SEC dispara contra Binance e Coinbase

Crise existencial, pressão e ego estão no centro dessa decisão?

Gustavo Cunha

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(Getty Images)
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Na última semana, houve um aumento significativo na regulamentação das criptomoedas após a Securities and Exchange Commission (SEC), a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, abrir dois processos. Um deles foi contra a Binance e o outro contra a Coinbase, acusando-as, entre outras coisas, de negociar valores mobiliários (securities) sem a devida permissão desse órgão regulador.

A estruturação e distribuição de valores mobiliários é uma atividade regulamentada em todo o mundo. Cada país possui seu próprio órgão regulador e conjuntos de regras, que têm como objetivo principal proteger os investidores.

Para isso, as regulamentações geralmente classificam os investidores em diferentes tipos, levando em consideração seu conhecimento financeiro ou capacidade de buscar assessoria adequada. Na maioria dos países, essa classificação é baseada no valor investido. Por exemplo, na Europa e nos Estados Unidos, investidores que possuam mais de US$ 100.000 disponíveis para investir (ou valor equivalente na moeda do país) são considerados investidores com capacidade financeira suficiente. Isso permite que o órgão regulador estabeleça algumas barreiras e permita que sejam oferecidos investimentos a eles sem que o ofertante ou estruturador tenha que passar pelo processo padrão.

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No Brasil, temos uma classificação em três tipos: investidor comum, investidor qualificado e investidor profissional. Entre outros critérios, o valor investido também é considerado para a classificação. Qualquer valor é aceito para investidor comum, acima de R$ 1 milhão para investidor qualificado e acima de R$ 10 milhões para investidor profissional.

Essa segmentação visa, essencialmente, proteger o pequeno investidor, assumindo que ele possua menos conhecimento financeiro, para evitar que sejam oferecidos investimentos que possam comprometer sua reserva financeira. Por outro lado, há uma perspectiva menos difundida de que essa segmentação visa criar uma reserva de mercado exclusiva para os investimentos considerados “melhores”, disponíveis apenas para aqueles que já possuem recursos financeiros. Essa perspectiva sugere que essa estratégia busca perpetuar as diferenças entre as classes sociais.

Eu sempre estive mais alinhado com o primeiro objetivo mencionado anteriormente, de proteger os investidores pequenos. No entanto, devo admitir que cada vez mais questiono o segundo objetivo. A tokenização e a tecnologia blockchain estão facilitando e continuarão a facilitar a pulverização de investimentos, tornando possível investir com quantias menores. Anteriormente, muitos investimentos exigiam poucos investidores e valores altos para serem realizados, mas agora eles estão se tornando acessíveis a milhares de investidores com tickets menores. Essa mudança está desafiando a ideia de que apenas os investidores com recursos significativos podem ter acesso aos melhores investimentos.

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Enquanto isso, o que se observa é que os reguladores estão se esforçando para manter ou adaptar o sistema de proteção dos investidores pequenos que temos atualmente.

Será realmente necessário ter um arcabouço tão amplo e limitante de proteção?

Um ponto importante nessa divisão de investidores diante da classificação de valor mobiliário é que, assim que um ativo seja classificado como tal, o seu distribuidor (vendedor do ativo) tem que cumprir inúmeras regras e registros para poder fazê-lo. Essas regras são mais rigorosas para os investidores comuns e menos rigorosas para os investidores considerados qualificados (e profissionais, no caso do Brasil).

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Sobre o episódio mais recente, a ação da SEC contra a Binance e Coinbase, temos uma questão que me desagrada ainda mais, que é a de um regulador que se vê pressionado a agir. As críticas à SEC e ao seu chairman, Gary Gensler, após a quebra em novembro de 2022 da exchange de criptomoedas FTX, foram imensas. Por que ele não regulou isso? Como permitiu que os americanos perdessem milhões nessa fraude? Ele não previu que isso aconteceria? Essas e outras questões continuam sendo levantadas até hoje quando o assunto é discutido.

Além disso, durante 2023, houve uma enorme pressão para que a SEC se pronunciasse e estabelecesse diretrizes para os inúmeros empreendedores que desejam inovar nesse mercado nos EUA. Inclusive, vários Venture Capitalists (VCs), como a A16, emitiram relatórios abordando o êxodo de iniciativas cripto dos EUA devido à falta de clareza regulatória.

Diante desse cenário, o que ocorreu foi que a SEC, sob pressão, se pronunciou. O ponto é que o pronunciamento não foi favorável para nenhuma das partes envolvidas.

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Ao classificar mais de 50 tokens como valores mobiliários, a SEC aplicou a regulamentação do mercado financeiro tradicional a esses ativos, afetando o acesso dos investidores comuns nos Estados Unidos. Em outras palavras, todas as iniciativas que distribuíram esses ativos deveriam ter seguido as diversas regras estabelecidas pela SEC ou obtido uma autorização explícita dela para evitar a necessidade de cumprimento dessas regras. No entanto, ambos os caminhos são inviáveis devido ao tempo e aos recursos financeiros necessários para cumpri-los.

Após ter sido citada no processo, a Binance emitiu um comunicado contundente, no qual afirma que a abordagem regulatória baseada em punição (regulation by enforcement) não é a melhor estratégia a ser adotada e que o objetivo da SEC com esse processo parece ser mais chamar a atenção da mídia do que proteger os investidores.

Uma das visões sobre esse processo, bem desenvolvida por Ícaro Avelar em uma live que fizemos na semana passada, é que a SEC, por meio desse processo, está começando a transferir parte de suas responsabilidades para o Poder Judiciário dos Estados Unidos. Em certo sentido, parece que a SEC está cumprindo seu papel e deixando para o Judiciário decidir da maneira que melhor entender. Essa estratégia pode ser compreensível do ponto de vista tático (à la série “Billions”, concordemos), mas, do ponto de vista do mercado cripto e da inovação, não parece ser a melhor para os Estados Unidos. Porém, continuando na linha dessa série ou de “House of Cards”, o ego nesse nível de poder é enorme. Muitas vezes isso leva a decisões e direções que não são ótimas para a população em geral.

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Estamos apenas no início das discussões sobre a regulamentação de criptomoedas e tokens para o mercado americano, e é preocupante observar que o rumo dessas conversas não está promovendo um maior entendimento. O fato de não haver um diálogo construtivo em si já é um sinal negativo.

Egos, pressão para agir, gestão baseada em conflitos crescentes, juntamente com discussões mais profundas sobre o verdadeiro papel dos reguladores nesse mundo em que a tecnologia oferece inúmeras oportunidades para todos, independentemente do valor que se tenha para investir, compõem o enredo dessa série da vida real que estaremos acompanhando nos próximos anos. Será que terá um desfecho que seja benéfico para todos ou apenas para alguns poucos? Essa é a pergunta para a qual espero uma resposta positiva: será bom para todos!

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Gustavo Cunha

Autor do livro A tokenização do Dinheiro, fundador da Fintrender.com, profissional com mais de 20 anos de atuação no mercado financeiro tradicional, tendo sido diretor do Rabobank no Brasil e mais de oito anos de atuação em inovação (majoritariamente cripto e blockchain)