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O Ministério Público Federal (MPF) defendeu que a Ação Civil Pública contra a Boeing (BOEI34), devido às centenas de contratações de engenheiros extremamente qualificados que a empresa tem feito no Brasil, seja mantida e julgada na Justiça Federal.
O parecer foi apresentado ao juiz da 3ª Vara Federal de São José dos Campos (SP) na sexta-feira (19), após o governo federal voltar atrás da sua posição, de não ver ameaça à soberania nacional nas contratações, e pedir para fazer parte do processo judicial.
A Procuradoria diz no parecer que “pugna pelo reconhecimento da competência deste juízo para processar e julgar a presente Ação Civil Pública”, mas que só vai se manifestar sobre o mérito do processo “no momento oportuno, após resolvida, por decisão desse E. Juízo ou do E. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o estabelecimento da competência”.
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A ACP está suspensa no momento por uma decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que não permitiu o seu envio à Justiça Estadual. O juiz federal Carlos Muta, relator do processo no tribunal, também determinou que a União e a Boeing fossem intimadas a se manifestar e que o MPF fosse notificado).
Mudança do governo federal
A ação havia sido enviada à Justiça Estadual pelo juiz Renato Barth Pires, da 3ª Vara Federal de São José, após a primeira manifestação da União. Com base em parecer do Ministério da Defesa, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirmou inicialmente que não havia ameaça à soberania nacional nem motivos para participar do processo (“ausência de interesse que justifique a intervenção da União”).
Mas a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) e a Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (AIAB), que ingressaram com a Ação Civil Pública contra a Boeing, recorreram ao TRF-3.
Após ser questionado pelo tribunal, o governo apresentou um novo posicionamento, defendendo a manutenção do processo na Justiça Federal — como querem as associações. A mudança teve como base um parecer técnico de outro ministério: o do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
“Não há dúvidas de que a expertise brasileira nos setores de defesa/aeroespacial e aeronáutico, conquistada após uma trajetória de muito trabalho e estreito suporte estatal, possui caráter estratégico para a soberania nacional”, afirmou a AGU no novo posicionamento.
O parecer do MDIC fala em “amplo arcabouço constitucional e legal corroborando o entendimento de que a livre iniciativa não é absoluta” e na “cooptação voraz de mão de obra brasileira de elevada qualificação” pela Boeing, o que “por si só teria relevante potencial danoso para a economia brasileira e parece estar assentado não sobre uma concorrência saudável e legal da empresa estadunidense”.
Boeing x Embraer
A Abimde e a AIAB tentam impor uma série de restrições à gigante americana, como impedir ou estabelecer um limite à contratação de engenheiros no Brasil, alegando que as centenas de contratações feitas pela empresa — e que continuam ocorrendo — ameaçam a soberania nacional.
O InfoMoney tem mostrado nos últimos meses que, anos após a Boeing desistir de comprar 80% da divisão comercial da Embraer (EMBR3) por US$ 4,2 bilhões, a empresa americana tem avançado sobre os talentos da brasileira — e também de outras companhias do setor –, contratando “a elite da engenharia aeroespacial brasileira”, nas palavras de Roberto Gallo, presidente da Abimde.
O foco começou por engenheiros de nível sênior, que têm anos de experiência, chefiam importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves e possuem acesso a informações privilegiadas de projetos com segredos industriais, como os caças Gripen. Nos últimos meses, a gigante americana passou a contratar também profissionais de meio e começo de carreira no país.
Desde o ano passado, a Boeing já contratou mais de 200 pessoas no Brasil — e mais de metade eram funcionários e ex-funcionários da Embraer. Além disso, a empresa está com dezenas de vagas em aberto em São José dos Campos (cidade de mais de 700 mil habitantes, a cerca de 90 km de São Paulo, que é o berço da multinacional brasileira e do setor aeroespacial e de defesa do país).
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A Boeing afirma no processo que a ACP “mimetiza” os principais argumentos de uma notificação extrajudicial que a Embraer fez à empresa em abril do ano passado, nos Estados Unidos, e destaca que a empresa brasileira é associada às duas entidades. “A disputa possui como origem uma disputa privada entre Embraer e Boeing Brasil”, afirma a gigante americana.
