É o fim dos dividendos da paz?

Europa e EUA precisam colocar segurança energética no mesmo nível da sustentabilidade ambiental, além de financiar a dissuasão militar essencial no mesmo nível das prioridades sociais

Kenneth Rogoff

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(Alexander Koerner/Getty Images)
(Alexander Koerner/Getty Images)

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A invasão brutal da Ucrânia pela Rússia deveria ser um despertar para os políticos ocidentais, lideranças empresariais e economistas que defendem um futuro verde e justo, mas a quem falta qualquer noção prática ou estratégica de como chegar lá.

Independentemente de quais táticas a Europa e os Estados Unidos usem no curto prazo para reagir à crise atual, a estratégia de longo prazo dos dois precisa colocar a segurança energética no mesmo nível da sustentabilidade ambiental, além de financiar a dissuasão militar essencial no mesmo nível do financiamento das prioridades sociais.

A União Soviética desmoronou em 1991 em grande parte porque as lideranças russas, sobretudo o presidente, Boris Yeltsin, e seus assessores econômicos, admitiram que o complexo militar-industrial comunista soviético não conseguia dar conta de acompanhar a força econômica e destreza tecnológica superiores do Ocidente.

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Hoje, com a economia russa abaixo de um vigésimo do tamanho combinado das economias americana e da UE, a mesma estratégia de gastar muito mais que a Rússia em defesa deveria ser muito mais fácil de executar.

Infelizmente, há hesitação em muitas sociedades ocidentais, particularmente de esquerda, para admitir que gastos com defesa às vezes são uma necessidade e não um luxo.

Durante muitas décadas, os padrões de vida ocidentais têm sido impulsionados por um imenso “dividendo de paz”. Por exemplo, o gasto americano com defesa caiu de 11,1% do PIB em 1967, durante a Guerra do Vietnã, para 6,9% do PIB em 1989, ano em que o Muro de Berlim caiu, para pouco mais de 3,5% do PIB atual.

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Se o gasto americano com defesa como parcela do PIB ainda estivesse nos níveis da época do Vietnã, os gastos com defesa em 2021 teriam sido US$ 1,5 trilhão maiores – mais do que o governo gastou em assistência social no ano passado, e quase o triplo do gasto público em consumo não-defensivo e investimentos.

Mesmo para os volumes do fim da década de 1980, o gasto com defesa estaria muito acima de US$ 600 bilhões comparado a hoje. O custo extra teria de ser financiado por impostos maiores, empréstimos mais substanciais ou gastos públicos menores em outros setores.

O gasto europeu com defesa há tempos tem sido muito menor do que o dos EUA. Hoje, o Reino Unido e a França gastam pouco mais de 2% de sua renda nacional em defesa, e a Alemanha e Itália, cerca de míseros 1,5%.

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Além disso, interesses nacionais e lobby doméstico significam que o gasto europeu com defesa é altamente ineficaz, com o todo representando muito menos que a soma das partes.

Fico impressionado com a frequência com que muitos de meus – de modo geral – bem informados amigos têm perguntado por que a Europa não prepara uma resposta militar mais robusta ao ataque da Rússia à Ucrânia e às ameaças iminentes aos Estados bálticos.

Parte da resposta, sem dúvida, é a dependência europeia do gás russo, mas o motivo mais amplo é a gritante falta de preparo da Europa.

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Graças ao presidente russo, Vladimir Putin, isso tudo pode mudar. O anúncio de 27 de fevereiro do chanceler alemão, Olaf Scholz, de que a Alemanha vai aumentar seus gastos com defesa para mais de 2% do PIB sugere que a Europa finalmente está começando a pôr ordem na casa.

Porém, tais compromissos terão relevantes consequências fiscais – e, após o grande incentivo fiscal da era pandêmica, elas podem ser difíceis de engolir.

À medida que a Europa repensa suas regras fiscais, legisladores precisam levar em conta como proporcionar espaço suficiente para lidar com acúmulos militares de larga escala e imprevistos.

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Muitos parecem ter se esquecido de que as disparadas nos gastos em tempos de guerra foram um grande condutor da volatilidade dos gastos públicos no passado. Em uma guerra, não só os gastos governamentais e os déficits orçamentários tipicamente aumentam de modo significativo, mas as taxas de juros também costumam subir.

Hoje em dia, os legisladores (além de muitos economistas bem intencionados) estão se convencendo de que choques econômicos de alto impacto, como pandemias ou crises financeiras, vão inevitavelmente empurrar as taxas de juros para baixo, além de tornar grandes dívidas mais fáceis de se negociar.

Contudo, em tempos de guerra, a necessidade de antecipar gastos temporários robustos pode facilmente jogar para o alto os custos de empréstimos.

É verdade que, no mundo complexo de drones, ciberguerra e trincheiras automatizadas de hoje, como os governos preparam seus orçamentos de defesa importa bastante.

Ainda assim, presumir que, sempre que os orçamentos de defesa sofrem cortes, os estrategistas militares compensam a diferença com uma eficiência maior é um pensamento mágico.

Também ajudaria se o Ocidente pudesse evitar novos erros estratégicos de política energética do tipo que nos trouxe a este ponto.

Em particular, a Alemanha, que depende da Rússia para mais da metade de suas necessidades de gás, parece ter cometido um erro histórico ao desmontar todas as suas usinas nucleares após o desastre de Fukushima em 2011.

Em comparação, a França, que satisfaz 75% de suas necessidades energéticas por meio da energia nuclear, é significativamente menos vulnerável às ameaças russas.

Nos EUA, o cancelamento da obra do oleoduto Keystone XL pode ter se baseado numa lógica ambiental sensata. Só que o timing, neste momento, parece ruim.

Medidas tomadas para proteger o meio ambiente ajudam muito pouco se levam à fraqueza estratégica que aumenta a possibilidade de guerras convencionais na Europa – isso sem contar a poluição radiativa de grande escala que resultaria do uso de bombas de nêutron ou armas nucleares táticas.

Resistência ucraniana feroz, sanções econômicas rápidas e severas e dissidências domésticas ainda podem forçar Putin a admitir que sua decisão de invadir a Ucrânia foi um espetacular erro de cálculo.

Porém, mesmo que a atual crise diminua, o horrendo ataque à Ucrânia deve servir de lembrete até mesmo ao mais comprometido defensor da paz de que o mundo pode ser cruel e imprevisível.

Todo mundo quer a paz eterna. Só que a análise fria de como os países podem obter crescimento sustentável e justo exige deixar espaço fiscal – o que inclui a capacidade de fazer empréstimos de emergência – para os custos de se proteger contra agressões externas.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

Direitos Autorais: Project Syndicate, 2022.
www.project-syndicate.org

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Kenneth Rogoff

Ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, é professor de economia e políticas públicas na Universidade de Harvard