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Será que a democracia ocidental conseguirá sobreviver ao século 21? Uma pesquisa Pew feita às vésperas da pandemia com 34 países mostrava que, na mediana, 52% de seus cidadãos não se davam por satisfeitos com a democracia.
Campanhas de desinformação, algoritmos poderosos e compartilhamentos de WhatsApp aparecem vilanizados, dentro e fora do Brasil, como os principais sabotadores da ordem democrática. Mas boa parte dos problemas que nossas democracias enfrentam podem ser atribuídos a sua falta de capacidade de transformar o mundo físico como éramos capazes de fazer.
A vantagem das democracias sobre as autocracias, ao longo do século 20, não se resumia à comunicação de valores mais justos e humanitários, como direito ao voto e liberdade de expressão. Populações democráticas eram mais ricas e contavam com governos mais eficientes. Nossas sociedades faziam as coisas acontecer.
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Entre os dez maiores projetos de infraestrutura do século 20, oito foram construídos por países democráticos. Quando, em 2019, se fazem levantamentos parecidos, dos dez maiores projetos em andamento, a maioria aparece ocorrendo em solo autocrático.
As democracias continuam liderando o mundo dos bytes, com seus aplicativos e suas instituições financeiras. Mas são os regimes autocráticos que despertam uma perigosa admiração do Ocidente no mundo dos átomos, com suas cidades e seus projetos de transporte extraordinários.
Em 40 anos, a China construiu centenas cidades do zero, levando mais de 500 milhões de pessoas do campo para os centros urbanos. Shenzhen foi capaz de acomodar um milhão de novos moradores em um ano. Em Changsha, construiu-se um edifício de 57 andares em 19 dias. Em Shanghai, uma ponte danificada foi demolida e reconstruída em 43 horas. Via de regra, ao tomar uma decisão, o governo não pergunta a ninguém, simplesmente faz o que tem que ser feito.
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Em contraste, nas democracias liberais, mesmo entre os países mais desenvolvidos, o amadurecimento institucional dos instrumentos de poder e de decisão, com seus sistemas de pesos e contrapesos cada vez mais ajustados e regulados, torna o ato de decidir (e de fazer) cada vez mais custoso.
Nos Estados Unidos, em San Francisco, a autorização para criar duas linhas de ônibus elétricos demorou 10 anos para ser aprovada. Um túnel em Boston tardou 16 anos para ficar pronto, principalmente por conta da burocracia e da necessidade de licenças dos mais variados temas. A cidade de Nova York foi capaz de construir suas 28 primeiras estações de metrô em um espaço de quatro anos, entre 1900 e 1904. Cem anos depois, com todos os avanços tecnológicos do século 20, a construção de quatro novas estações levou 17 anos.
No Brasil, a situação é similar. Com Itaipu, nos anos 1970, construímos a maior hidrelétrica do mundo em dez anos, tendo ainda que articular negociação com Argentina e Paraguai. Hoje, até as menores construções sofrem gargalos intransponíveis. Construímos Angra I e II em pouco mais de uma década, mas Angra III ficou para construir desde 1984. Construímos Brasília em 41 meses. Mas hoje, quando cai uma rampa de acesso no centro da cidade, leva-se metade desse tempo apenas para recolocá-la de pé.
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Com todos os avanços do último século, as práticas da gestão pública deveriam estar também mais velozes do que nunca. No passado, éramos mais reféns do dirigismo estatal. Hoje, podemos contar com inovações institucionais em contratações, parcerias e soluções de mercado capazes de agilizar processos, diminuir custos e aumentar o retorno dos investimentos.
Em vez de mão de obra custosa, temos hoje inovações tecnológicas em automação, computação e engenharia, que melhoram a qualidade dos projetos e a eficiência das execuções. No entanto, estamos mais lentos do que no passado.
Enquanto na autocracia chinesa uma decisão tomada logo torna-se uma ação realizada, um gestor público no Brasil, ao decidir realizar algum projeto, precisa enfrentar um longo caminho: autorizações de outros órgãos, controle interno, Tribunais de Contas, Ministério Público, ações judiciais.
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É claro que todas essas são instâncias que garantem a institucionalidade do país. Entretanto, a profusão de meios de controle dificulta a tomada de decisão.
É o que Francis Fukuyama chama de “vetocracia”: há partes demais com o poder de vetar decisões. Mais do que coragem para decidir, o gestor público brasileiro precisa de muita paciência.
Podemos chamar também nosso modelo de “hesitocracia”. Em vez de um Estado limitado e com poucas funções, no modelo da Constituição americana, criamos um Estado controlado e irresoluto, com funções e competências excessivas que levam ao excesso da desconfiança e dos instrumentos de controle.
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Existe uma crise de confiança em mão dupla entre sociedade e governo. Despende-se mais tempo e energia nos mecanismos de controle do que de fato na tarefa a ser realizada. Cria-se um aparato estatal pesado, capaz de intimidar tomadores de decisão ao ponto de que decisões não conseguem ser tomadas.
A solução para a hesitação democrática não é um retorno ao autoritarismo dirigente. As garantias fundamentais de privacidade, liberdade de expressão, igualdade de direitos e defesa da propriedade são conquistas inquestionáveis dos regimes democráticos.
Mas a tomada de decisões no governo precisa ser ágil e efetiva para assegurar contratos bem desenhados e direitos de propriedade bem definidos. Isso significa uma agenda de reformas administrativas e políticas que deem capacidade de decisão aos gestores públicos, assim como reformas institucionais que reduzam a incerteza decisória de indivíduos, famílias e empresas – reformas que serão tema desta coluna que se inicia hoje.
Não podemos permitir que agilidade autocrática e hesitocracia democrática sejam as duas únicas opções no cardápio geopolítico. Agilidade democrática tem que ser nosso especial da casa.