O InfoMoney revelou a notificação extrajudicial e o seu teor, em que a Embraer acusa a Boeing de se aproveitar do acordo frustrado para acessar indevidamente suas informações confidenciais, para contratar os engenheiros, e de “se apropriar indevidamente de seus segredos de negócios e outras informações confidenciais”. A Boeing nega.
A Embraer é a terceira maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo, atrás apenas da Airbus e própria Boeing, e líder no segmento de aviões de até 150 passageiros (além de atuar na aviação executiva e em defesa & segurança). Mas a escala das empresas é incomparável: enquanto a Embraer tem cerca de 18 mil funcionários em todo o mundo, a Boeing tem mais de 150 mil, contratou mais de 26 mil apenas em 2022 e pretende contratar mais 10 mil neste ano.
O que diz o MPF?
O MPF pondera que o processo judicial “está intimamente relacionado, de um lado, à tutela da defesa/soberania nacional, uma vez que se busca resguardar a autonomia tecnológica de defesa aeroespacial do território brasileiro e da zona econômica exclusiva, e, por outro lado, à livre concorrência e livre iniciativa”.
“Trata-se, portanto, de matéria exclusivamente federal, com abrangência nacional, que envolve não só temas de interesse e competência administrativa da União, como também de outros órgãos diretamente subordinados ao Poder Executivo Federal, como as Forças Armadas e o Ministério da Defesa, os quais poderão ser diretamente afetados”, afirma Osvaldo Heitor, procurador da República que assina a peça.
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Para o Ministério Público, a ACP “diz respeito às implicações decorrentes da cooptação reiterada e crescente de profissionais de engenharia da área de defesa aeroespacial nacional
pela Boeing: se realmente tal conduta causa obliteração da autonomia tecnológica da área
de defesa e obtenção de segredos de estado pelas requeridas ou se configura tão somente uma
disputa relativa ao mercado de trabalho dos engenheiros aeronáuticos”.
R$ 806 milhões (e contando…)
Em meio às contratações da Boeing no Brasil (e à disputa com a Embraer), o InfoMoney revelou na quarta-feira (24) que a empresa brasileira já gastou mais de R$ 806 milhões com o negócio frustrado entre as empresas — e continua gastando, apesar de o acordo ter naufragado há mais de 3 anos.
“Incorremos e continuamos a incorrer em custos adicionais em conexão com o processo, defesa ou liquidação do processo judicial atualmente pendente e de quaisquer processos judiciais futuros e quaisquer procedimentos legais futuros relacionados à Transação Boeing e/ou rescisão e falha da Boeing em fechar a Transação Boeing”, afirma a Embraer no formulário 20-F, depositado na SEC (Securities and Exchange Comission).
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A brasileira gastou milhões não só para segregar a sua divisão comercial (que seria transformada em uma joint venture com a Boeing), mas também para reincorporá-la, depois que o negócio fracassou (a empresa receberia US$ 4,2 bilhões por 80% da nova empresa e ficaria com os outros 20%, se o acordo tivesse sido concluído).
Os mais de R$ 806 milhões foram gastos em:
- R$ 485,5 milhões em 2019, após a assinatura do MTA (Master Transaction Agreement, o documento que definiu os termos do acordo);
- R$ 215,7 milhões no 1º semestre de 2020, antes de o negócio ser cancelado pela Boeing;
- R$ 105,6 milhões em 2021, com o programa One Embraer (criado para reintegrar a divisão comercial à Embraer).
A brasileira cobra ressarcimento da americana pelo rompimento, em um processo de arbitragem que já dura mais de três anos, mas alerta seus investidores que pode não só não ser indenizada pela antiga parceira, como inclusive ser obrigada a “pagar danos monetários significativos à Boeing”.
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“No caso de uma determinação adversa no processo de arbitragem, podemos não recuperar quaisquer danos da Boeing e podemos ser obrigados a pagar danos monetários significativos à Boeing”, destaca a Embraer no 20F. A empresa alerta ainda que pode ser alvo de “litígios movidos por nossos acionistas e detentores de nossas ADRs relacionados à transação da Boeing”.
Entenda no vídeo abaixo o contexto da disputa entre Boeing e Embraer: