O Bitcoin é, sobretudo, uma tecnologia

Assim como a internet no seu início, o Bitcoin ainda é visto com suspeita por algumas pessoas. Mas, com o passar do tempo, ele será visto pelo que realmente é: uma inovação tecnológica revolucionária. Um verdadeiro feito da civilização.

Fernando Ulrich

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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Se existe uma característica comum à maioria das notícias veiculadas na grande mídia acerca do Bitcoin é a quantidade de informações incorretas e o viés sensacionalista. Seja na imprensa estrangeira, seja na nacional, infelizmente ainda há inúmeros artigos e reportagens que mais desinformam e confundem do que retratam o que a moeda realmente é. Por um lado, o desconhecimento é compreensível, pois se trata de algo bastante recente e inovador. Mas, por outro, dado o enorme volume de informações disponíveis em diversos sites na internet, é também sinal de que o trabalho jornalístico ora peca pela falta de investigação mais rigorosa.

No Brasil, o mais recente exemplo é a reportagem da revista semanal Veja, edição de 5 de fevereiro de 2014, que contém uma série de erros dignos de uma retificação criteriosa. Com o único objetivo de informar o leitor brasileiro, vejamos onde a matéria se equivocou.

Segunda a revista, “A origem está envolta em mistérios. Acredita-se que ele [o Bitcoin] tenha sido criado em 2008, por um hacker anônimo que respondia pelo pseudônimo de Satoshi Nakamoto”. À exceção da identidade real de seu criador, Satoshi Nakamoto – que não é sabido se é uma pessoa ou um grupo de pessoas, tampouco se é um hacker –, a origem do Bitcoin é o que há de mais bem documentado no mundo financeiro. Não há mistério algum. Em outubro de 2008, Nakamoto publicou o seu paper explicando o funcionamento de um “sistema de dinheiro eletrônico peer-to-peer” e anunciou o lançamento do software oficialmente no dia 9 de janeiro de 2009 na lista de discussões online de criptografia – software este de código-fonte aberto para quem quiser inspecionar e de download gratuito por qualquer indivíduo.

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Além disso, todas as trocas de mensagens entre Nakamoto e os membros dessa lista estão publicadas online para quem quiser ler. Aliás, todas as mensagens e discussões das quais ele participou podem ser encontradas reunidas no Satoshi Nakamoto Institute. Logo, tanto a origem quanto o funcionamento e as regras do sistema são completamente conhecidos, transparentes e publicamente disponíveis a quem se dispuser a pesquisar.

Sobre a Bitinstant, “a mais famosa agência de negociação de bitcoins”, de acordo com a matéria, a verdade é que ela já está inoperante desde julho de 2013, devido aos serviços precários prestados aos seus clientes, não sendo nem a mais famosa, nem mesmo uma empresa em funcionamento. As principais casas de câmbio atuais são a Bitstamp (sediada na Eslovênia), a Mt.Gox (baseada no Japão) e a BTC-E (com sede na Bulgária).

Outros detalhes não tão importantes, como a lucratividade da mineração, tampouco estão corretos. Basta verificar algumas das calculadoras de lucratividade disponíveis gratuitamente na internet.

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É no quadro explicativo do Bitcoin, porém, que a matéria faz alegações realmente descabidas e infundadas. A revista afirma que há “Três indícios de que o bitcoin deve ter sido feito para lavar dinheiro”, sendo um deles o fato de “sites ilegais, principalmente de tráfico de drogas”, serem os principais mercados para o uso do Bitcoin. Primeiro, as razões por trás da criação do Bitcoin estão documentadas em diversas mensagens pelo próprio criador Nakamoto, todas disponíveis nos sites linkados acima. Dentre elas, estão o abuso dos bancos centrais e a desvalorização constante das moedas nacionais; um sistema bancário instável, em que o zelo pelos interesses dos depositantes é cada vez mais escasso; e a perda de privacidade financeira. Resumidamente, a intenção com o Bitcoin foi criar um sistema financeiro em que a dependência de terceiros fiduciários era a mínima possível ou, até mesmo, inexistente.

Em segundo lugar, a despeito de toda a recorrente ligação entre o site Silk Road e o Bitcoin, as vendas realizadas no site com o uso de Bitcoin não representavam nem mesmo 0,5% do total das transações com a moeda digital. A realidade é que, enquanto o Silk Road estava em operação, ele constituía uma parcela insignificante da economia do Bitcoin. Assim, não há fundamento algum na alegação de que são “sites ilegais” os principais mercados em que a moeda digital é usada.

Dito isso, é no mínimo precipitada a conclusão dos autores do artigo ao prognosticar o fim do “sonho dos bitcoins” devido à prisão de Charlie Shrem. É como decretar o fim do real após a prisão de Salvatore Cacciola. O que a revista não informa, contudo, é que a empresa de Shrem está inoperante há alguns meses, assim como o próprio Silk Road. Por sinal, desde que as autoridades americanas encerraram as atividades deste, o preço do bitcoin aumentou quase dez vezes, fato tampouco mencionado pela matéria, e a quantidade de comerciantes idôneos que passaram a aceitar a moeda só tem aumentado, outro fato aparentemente desconhecido ou desimportante à revista.

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A ligação do Bitcoin com o uso para fins criminosos acaba, infelizmente, por denegrir a imagem dessa grande inovação tecnológica e desinformar quem pouco conhece sobre o tema. Se o Bitcoin é a “moeda do crime on-line”, conforme o infame título da matéria, o dólar é a moeda da maior parte dos demais crimes, mas ninguém jamais associaria a moeda americana ao uso exclusivo para fins ilícitos.

Isso nos remete a um ponto fundamental sobre a moeda digital, o qual somos obrigados a esclarecer e enfatizar frequentemente: o Bitcoin é uma tecnologia e, portanto, não é boa nem má. É neutra. Um bisturi na mão de um cirurgião salva vidas; mas pode matar se usado por um psicopata. Uma máquina fotográfica eterniza momentos inesquecíveis e emocionantes na vida de cada um, mas, nas mãos de um pedófilo, pode registrar situações abomináveis. Da mesma forma, um carro que pode tirar vidas quando conduzido por um alcoólatra também pode levar uma noiva à igreja no dia de seu casamento.

Enfim, poderíamos continuar nesse exercício mental, tomando qualquer tecnologia como exemplo. O ponto fundamental é que o crime está na ação do infrator, jamais na tecnologia empregada para tal. O Bitcoin, ou qualquer outra forma de dinheiro, pode ser usado para o bem ou para o mal. Associá-lo exclusivamente ao crime é um desserviço à informação do público.

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Assim como a internet no seu início, o Bitcoin ainda é visto com suspeita por algumas pessoas. Mas, com o passar do tempo, será visto pelo que realmente é: uma inovação tecnológica revolucionária. Um verdadeiro feito da civilização.

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Fernando Ulrich

Fernando Ulrich é Analista-chefe da XDEX, mestre em Economia pela URJC de Madri, com passagem por multinacionais, como o grupo ThyssenKrupp, e instituições financeiras, como o Banco Indusval & Partners. É autor do livro “Bitcoin – a Moeda na Era Digital” e Conselheiro do Instituto Mises Brasil