Governo recorre ao TRF-3 para impor sigilo total em processo judicial contra Boeing

Pedido foi negado em 1ª instância; gigante americana é processada por contratar engenheiros do setor aeroespacial e de defesa no Brasil

Lucas Sampaio

Logo da Boeing é visto na lateral de um 737 MAX, no Reino Unido (Foto: REUTERS/Peter Cziborra)
Logo da Boeing é visto na lateral de um 737 MAX, no Reino Unido (Foto: REUTERS/Peter Cziborra)

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A União recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) para impor sigilo total ao processo movido por duas associações contra a Boeing (BOEI34) no Brasil, em que a gigante americana é acusada de ameaçar a soberania nacional por contratar engenheiros altamente qualificados do setor aeroespacial e de defesa do país.

A Ação Civil Pública (ACP) é movida pela Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) e pela Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (AIAB), que tentam impor uma série de restrições à Boeing, como proibir — ou pelo menos limitar — a contratação da “elite da engenharia aeroespacial” no Brasil. O pedido liminar foi negado, e agora o processo está na fase de produção de provas.

O pedido de sigilo também foi negado em primeira instância. O juiz Renato Barth Pires, da 3ª Vara Federal de São José dos Campos (SP), afirmou em sua decisão que não via “razão suficiente para decretar o sigilo total”, mas ponderou que poderia “eventualmente” restringir a “publicidade de alguns documentos, quando se revelar absolutamente indispensável, à vista dos preceitos da Lei de Acesso à Informação”.

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O governo federal recorreu à segunda instância com um agravo de instrumento. A Advocacia-Geral da União (AGU) afirma no recurso que o segredo de Justiça é necessário “para aportar no feito elementos probatórios sensíveis para a defesa nacional e para a intimidade pessoal de alguns profissionais envolvidos no procedimento de captação abusiva de competências (brain drain)” por parte da Boeing.

A AGU afirma também que “a causa principal envolve elementos sensíveis no tocante ao funcionamento da Base Industrial de Defesa (BID), cuja própria existência é legalmente considerada de natureza estratégica e de segurança nacional”, e que profissionais “com conhecimento técnico especializadíssimo” poderiam ter dados pessoais divulgados durante a fase de produção de provas. “A ampla divulgação do conteúdo dos autos poderá prejudicar tanto a defesa nacional quanto a intimidade de pessoas”.

Boeing x Embraer

O processo judicial é movido contra a Boeing em um contexto de disputa com a Embraer (EMBR3) no Brasil. O InfoMoney tem publicado, desde março, uma série de reportagens mostrando a “guerra” extrajudicial (e por talentos) entre as empresas:

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Apesar de a Embraer ser a terceira maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo, atrás apenas da Airbus e própria Boeing, além de líder em aviões de até 150 passageiros, a escala das duas empresas é incomparável: enquanto a brasileira tem cerca de 18 mil funcionários em todo o mundo, a Boeing tem mais de 150 mil e contratou mais de 26 mil pessoas apenas em 2022 (e tem uma receita que é cerca de 15 vezes superior).

Vaivém judicial

O governo federal pediu segredo de Justiça na ACP quando o juiz da primeira instância intimou as partes a especificar quais provas deveriam ser colhidas. Segundo a AGU, o sigilo é “necessário para aportar no feito elementos probatórios sensíveis para a defesa nacional e para a intimidade pessoal de alguns profissionais envolvidos no procedimento de captação abusiva de competências (brain drain)”.

A Ação Civil Pública contra a Boeing, movida pela Abimde e pela AIAB, tem sido marcada por um vaivém judicial desde o seu início. As associações ingressaram com o processo em novembro, pedindo urgência na análise e solicitando que a União se pronunciasse, devido à ameaça à soberania nacional. Mas a troca de governo e o recesso do Judiciário atrasaram o andamento do processo.

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O governo Jair Bolsonaro (PL) não se manifestou antes do fim de seu mandato, e a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se posicionou apenas em fevereiro. Com base em um parecer do Ministério da Defesa, disse não ter “dispositivos legais” para impedir as contratações e não ver risco à soberania nacional. A AGU afirmou que era “notória a ação de captura de talentos profissionais brasileiros pelo grupo Boeing”, mas ponderava que os argumentos das associações “ainda não são suficientes para demonstrar o interesse processual da União”.

O juiz Renato Barth Pires então declarou “incompetência absoluta” para julgar o caso e o enviou à Justiça Estadual, mas as associações recorreram ao TRF-3, que suspendeu a decisão e questionou novamente o governo. Foi após esse segundo questionamento que o governo apresentou uma nova posição e pediu para fazer parte do processo.

A mudança de posicionamento se baseou em parecer de outro ministério, o do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), que viu “possível abuso de poder econômico” e “provável concorrência desleal” da gigante americana nas contratações. A União passou a dizer que não havia “dúvidas de que a expertise brasileira nos setores de defesa/aeroespacial e aeronáutico, conquistada após uma trajetória de muito trabalho e estreito suporte estatal, possui caráter estratégico para a soberania nacional”.

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Devido à mudança de posição, o juiz da primeira instância reconsiderou sua decisão e reconheceu a competência da Justiça Federal para analisar o caso (como queriam as associações). Mas Pires foi duro em seu despacho e afirmou que “é sintomático que o interesse da União (agora reconhecido) tenha partido do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e não do Ministério da Defesa (que, ao que parece, não mudou de opinião a respeito)”.

O juiz da 3ª Vara Federal de São José também negou o pedido liminar das associações para proibir — ou ao menos restringir — a contratação de engenheiros pela Boeing. Ele afirmou em sua decisão que “em um sistema jurídico que tem como um de seus fundamentos a livre iniciativa […], a intervenção judicial, quer para impedir, quer para limitar a contratação de trabalhadores, há de ser feita com muita cautela”.

Disse também que a livre concorrência é “princípio regente da ordem econômica” e que, “para que se possa estabelecer uma restrição dessa natureza, precisaria haver uma prova muito clara dos fatos e dos propósitos indevidos das requeridas, o que, até o momento, não se verificou”.

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O juiz afirmou também que “uma parte dos problemas narrados na inicial poderia ser resolvida com simples ajustes nos contratos de trabalho, com a inserção de cláusulas de confidencialidade e de não concorrência e, evidentemente, com a instituição de uma política salarial e de incentivos compatível com o mercado”.

O que diz a Boeing?

Antes mesmo de ser intimada a se defender, a empresa afirmou nos autos que “as associações não fornecem qualquer base legal para as medidas extremas pleiteadas” e querem impedi-la de “exercer seu direito constitucional de livre contratação de funcionários”.

A empresa americana disse também que “não pode ser impedida de oferecer bons salários e boas posições aos trabalhadores no Brasil” e que “os engenheiros brasileiros são livres para trabalhar na empresa que ofertar melhores condições de trabalho, especialmente em um mercado altamente especializado”, e que proibi-la de contratar esses profissionais “seria abusivo e desproporcional”.

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Lucas Sampaio

Jornalista com 12 anos de experiência nos principais grupos de comunicação do Brasil (TV Globo, Folha, Estadão e Grupo Abril), em diversas funções (editor, repórter, produtor e redator) e editorias (economia, internacional, tecnologia, política e cidades). Graduado pela UFSC com intercâmbio na Universidade Nova de Lisboa.