Processo de mudança na estrutura do futebol passa por momento de acomodação

Mudanças são necessárias, estão acontecendo, mas os resultados demoram a surgir e, por vezes, desenvolvem efeitos colaterais ruins no curto prazo

Cesar Grafietti

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(Getty Images)
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O futebol brasileiro atravessa um momento de enormes mudanças, e isso já não é novidade para ninguém. Alguns clubes cada vez mais fortes, chegada das SAFs, início das conversas sobre a liga de clubes, a nova lei geral do esporte. Nesta coluna, vamos destrinchar o momento e alinhar expectativas.

Mudanças são necessárias, estão acontecendo, mas os resultados demoram a surgir e, por vezes, desenvolvem efeitos colaterais ruins no curto prazo.

No Relatório Convocados/XP, apresentamos os números dos 20 clubes da Série A de 2021, mais os quatro da Série B que subiram, além de Cruzeiro e Vasco. Acompanhando essas informações em detalhes há cerca de 15 anos, posso dizer que temos mais da metade dos clubes em situação de equilíbrio, o que significa custos menores que as receitas, dívidas estruturadas e passíveis de serem liquidadas no decorrer do prazo e receitas cada vez mais recorrentes, ainda que variáveis.

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Se considerarmos que, a partir de 2023, poderemos ter algo como quatro SAFs (Botafogo, Cruzeiro, Vasco e uma quarta que deve ser anunciada em breve) na Série A, então o número de equilibrados aumenta. O que significa que alguns equilibrados serão rebaixados, assim como caíram Grêmio e Bahia no ano passado.

É do jogo. A indústria é assim. Se alguém justificar que passa apertos financeiros no futebol porque o clube caiu para a Série B então é melhor deixar a indústria. E quanto mais clubes organizados e equilibrados, maior a chance de eles caírem – e estando equilibrados tendem a sofrer menos. Essa é a vantagem de operar corretamente a indústria: estar pronto para atravessar momentos de crise.

O risco é a artificialidade do equilíbrio. Num cenário em que alguns clubes como Flamengo e Palmeiras se destacam pela força financeira, há sempre a tendência de termos outros clubes tentando se aproximar mesmo sem capacidade para isso. O resultado é sabido, reconhecido, óbvio: vai dar problema caso as conquistas não cheguem.

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No ano passado, o Atlético Mineiro venceu o Brasileiro e a Copa do Brasil e atingiu receitas importantes, aliviando um pouco a pressão de curto prazo. Na atual temporada, já foi eliminado da Copa do Brasil, enfrentará uma batalha prematura contra o Palmeiras na Libertadores e, no Brasileiro, ainda está na disputa, mas sem a mesma folga de 2021.

Insisto sempre na tese: os clubes precisam evitar esta artificialidade para não sufocarem as finanças e transformar a possibilidade de se transformar numa SAF, numa obrigatoriedade de encontrar algum dono que resolva os problemas.

Nesse sentido, uma das novidades que temos visto é da Recuperação Judicial (RJ), instrumento legal que permite uma reestruturação das dívidas de forma organizada e que tem como objetivo preservar a companhia em dificuldades, mas respeitando os direitos dos credores.

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Sempre que falamos de qualquer indústria, dá para dizer que 70% do que se passa nela é semelhante em todas, mas tem esses 30% que costumam gerar um problema danado na hora de gerir uma empresa. No caso do futebol, um clube.

Quando uma associação pede recuperação judicial precisa de um mínimo de conhecimento da realidade setorial para evitar erros óbvios. Primeiro, os clubes estão organizados sob as regras da Fifa que, para fins esportivos, se sobrepõem a leis locais. Logo, todas as ações que envolvam o tema precisam estar alinhadas com o que determina a Fifa.

Por exemplo: a Fifa sanciona clubes que devem valores a outros clubes e agentes por transferência de atletas. Quando não paga, o clube sofre o chamado “transfer ban”, que é a impossibilidade de registrar novos atletas. Não adianta, portanto, tentar colocar essas dívidas dentro da RJ, pedir desconto e dez anos para pagar, pois a Fifa manterá o “transfer ban” até que esteja tudo pago.

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Da mesma forma, não dá para dizer que essa é uma dívida prioritária em relação a outras, pois prioritário num clube de futebol é pagar salários e despesas de jogo. Contratações não são “mais” prioritárias que outras. Logo, a gestão desses passivos é muito complexa e o pedido de RJ precisa ser feito de forma a considerar tudo isso.

Entendo que a RJ é uma alternativa interessante e que organiza o tema. Mas ressalto que ela tem riscos, como os credores não aceitarem o plano ou optarem por converter dívidas em participação acionária, forçando a constituição de uma SAF e assumindo o controle dela. Cuidado, portanto, na análise de riscos e benefícios. E estar associado a alguém que entende de RJ e de futebol – de verdade, e não de vitrine – é fundamental para evitar esses riscos.

A liga de clubes está num “vai-não-vai” danado. Dois grupos com interesses semelhantes, mas desconfianças diversas. É fundamental que ela saia, mas, à medida que o tempo passa, aumenta a pressão dos clubes pela renovação dos contratos de direitos de transmissão, pois muitos precisam dessa garantia para rodas suas operações e orçamentos.

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Graças à lei do mandante, corremos o risco de os atuais dois grupos fragmentarem ainda mais, à medida em que a pressão sobre os clubes aumenta. E o que seria uma das mudanças fundamentais nessa reestruturação do futebol brasileiro passará a ser mais um caos instalado.

Já a Lei Geral do Esporte muda muitas coisas importantes, como questões envolvendo sanções a dirigentes que cometem gestão temerária, passando por alterações nas relações trabalhistas. Confesso que ainda estou me debruçando sobre ela, mas é curioso que o tema das mudanças trabalhistas tenha sido tema de protestos e comemorações ao longo da semana.

Dirigentes animados e atletas incomodados. Não tenho dúvidas que as regras trabalhistas precisavam ser alteradas e guardar estrutura de acordo com a realidade da indústria. Entretanto, esse não é um tema fácil. Clubes costumam ter que arcar com contratos longos para atletas que não performam, ao mesmo tempo que querem preservados os direitos sobre atletas que podem render bom dinheiro numa negociação.

Para finalizar, voltamos às SAFs. Como imaginava no início do ano, não teremos muitas delas entre os clubes de referência nesse primeiro momento. As primeiras foram as necessárias para salvar clubes.

Também é possível que saia mais uma ou outra a partir de boas oportunidades para investidores. E, a partir daí, teremos apenas em clubes de menor expressão. Natural, pois será preciso uma avaliação das primeiras antes de os clubes definirem caminhos.

Sobre isso, é fundamental lembrar sempre que, nessa primeira negociação, o que importa não é o valuation, mas sim o projeto. Quanto de dinheiro e de tecnologia de pessoas e gestão serão aportados no negócio, e qual será o plano estratégico para daqui cinco, dez, 15 anos. Quem entender isso poderá ter sucesso.

Veja, portanto, que todas as mudanças estão em curso, mas todas estão em fase de acomodação. Um movimento tão amplo como o que se espera na indústria não acontece de uma vez, é preciso amadurecimento dos atores. Estamos no caminho.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti