Turbulências em uma indústria nascente

Os últimos dias no mundo do Bitcoin foram marcados por alguns eventos importantes, fato ilustrado pelas oscilações no câmbio da moeda digital nesse período. Sinal de percalços em uma indústria nascente. Mas, assim como turbulência dificilmente faz um avião desabar, as recentes turbulências de empresas do ecossistema da moeda digital tampouco arruinarão o Bitcoin. Para todos os efeitos, "O Bitcoin continua sendo o mesmo Bitcoin que conhecíamos ontem".

Fernando Ulrich

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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Os últimos dias no mundo do Bitcoin foram marcados por alguns eventos importantes, fato ilustrado pelas oscilações no câmbio da moeda digital nesse período. Há uma semana, um bitcoin era negociado por cerca de US$ 850. Mas bastou a Mt.Gox – a mais antiga exchange de bitcoins do mundo – anunciar a suspensão de todas as retiradas de bitcoins para o preço começar a tombar. De acordo com o comunicado divulgado ao público, a empresa declarou que “O aumento no fluxo de solicitações de saques impediu nossos esforços em um nível técnico”, adicionando que, “para entender a questão por completo, o sistema precisa estar em um modo estático”.

Isso foi na sexta-feira. Para hoje, segunda-feira, a Mt.Gox havia prometido emitir um parecer atualizado acerca da situação. E, sem pudor algum, a empresa divulgou, hoje, uma nota explicativa justificando a suspensão prolongada e culpando uma falha no software Bitcoin pelas complicações enfrentadas pela exchange – acusação já amplamente desmentida pelos principais desenvolvedores do Bitcoin (ver aqui e aqui). O resultado no mercado foi inevitável, e o preço despencou a pouco mais de US$ 550, sendo negociado neste momento por volta de US$ 650.

Para quem acompanha a indústria nascente do Bitcoin, a atitude da Mt.Gox não surpreende. Como muito bem dito pelo escritor de tecnologia Chris Pacia, “Assistir ao drama envolvendo a Mt.Gox nesses últimos dias tem sido como assistir um descarrilamento em câmera lenta”. Na mesma linha, mas muito mais contundente, desabafou o famoso entusiasta do Bitcoin Andreas Antonopoulos, em seu Twitter: “Obrigado, Gox, por nos dar milhares de manchetes de tabloides para refutar e semanas de trabalho para reparar o dano à reputação do Bitcoin causado pela sua incompetência”.

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A verdade é que a Mt.Gox, apesar de ser a mais antiga exchange em atividade, tem vivenciado inúmeros problemas operacionais ao longo dos anos. É uma plataforma incapaz de lidar com alto volume de negociações, opera sem uma licença nos Estados Unidos, sofre atrasos de meses para retiradas em dólares e, ainda, sobre ela recai uma suspeita de que potencialmente operava sob um regime reservas fracionárias (explicaremos mais adiante). Esses são alguns dos exemplos da qualidade questionável dos seus serviços. Nas últimas semanas, os problemas apenas se agravaram, e com eles aumentou a disparidade entre as cotações do Bitcoin na Mt.Gox e nas demais exchanges.

Esse episódio, porém, nos fornece inúmeras lições importantes.

Primeiro, a indústria do Bitcoin é nascente. Isso significa que ainda há players nesse mercado com baixa qualificação, adotando práticas de gestão ruins, no melhor dos casos, ou até mesmo ilegais. Há muito espaço para empresas realmente profissionais entrarem nesse setor e abocanharem uma fatia maior de mercado. Felizmente, quanto mais capital de investidores estiver na linha, mais a indústria será forçada a se profissionalizar. E acredito que essa é a tendência.

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Segundo, como manual de boas práticas, evite deixar saldos em bitcoins em exchanges. Quando você compra a moeda por meio dessas empresas, você tem a opção de retirar seus bitcoins, transferindo-os a uma carteira que só você controla. Assim, você não fica sujeito ao risco da empresa. Mas, por outro lado, você assume a responsabilidade de guardar os seus bitcoins. Portanto, é tarefa primordial a qualquer interessado em adquirir bitcoins aprender como armazenar com a máxima segurança possível as senhas da sua carteira.

Isso nos leva à terceira lição, a qual é alvo de preocupação de economistas: as reservas fracionárias são possíveis mesmo em um sistema como o Bitcoin. São menos prováveis, mas ainda assim possíveis. Para quem é leigo no assunto, reserva fracionária é a prática bancária de manter em caixa apenas uma fração dos depósitos efetuados na instituição (praticamente todos os bancos no mundo operam dessa forma. Para entender um pouco melhor, leia este artigo). Como no Bitcoin você é depositante e depositário ao mesmo tempo, há uma impossibilidade técnica do aparecimento das reservas fracionárias quando você mesmo guarda os bitcoins consigo.

No entanto, quando você utiliza uma exchange, você pode manter um encaixe de bitcoins custodiados na própria empresa; é nesse momento que a prática das reservas fracionárias pode surgir. Será que a Mt.Gox estava (ou está) operando sob esse regime? Por enquanto temos apenas especulações, mas nenhuma prova. O que, sim, é sabido, é o fato de a maior parte dos bitcoins em uma exchange ser estocada na forma offline, com o objetivo de segurança contra ataques de hackers, etc. Isso implica que apenas uma porção dos bitcoins está online para fazer frente às demandas usuais do negócio. Caso haja uma solicitação maciça de retiradas de bitcoins, o processo pode ser mais demorado, uma vez que os bitcoins offline precisam ser transferidos para carteiras online (a Coinbase, que não é apenas uma exchange, afirma em seu acordo de usuário que esse processo pode levar até 48 horas). É provável que a Mt.Gox também esteja enfrentando essa situação.

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Uma quarta lição é reconhecer que, por ser uma tecnologia inovadora e nascente, haverá percalços no caminho. Uma indústria não amadurece em cinco anos. Certamente testemunharemos outros problemas que precisarão ser endereçados e corrigidos. Precisamente por essas razões, o desenvolvedor líder do Bitcoin, Gavin Andresen, frequentemente afirma que “o Bitcoin é um experimento”. O que isso implica? Que especular no curto prazo com a moeda digital pode ser algo bastante arriscado.

Por último, é essencial destacar a enorme transparência de todo o ecossistema Bitcoin. Além do próprio software, de código-fonte aberto e totalmente gratuito, a transparência pode ser comprovada nos diversos fóruns de debate (bitcointalk.org, por exemplo), em sites dedicados à difusão de informações e notícias (como o Coindesk.com) e na própria Wiki exclusiva do Bitcoin, em que é documentado praticamente tudo sobre a tecnologia – inclusive possíveis problemas e falhas do sistemalá estão devidamente documentados. Aliás, a falha identificada pela Mt.Gox, e usada como justificativa para os problemas da empresa, tem sua própria página Wiki há mais de dois anos. E nenhum desenvolvedor do software a considera um grave problema a ser atacado com urgência. Poucos minutos após o comunicado desastroso da Mt.Gox, tudo já estava esclarecido, refutado e publicado por quem entende do assunto. A exchange ainda deve explicações convincentes, sem dúvida. Mas o Bitcoin é um livro aberto.

Essa lição é fundamental e impacta diretamente na construção da confiança na moeda digital. A natureza aberta, transparente e altamente colaborativa do Bitcoin faz com que defeitos no sistema sejam rapidamente encontrados e solucionados. Uma genuína cooperação social, em larga escala e global. Mais ainda, permite que os usuários entendam e estejam constantemente atualizados no estado da tecnologia. O Bitcoin torna-se, assim, mais robusto, sólido e seguro.

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Turbulência dificilmente faz um avião desabar. As recentes turbulências de empresas do ecossistema da moeda digital tampouco arruinarão o Bitcoin.

Para todos os efeitos, e conforme afirmou um membro do fórum bitcointalk.org, “O Bitcoin continua sendo o mesmo Bitcoin que conhecíamos ontem”.

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Fernando Ulrich

Fernando Ulrich é Analista-chefe da XDEX, mestre em Economia pela URJC de Madri, com passagem por multinacionais, como o grupo ThyssenKrupp, e instituições financeiras, como o Banco Indusval & Partners. É autor do livro “Bitcoin – a Moeda na Era Digital” e Conselheiro do Instituto Mises Brasil