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O início do ano no futebol brasileiro trouxe à tona um assunto de finanças: o fluxo de caixa.
Muitos clubes têm usado o tema para justificar atrasos ou a necessidade de adiantar recursos para cobrir as contas. Isso gera debates mais acalorados.
Neste artigo, vamos falar de fluxo de caixa, o que gera dificuldades na sua gestão e quais seriam as soluções para minimizar o problema.
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Em primeiro lugar, gestão de fluxo de caixa é tarefa básica de qualquer departamento financeiro e desafio da maioria das empresas e setores. Aqui, não entrarei em particularidades técnicas, como gestão de capital de giro, prazos etc.
Pensando no futebol, esse é um tema menos relevante. Afinal, os clubes costumam receber valores mensalmente e pagar suas contas também em base mensal.
A única receita que tem mais prazo e imprevisibilidade é a negociação de atletas, que acontece duas vezes por ano e pode ser recebida em duas ou três parcelas. No mais, teoricamente é tudo dentro de um mês.
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Então onde está o problema do fluxo de caixa no futebol?
Temos duas grandes fontes geradoras de dificuldades: o calendário e a forma de distribuição das receitas com direitos de transmissão.
Vamos começar pelo calendário.
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Um clube de futebol que disputa as séries A, B ou C do Brasileiro tem calendário de jogos praticamente durante o ano todo: disputa os estaduais até abril, depois entra o Brasileiro até o início de dezembro e, no meio disso, disputa as copas.
Os campeonatos estaduais são um problema. A grande maioria deles gera poucas receitas, seja em direitos de transmissão, seja em bilheteria. Para clubes menores, os contratos de publicidade nem sempre entram integralmente, porque a exposição é menor que no Brasileiro. Mas os custos salariais e de operação estão lá. E esse ponto é importante: receitas variam, mas custos são (geralmente) estáveis.
No gráfico acima, temos uma estimativa de como se comporta o fluxo de caixa de um clube brasileiro que disputa a Série A e que vale conceitualmente para outras séries nacionais.
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A linha amarela mostra o saldo de caixa mensal, a diferença entre as receitas e os custos e despesas (importante explicar que é considerado de maneira simplista para explicar a lógica, antes que alguém venha com tecnicidades que só dificultam o entendimento do torcedor), e a linha roxa é o acumulado desses valores.
Note que, exceto por janeiro e agosto e considerando que o clube negocie atletas e receba tudo à vista, o saldo de caixa mensal só fica ligeiramente acima do equilíbrio a partir de setembro, mas é mais gravemente negativo durante o início do ano, quando são disputados os estaduais.
O segundo “problema” é a forma de distribuição das receitas com direitos de transmissão. Novamente, veja que, em dezembro, há uma grande entrada de caixa, que é o pagamento da parcela de performance da Série A. Para os clubes que avançam na Copa do Brasil e na Libertadores é também por esse período que entram os valores mais relevantes. E, se considerarmos que na performance da Série A os clubes que são rebaixados não recebem qualquer valor, temos um risco de clubes ficarem sem essa parcela das receitas.
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Antes de falar sobre as sugestões de melhorias em relação a esses pontos, é importante trazer dois outros: a responsabilidade dos clubes e o financiamento a esse “gap” de fluxo de caixa.
Obviamente que, considerando uma situação conhecida – o fluxo de caixa negativo é um dado do problema “Gestão de Clubes de Futebol” – o correto seria ver os clubes adotarem posturas diferentes das que adotam. E podemos citar duas cristalinas: gastar menos e de forma compatível com as receitas estáveis e transformar parte dos salários em bônus de performance, associados justamente à parcela de performance do Brasileiro.
Existem dois problemas aqui: os dirigentes olham mais a grama do vizinho que a sua e “precisam ser competitivos”, o que pode ser traduzido por “preciso contratar mais nomes”. Essa é uma falha estrutural do sistema de futebol brasileiro: contratar nomes e não funções, com trabalhos pobres de gestão de scouting, ausência quase completa de diretores esportivos capazes de formar elencos baseado num DNA esportivo claro e eficiente nas contratações.
Ou seja, apesar de ser um problema, está nas mãos dos dirigentes a gestão mais eficiente do fluxo de caixa, trabalhando com orçamentos realistas e considerando essa dificuldade.
Dá para financiar esse “gap”? Dá, é claro.
Várias indústrias trabalham assim. Há sazonalidade de negócios como venda de panetones e de ovos de Páscoa, que são clássicos do tema.
Há possibilidades de dar mais prazo de pagamento para aumentar vendas ou aumentar o prazo que se tem para pagar uma compra – desde que não se queira “lojas-americanizar” a solução – e cabe ao CFO e à gestão encontrarem alternativas.
Em indústrias organizadas e com alguma estabilidade, basta estruturar operações de antecipação de recebíveis, que considerem vendas futuras e que trabalhem com contratos de performance de obras etc. No futebol, isso já é mais complexo, por diversos motivos.
Primeiro, mesmo na Europa, o futebol é tratado como atividade de risco mais alto. Questões de performance e possibilidade de rebaixamento, histórico de atrasos de pagamento e acionistas pouco confiáveis levam a isso.
Ainda assim, há quem consiga se financiar usando boas estratégias, especialmente os clubes mais estáveis, porque há uma parcela do mercado financeiro que entende o risco e opera para mitigá-lo.
No Brasil, ainda não temos e essa é exatamente uma das minhas atividades: ajudar o mercado financeiro a operar o futebol, por meio de parcerias com algumas gestores.
Reconhecer e entender o risco, saindo do achismo, fugindo da conversa de boteco na linha “meu primo é conselheiro de um clube e fala cada coisa…”, e entrar profundamente na estruturação dos negócios, é fundamental para mudar o cenário.
Entretanto, não dá para negar as dificuldades: há muita desconfiança em operar com o modelo associativo, há “lendas” de clubes que burlaram as estruturas em operações, alguns fluxos de recebíveis não são seguros, há sempre o risco de uma penhora, o uso dos direitos econômicos dos atletas não é juridicamente seguro e mesmo a possibilidade de criação de uma SAF gera incertezas jurídicas em relação às dívidas.
Ou seja, entramos numa referência circular: a estrutura operacional do futebol gera um “gap” de fluxo de caixa, os clubes insistem em não se estruturar para minimizá-la, o mercado financeiro tem restrições a operar no setor e o problema não se resolve.
Há solução para isso?
Claro. A primeira passa por racionalizar o calendário. Isso não significa acabar com os estaduais, mas racionalizá-lo a ponto de termos mais clubes atuando a temporada toda, com o Brasileiro ocupando mais meses do ano.
Em algum momento precisaremos lidar com este fato: os Estaduais emperram o calendário, mas não é possível ignorar a importância deles para a formação de atletas.
Outro ponto que pode ser melhorado é o da distribuição de recursos dos direitos de transmissão.
Uma parcela estável maior e ajustes na parcela de performance, garantindo estabilidade de gestão orçamentária já ajudariam bastante, seja porque se recebe mais mensalmente, seja porque seria possível antecipar a parcela ao saber que há um valor mínimo futuro.
Para completar, um sistema de sustentabilidade financeira eficiente, uma espécie de compromisso dos dirigentes de respeitarem as estruturas de financiamento, uma parceria com a Justiça de forma a garantir que as operações sejam preservadas – tudo isso ajuda na solução de um problema que é real.
Alguns clubes já entenderam isso e sairão na frente nesse processo. São evoluções fundamentais para que o futebol brasileiro siga andando “casas para frente”. Não podemos mais correr o risco de “voltar para a primeira casa”.
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