“Abismo ideológico” impõe derrotas a Lula no Congresso e deve dificultar articulação política durante o mandato, mostra estudo

Lula III concentra taxas mais baixas de governismo, apesar de alto volume de cargos e emendas liberados; parlamento mais conservador é pedra no sapato

Marcos Mortari

Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

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As dificuldades enfrentadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas relações com o Congresso Nacional − em especial com a Câmara dos Deputados − têm em seu cerne um componente ideológico, que pesa mais sobre as derrotas recentes do Palácio do Planalto do que eventuais tropeços de articulação política. Esta é a conclusão de um estudo recente realizado pela XP Política.

Para chegar a este resultado, os especialistas testaram uma série de variáveis, como a liberação de cargos na administração federal, o índice de coalescência (ou seja, a proporcionalidade entre a densidade do partido no Congresso Nacional e seu controle sobre o Orçamento destinado aos ministérios) e a percepção ideológica de parlamentares e diferentes governos ao longo do tempo, seguindo métricas consagradas na ciência política.

O que se observou a partir dos dados foi que os cinco primeiros meses do governo Lula III concentrou um dos índices mais baixos de votações nominais realizadas pela Câmara dos Deputados, com as taxas mais elevadas de dissenso e menor governismo entre os congressistas, em uma sinalização de pouca boa vontade no período conhecido na política como “lua de mel”, que sucede as eleições.

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Como é possível notar pelo gráfico abaixo, a taxa de governismo do Lula III só foi maior do que do início do mandato de Jair Bolsonaro (PL), que optou por uma estratégia distinta à do presidencialismo de coalizão tradicional e priorizou negociações com as bancadas temáticas − plano abortado na segunda metade do mandato, com a aliança forjada com o “centrão” em meio à crise da pandemia e problemas crônicos de consolidação de base de apoio no parlamento.

Em contraste com as dificuldades de governabilidade explicitadas na votação da Medida Provisória que tratou da reestruturação dos ministérios (MPV 1154/2023), considerando dados quantitativos, verificou-se que o Lula III realizou um volume maior de indicações para cargos em comparação com seus três antecessores, considerando o mesmo período de gestão − o que não necessariamente indica um comportamento eficiente do ponto de vista qualitativo, mas é uma ferramenta útil de análise.

Do lado da liberação de emendas parlamentares, não há bases que permitam comparação justa, mas foi verificada a distribuição de R$ 5,5 bilhões pelo atual governo. E não houve um volume fora dos padrões de medidas provisórias editadas que poderia motivar descontentamento por parte dos legisladores.

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“Apesar de problemas que parecem pontuais, o governo tem usado os instrumentos que tem para construir e manter a base. Seria bom para quem lidera a coalizão, mas sabemos que o resultado não é o
desejado”, pontuam os analistas da XP.

Dados sobre a percepção ideológica dos deputados e do governo levantados pelos especialistas mostram um “abismo” maior do que o observado nas gestões anteriores de Lula − que pode se tornar um problema ainda maior em um contexto de Congresso fortalecido e com maior autonomia em relação ao Palácio do Planalto.

Conforme pontua o estudo, em uma escala de 1 (esquerda) a 10 (direita) a média do comportamento ideológico da Câmara dos Deputados passou do intervalo de 4,2 e 4,4 entre 1999 e 2014 para 5,1 no governo Dilma II, 5,4 no governo Bolsonaro e 6,1 agora, passando pela primeira vez o ponto médio em direção à centro-direita.

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Como Lula não deve contar com votos na oposição para montar seu núcleo de apoio, a média da coalizão formada por partidos de esquerda e o PSD na mesma escala é de 4,1. Já para os parlamentares que não integram nenhum dos dois grupos, a estimativa é de uma escala mais próxima a 5,0. Mas o mesmo estudo constatou que a percepção média dos parlamentares é que o governo estaria em 3,5 na escala − um pouco menos à esquerda do que o Dilma II, na avaliação desses congressistas.

Na prática, isso significa que a atual configuração da Câmara dos Deputados é hoje mais conservadora do que em outras legislaturas. E, para os parlamentares no exercício do mandato, o governo Lula III está ideologicamente próximo ao governo Dilma II. Com isso, a distância ideológica entre as partes cresce e dificulta o trabalho de articulação política e busca por entendimentos possíveis. Em votações mais marcadas pela clivagem ideológica, o problema torna-se latente.

