Uma CBDC como o Real Digital comporta token com a privacidade do dinheiro em papel?

Uma CBDC de atacado e outra de varejo podem conviver?

Gustavo Cunha

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O elemento mais fantástico de um sistema baseado em blockchain é a possibilidade de emitir vários tokens. Assim, a criatividade e as possibilidades são imensas.

Pensando sobre o modelo que o Banco Central do Brasil (BCB) optou para seu primeiro piloto do Real Digital (baseado no Real Digital, para as transações entre o BCB e bancos comerciais, e no real tokenizado, para as transações entre os bancos e a população em geral), fiquei com uma aflição, que é a mesma que todos os Bancos Centrais (BC) têm hoje.

Com a queda enorme de utilização de dinheiro em papel (cash) os BCs estão perdendo o contato direto com a população. O único passivo do Banco Central que é detido pela população de qualquer país é o cash. Todo o restante do dinheiro em circulação é moeda criada por bancos ou intermediários financeiros. Essa perda de acesso direto à população é um fator importante em muitas discussões dos Bancos Centrais, pois tira graus de liberdade no desenvolvimento de políticas monetárias e deixam os Bancos Centrais mais dependentes de intermediários, fator de risco em qualquer sistema.

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Dito isso, em uma infraestrutura de mercado financeiro como a do Real Digital, onde pode-se emitir vários tokens (o primeiro testado será o de um título do Tesouro Nacional), por que não poderíamos ter um emitido pelo próprio Banco Central? Como se tivéssemos uma moeda digital do Banco Central (CBDC) de atacado entre os Bancos Centrais e os bancos (CBDC-A para ficar mais fácil o exemplo) e um outro token (CBDC-B), sendo que esse poderia negociar diretamente na população.

Como o sistema seria controlado pelo BC, ele poderia colocar limites para essa CBDC-B e deixá-la até anônima. Qualquer um poderia criar uma conta na blockchain do BC e receber CBDC-B nela. Seria anônimo e um dinheiro diretamente do BC. Guardaria similaridades com o dinheiro em papel no que tange ao anonimato e livre movimentação.

As vantagens disso é que poderia facilitar operações offline, englobaria a necessidade de alguns agentes de ter privacidade quase total de algumas transações e daria ao BC acesso direto à população, sem intermediários. As preocupações residem em para que será usado essa CBDC-B. Questões como lavagem de dinheiro e combate ao terrorismo vem logo à tona, mas isso poderia ser endereçado via colocar limites de valores e periodicidade dessas transações não?

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Como a ideia aqui também não é desintermediar o sistema, o volume de emissão dessa CBDC-B também não poderia ser grande, para não haver migração para ela em um momento de crise bancária. Mas, volto no ponto, limites de valores e periodicidade endereçariam isso.

Também não vejo problemas no fato de termos carteiras não identificadas (anônimas). A dificuldade aqui seria torná-las efetivamente anônimas, dado que a primeira transação seria feita de uma fonte não-anônima (você pediria ao seu banco para transformar o seu dinheiro tokenizado do banco em CBDC-B e mandar para sua carteira). Seria possível usar mixers nesse cenário? Ou “Zero Knowledge” proveria esse anonimato tão logo a tecnologia fosse robusta para tal?

No final, teríamos, na mesma rede, três tokens de liquidação, uma CBDC de atacado, uma moeda tokenizada e uma CBDC de varejo, sendo essa última restrita em valores, única funcionalidade a não precisar de identificação do usuário.

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Pelo que tenho estudado e ouvido, modelos nesse sentido estão sendo bastante discutidos para o euro digital e para a moeda digital britânica.

A diferença, como muito bem me alertou o Marcelo Deschamps em uma das muitas conversas que temos sobre o assunto, é que, no caso desses BCs, a distribuição da CBDC para a população será por meio dos bancos, sendo esses responsáveis pelo KYC, cadastro e tudo mais que seja relativo à identificação e idoneidade de seus clientes. Não seria assim no caso que propus aqui.

Marcelo também acha pouco provável algum BC ir no sentido que propus, já que isso implicaria em alguns riscos reputacionais. Imagine se um traficante é flagrado com R$ 500 em CBDC-B? Independentemente do valor, isso teria enorme chance de ser lavagem de dinheiro. Nada diferente do que é o cash hoje, mas a distribuição dele para a população passa pelos bancos, e não diretamente do BC para o cidadão. Daí vem a proposição da Europa, que imita esse modelo na sua CBDC. Meu ponto aqui volta para o valor e funcionalidades: limitando isso, por que não? Será que esse risco reputacional é maior do que os benefícios de se abrir um canal direto?

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Esse modelo sugerido resolve problemas dos dois lados. Os BCs conseguem manter o contato direto com a população, agora feito no campo digital, e a parte da população que quer privacidade em algumas transações vai tê-la.

Apesar disso, ele não é uma bala de prata. Como costumo dizer, sempre encontramos uma forma melhor de fazermos o que estamos fazendo hoje. Ou, como diz uma variação que escutei recentemente: o conhecimento tem um início, mas não um fim. Seguimos aprendendo!

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Gustavo Cunha

Autor do livro A tokenização do Dinheiro, fundador da Fintrender.com, profissional com mais de 20 anos de atuação no mercado financeiro tradicional, tendo sido diretor do Rabobank no Brasil e mais de oito anos de atuação em inovação (majoritariamente cripto e blockchain)