Padilha, ministro da Saúde que em 2012 havia voado 242 vezes de carona com a Força Aérea.
Ao todo, Rodrigo Maia levou junto outros 2300 convidados de carona, e contribui para os custos da Força aérea com combustível e manutenção de aeronaves.
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Ministros do governo também voaram 1060 vezes em 2019, sem qualquer preconceito com caronas, claro.
O custo de tudo isso não está exposto de maneira individual mas, na soma, como conta uma reportagem da rádio CBN, foram R$ 180 milhões com custos no ano de 2017, a título de exemplo.
As confusões entre público e privado também chegam a outras esferas do governo. Reportagem do jornal Valor Econômico de 2020 mostra que funcionários públicos embolsaram 1 bilhão de milhas em passagens aéreas compradas pelo governo.
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Na Suécia, escândalo similar levou um deputado a renunciar, após acusações de que ele teria utilizado milhas de viagens oficiais em proveito próprio.
Da parte dos chefes de Estado, os exemplos também não são nada modestos.
Em 2019, Bolsonaro chegou a chamar de “pergunta idiota”, o questionamento de um repórter sobre o uso de helicópteros da FAB para levar parentes seus ao casamento de seu filho.
Poucos anos antes, foi a vez de Dilma Rousseff estampar manchetes também envolvendo uso de helicópteros.
Para cumprir um trajeto entre o Alvorada e a base aérea, a presidente evitava deslocamento por carro que demoraria 23 minutos, preferindo os 5 minutos no helicóptero da presidência. Custo? R$ 1000 descontados da FAB em tempos de cortes de gastos.
Neste mesmo 2015, o Brasil levou 800 convidados para uma conferência do clima em Paris. A maior dentre todas as comitivas.
Ainda na seara das aeronaves, não se pode deixar de mencionar os voos para buscar e levar os cachorrinhos e a babá da família Cabral no Rio. A generosidade do pai de pet em questão saiu pela bagatela de R$ 3,8 milhões em gastos com aeronaves estaduais, incluindo aí o fato de o governador ir trabalhar todos os dias de helicóptero.
Como ninguém é de ferro, os presidentes também tiram férias. No caso de Lula, em 2010, o réveillon foi precedido por um custo de R$ 800 mil apenas em reformas da residência na base naval de Aratu. Já as férias de Bolsonaro na pandemia custaram, como sabemos hoje, cerca de R$ 2,3 milhões.
É importante ressaltar, entretanto, que boa parte dos gastos decorrem de custos com deslocamento e diários de agentes de segurança.
Ainda assim, é difícil perceber por aqui qualquer mínima preocupação em dissociar o público e o privado.
Em 2008, o país chegou a presenciar uma CPI, Comissão Parlamentar de Inquérito, envolvendo os cerca de 150 cartões corporativos do governo.
O detalhe que levou a criação da CPI foi a utilização por seguranças da filha do presidente Lula, Lurian, de R$ 55 mil em compras em lojas de autopeças, livrarias, supermercados e material de construção.
A CPI ganharia o nome popular de “CPI da Tapioca”, em função do uso pelo ministro Orlando Silva para a compra de uma iguaria de R$ 7. Orlando devolveu cerca de R$ 30 mil para se manter no cargo.
Os mesmos cartões corporativos que hoje estão sob sigilo, contrariando decisão do STF de que os dados sejam públicos, movimentaram naquela época cerca de R$ 615 milhões.
Como você já deve ter percebido, a mamata por aqui é ambidestra, independente de partidos, e claro, da função de cada político.
Nesta mesma semana, enquanto o país descobria os custos das férias presidenciais, o presidente da Câmara autorizou um aumento de até 170% nos reembolsos médicos de parlamentares. Na prática, cada parlamentar pode gastar até R$ 135 mil por ano em despesas de saúde e pedir reembolsos.
Há pouco mais de um ano, o deputado Marco Feliciano se utilizou da mamata em questão para gastar R$ 157 mil no dentista.
O deputado alegou na época (2019) se tratar de um “político e pregador”, de modo que sua boca é seu instrumento de trabalho.
Mesmo políticos que já não mais ocupam cargos, como ex-senadores, também têm direito a benefícios. Em 2010, reportagem do jornal Correio Braziliense, mostrou que, por ano, a casa gastava R$ 6,4 milhões para garantir atendimento em saúde de ex-representantes.
Na reportagem há casos de senadores que se tornaram deputados, mas mantiveram o plano do Senado por ser mais generoso. Segundo declarou Ernandes Amorim, ex-senador e então deputado o gasto é correto, pois “o Senado me deve isso para a vida toda”.
Talvez estejamos todos anestesiados, mas o fato é que nossas Instituições que garantem privilégios do tipo já estão enraizadas.
A ideia também é novidade histórica. O sociólogo Max Weber resumiu em uma expressão que você já deve ter ouvido falar: patrimonialismo.
Trata-se da prática de confundir o estado como propriedade de seu governante, uma prática comum a qualquer déspota absolutista e “puro suco de Brasil”.
Como o historiador Raymundo Faoro descreve em seu “os donos do poder”, as origens do patrimonialismo brasileiro datam da colonização portuguesa, onde títulos de nobreza garantiam posses e direitos irrestritos aos que administraram as terras da coroa por aqui.
Alguns anos do livro de Faoro, que desnudaria o patrimonialismo brasileiro, o também historiador Sérgio Buarque de Holanda, lançaria o seu clássico “as raízes do Brasil”.
Dentre os conceitos do livro, nenhum outro ganhou tanta importância quanto a noção do “homem cordial”.
Buarque apresenta sua definição por apontar a rejeição do brasileiro à burocracia, da vida religiosa à vida pública. Tal rejeição formaliza no país a Instituição e a naturalidade de “funcionários patrimoniais”, aqueles cujos interesses do Estado se confundem com seus interesses pessoais.
Romper com tamanha tradição é um esforço hercúleo. Como mencionei na semana passada por aqui, nossas Instituições se desenvolveram de maneira a “extrair renda” da ampla maioria da população.
Seria estúpido e pretensioso da minha parte sugerir a maneira como devemos mudar as Instituições, algo que sempre me é cobrado em qualquer texto, mas reitero aqui que tão relevante quanto resolver um problema é reconhecer e saber definir o problema que se quer resolver.
O Estado brasileiro está fundamentado em premissas ruins. Os políticos que nele trabalham terminam por ficar imersos em incentivos pessimamente colocados.
Mesmo da parte do eleitor também há problemas sérios. Confundimos Estado e governo com certa frequência, pouco nos atentando às diferenças, que por sua vez implicam em direitos e obrigações distintas.
Na prática, resolver e fazer as pazes com a própria história ainda segue sendo um passo fundamental para o Brasil conseguir, enfim, melhorar seus padrões éticos e sociais.
*Este texto é um complemento a coluna publicada na última semana, que você pode conferir clicando aqui
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