“Passados cinco meses da posse presidencial, essa relação (entre Executivo e Legislativo) tem sido tumultuada, mas não por uma falha pontual na articulação política, mas pelo desacordo em torno da agenda de governo ante àquela de sua coalizão na Câmara”, observam os analistas da XP.

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“Quando abrimos as votações em que o governismo ficou abaixo de 50% isso fica bastante claro. O governo foi derrotado na Câmara em duas votações que envolviam regularização ambiental, uma que envolvia segurança pública, uma emenda que impedia demissões para empresas no PERSE, na urgência do PL das Fake News, em 3 votações envolvendo o PDL do Saneamento e em 5 votações sobre o marco temporal”, salientam.

“Na ponta contrária, podemos citar o sucesso do governo nas 9 votações do arcabouço fiscal, por exemplo. O governismo total ficou em 84%, mas entre deputados da base firme, ficou em 95%, entre os demais da base potencial, em 86% (vs 62% no total do ano), e 58% da oposição. Ou seja, as derrotas foram concentradas em matérias em que a distância ideológica entre governo e base potencial foram muito grandes e os sucessos, quando essa diferença é menor”, sustentam.

O tamanho da base de Lula

Com base em comportamento eleitoral, manifestações nas redes sociais e em pesquisas com os parlamentares, os especialistas da XP estimaram o tamanho da oposição “dura” em 140 deputados − ou seja, 27,29% do total de assentos na casa legislativa.

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Restariam, portanto, 373 deputados para o governo buscar para formar sua base de apoio. Deste grupo, eles calculam cerca de 140 em partidos de esquerda ou que apoiam explicitamente Lula e 230 em um grupo que poderia integral a “base potencial”.

Observando o comportamento dos parlamentares em votações nominais em que houve dissenso (o que foi definido pelo estudo como aquelas votações que tiveram orientação formal do governo e que ao menos 10% dos deputados votaram diferente dos demais), observou-se que Lula hoje contaria com um grupo de 366 deputados que votaram mais de 50% das vezes de acordo com suas posições.

E desconsiderando todas as votações envolvendo o projeto de lei complementar do novo arcabouço fiscal (PLP 93/2023), do requerimento de urgência ao texto principal e os destaques de bancada, o número cairia para 318.

Apesar de parecer muito, a marca só supera o início do governo de Michel Temer (MDB), 323, e o segundo mandato de Dilma Rousseff (PT), 306. O próprio Lula contava com 384 deputados no seu segundo mandato, considerando os mesmos critérios. Já Dilma, no início de sua gestão, tinha 395, e Jair Bolsonaro (PL), 381.

E quando se observa a taxa de governismo por deputado, os números mostram um ambiente ainda mais desafiador para o governo atual. Segundo o levantamento da XP, o deputado mediano − ou seja, o 257º parlamentar, em ordem decrescente de governismo − vota junto com o governo em 69% das pautas em que há dissenso.

Para se ter uma ideia, no governo Lula I, este mesmo recorte indicava apoio em 91% das pautas do governo, e no Lula II, 88%. Ou seja, a deterioração da base governista ocorre tanto em termos quantitativos quanto em termos qualitativos sobre o nível de fidelidade daqueles considerados aliados.

Na avaliação dos especialistas da XP Política, a implicação da nova dinâmica em que o componente ideológico assume maior peso sobre o resultado das decisões, a melhora em elementos típicos da articulação política (como a distribuição de cargos e emendas ou até uma reforma ministerial que garantam maior proporcionalidade na configuração dos ministérios) pode ajudar no ambiente no Congresso Nacional, mas as dificuldades não deixarão de existir.

“A vida do governo será tão mais difícil quanto mais o Congresso tiver que lidar com uma agenda que não lhe é cara, especialmente em um contexto de avaliação de governo medíocre e ameaça eleitoral crível. Isso não quer dizer que o governo não pode amealhar vitórias mesmo nesses temas, mas que o custo é elevado e os recursos e tempo do governo são limitados, inviabilizando vitórias seriais em agendas dissonantes com a sua coalizão”, concluem.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.