Dano colateral

Se o objetivo for provocar o colapso do governo, "desidratar" em muito a proposta de reforma da Previdência seria um método bastante eficiente, de resto gerando efeitos colaterais severos para todos os que precisam de serviços e do investimento públicos

Alexandre Schwartsman

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O paladino do Centrão, deputado Paulinho da Força, afirmou buscar apoio entre os demais membros do ilustre grupo para “desidratar” o projeto de reforma de Previdência, argumentando que a economia decorrente ajudaria o presidente Jair Bolsonaro a se reeleger em 2022. À parte a discussão do seu objetivo, os meios que o nobre deputado pensa utilizar são absolutamente desastrosos.

A começar porque, apesar do número associado à reforma – na casa de R$ 1 trilhão –soar alto nos ouvidos de qualquer um, seu impacto sobre a capacidade de gasto do governo, em particular os que possam servir de carro-chefe em eventual campanha para reeleição, é muito menor do que o valor prenuncia.

Atendendo a pedidos, a equipe econômica divulgou quadro mais detalhado do impacto esperado da reforma sobre os gastos previdenciários, não apenas por tipo, mas também por ano. Estes dados podem ser então usados para traçar um cenário da evolução das contas públicas alternativo ao apresentado na Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme tabela abaixo.

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Despesas projetadas pela LDO 2019

2020            (R$ bilhões)             (%PIB) 2021            (R$ bilhões)           (%PIB) 2022            (R$ bilhões)         (%PIB)
Despesa primária total 1.476,0 18,7% 1.518,5 17,9 1.578,8 17,4
   Benefícios previdenciários 679,5 8,6 733,0 8,7 788,9 8,7
   Pessoal e encargos sociais 338,1 4,3 350,4 4,1 363,3 4,0
   Outras despesas obrigatórias 204,9 2,6 190,9 2,3 199,9 2,2
   Despesas sujeitas à programação financ. 253,5 3,2 244,2 2,9 226,7 2,5
     Obrigatórias com controle de fluxo 139,5 1,8 139,5 1,6 139,5 1,5
     Emendas impositivas 14,2 0,2 14,7 0,2 15,3 0,2
     Discricionárias 99,8 1,3 90,0 1,1 71,9 0,8

Há alguns pontos a se destacar. Notem que, por construção, respeita-se a norma constitucional impondo que o gasto total só cresça de acordo com a inflação, ou seja, mantendo seu valor real constante. Todavia, como o PIB cresce mais do que a inflação (ou assim esperamos), a despesa total, medida como proporção do PIB, cai a cada ano: de 18,7% do PIB previsto para o ano que vem para 17,4% do PIB em 2022.

Apesar disto, a despesa associada a benefícios previdenciários, a maior do orçamento, segue crescendo relativamente ao PIB.

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Assim, para manter o gasto total em linha com o requerimento constitucional, as demais despesas têm que cair. Todavia, o governo federal controla fração pequena do que gasta: não pode reduzir as despesas com pessoal e encargos e enfrenta dificuldades com as demais despesas obrigatórias, bem como com emendas impositivas, que, como sugere o nome, não estão sujeitas a cortes.

Restam, portanto, as despesas ditas “discricionárias” (que incluem todo investimento federal), cujo valor cairia de R$ 99,8 bilhões em 2020 (1,3% do PIB ou 7% da despesa total) para R$ 71,9 bilhões em 2022 (0,8% do PIB, ou 5% da despesa total). No ano passado, destaque-se, tais despesas montavam a R$ 116,7 bilhões (1,7% do PIB, ou 9% do total).

A LDO, portanto, só projeta a despesa total em linha com o “teto de gastos” porque impõe redução draconiana da despesa discricionária, possivelmente inviabilizando o funcionamento do governo em 2021, ou, com sorte, 2022.

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Considere agora a próxima tabela, detalhando os efeitos do projeto da reforma da Previdência sobre as despesas federais de 2020 a 2022. O impacto total atingiria, em caso de aprovação integral da reforma, de R$ 15,6 bilhões (0,2% do PIB) no ano que vem, até R$ 68,2 bilhões (0,8% do PIB) em 2022.

Impacto da reforma previdenciária

2020            (R$ bilhões)             (%PIB) 2021            (R$ bilhões)           (%PIB) 2022            (R$ bilhões)         (%PIB)
Redução de benefícios previdenciários 6,3 0,1 21,9 0,3 33,5 0,4
Redução de pessoal e encargos 10,0 0,1 14,0 0,2 17,4 0,2
Redução de BPC/LOAS -0,7 0,0 -0,2 0,0 0,4 0,0
Redução de abono salarial 0,0 0,0 8,3 0,1 16,9 0,2
Redução total de gastos primários 15,6 0,2 44,0 0,5 68,2 0,8

Como ficaria então a evolução de cada despesa federal, supondo que a trajetória de dispêndio total permanecesse inalterada com relação à LDO e que, portanto, todas as economias do projeto pudessem ser destinadas às despesas discricionárias? A tabela seguinte ilustra esta possibilidade, revelando modesta redução dos benefícios previdenciários neste período, de 8,5% para 8,3% do PIB, bem como no que se aplica a pessoal e encargos e às demais despesas obrigatórias.

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Despesas projetadas pela LDO 2019 ajustadas à reforma da Previdência

2020            (R$ bilhões)             (%PIB) 2021            (R$ bilhões)           (%PIB) 2022            (R$ bilhões)         (%PIB)
Despesa primária total 1.476,0 18,7 1.518,5 17,9 1.578,8 17,4
   Benefícios previdenciários 673,2 8,5 711,1 8,4 755,4 8,3
   Pessoal e encargos sociais 328,1 4,2 336,4 4,0 345,9 3,8
   Outras despesas obrigatórias 205,6 2,6 182,8 2,2 182,6 2,0
   Despesas sujeitas à programação financ. 269,1 3,4 288,2 3,4 294,9 3,2
     Obrigatórias com controle de fluxo 139,5 1,8 139,5 1,6 139,5 1,5
     Emendas impositivas 14,2 0,2 14,7 0,2 15,3 0,2
     Discricionárias 115,4 1,5 134,0 1,6 140,1 1,5

Sob tal suposição, as despesas discricionárias permaneceriam ao redor de 1,5% do PIB (em torno de 8-9% da despesa total) em todo horizonte até a próxima eleição, levemente abaixo dos valores registrados em 2018.

Vale dizer, a aprovação total da reforma manteria o aperto do governo virtualmente nos mesmos níveis observados no ano passado. Paulinho da Força poderia dormir tranquilo, porque a reforma não “encheria” os cofres do governo, nem permitiria enormes gastos com programas e projetos que assegurassem a reeleição do presidente; apenas impediria o colapso do governo federal em 2022, ou a necessidade de revogar o teto de gastos até lá.

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Obviamente, se o objetivo for provocar o colapso do governo, “desidratar” em muito a proposta de reforma seria, aí sim, um método bastante eficiente, de resto gerando efeitos colaterais severos para todos os que precisam de serviços e do investimento públicos. Mas quem se importa?

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Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.