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O início da temporada do futebol brasileiro sob o ponto de vista financeiro é morno. Os balanços de 2019 serão disponibilizados apenas no final de Abril, e o que temos é apenas a sensação de que o ano passado foi bem ruim. Aliás, estamos ainda em janeiro e já há clubes com salários atrasados desde o ano passado, outros sendo sendo cobrados por clubes no exterior, e por aí vai.
Enquanto isso o que temos é a divulgação dos Orçamentos dos clubes. Peças que eram restritas aos conselheiros agora são por vezes tornadas públicas, e outras abertas de maneira informal – “vazadas” mesmo – e confirmadas pela imprensa.
Orçamentos são peças fundamentais na gestão financeira de qualquer indústria. A partir deles são tomadas decisões de investimentos, corte de custos, contratações. Corporações usam os orçamentos para medir eficiência das equipes e balizar pagamentos de bônus. É uma forma eficiente de dar os incentivos corretos e colocar as estruturas produtivas sob a mesma visão para o ano dos negócios.
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Sem a pretensão de ensinar o “Pai Nosso ao vigário” – apesar de ter feito vários orçamentos ao longo da vida, sem contar as milhares de projeções – há algumas qualidades que um bom orçamento deve ter. A primeira é que não pode ser nem otimista nem conservador. Os extremos levam aos famosos erros “tipo 1” e “tipo 2”: no caso, acelerar quando deveria frear ou vice-versa.
Bom orçamento é aquele feito a partir de premissas justas, factíveis, mas que contenha certa dose de desafio. Afinal, orçamento é uma expectativa e o bom desempenho de uma estrutura se dá quando o resultado final vai além da expectativa. Aceitar os mesmos 10% de margem líquida dos últimos anos não vai te tirar da estagnação. Logo, o orçamento deve ir além do “mais do mesmo” e propor desafios a quem o executá-lo.
Um orçamento justo é aquele que precisa ser batido pela gestão. Por isso não pode ser otimista em excesso e assim ser inalcançável, ou conservador em demasia, a ponto de ser batido com folga. O modelo ideal é aquele que se for alcançado será um sucesso, e se for ultrapassado será motivo de comemoração e retorno a quem contribuiu para isso.
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Inaceitável é fazer conta de chegada, ou mesmo orçar prejuízo. Como dizer para um acionista que seu melhor desempenho é um prejuízo! Quais as alternativas reais para mudar o cenário? Onde buscar eficiência? Quem deve ser substituído para reverter cenários frágeis? Perguntas que um orçamento bem feito deve trazer à gestão.
Já no futebol…
A primeira questão envolvendo orçamentos no futebol é sobre sua divulgação. Empresas de capital aberto, limitadas ou qualquer outra corporação não divulgam orçamentos. São peças internas de gestão. No máximo as empresas de capital aberto divulgam “guidances” de desempenho (estimativas), que são expectativas sobre alguns indicadores, como crescimento de vendas, alavancagem, margem.
Mas o futebol e suas idiossincrasias requerem que os orçamentos sejam peças públicas. Para quem adora dizer que “o futebol é diferente”, tenho que informar duas verdades: i) sim, é diferente; ii) assim como uma indústria é diferente da outra. O melhor vem agora: bons profissionais podem e devem transitar entre as diferentes indústrias, com suas diferentes experiências, e aportar no futebol técnicas de gestão adaptáveis às suas idiossincrasias.
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O orçamento precisa ser público porque o consumidor do futebol é diferente. Aliás, é mais que consumidor, e reduzir o papel do torcedor ao de consumidor é uma simplificação que não ajuda em nada a evolução da indústria. Consumidor é aquela pessoa que vai ao restaurante, e se depara com falta de manobrista, espera desconfortável, atendimento ruim e comida que não vale o que custou, não volta. E ainda faz propaganda contra. No futebol, o torcedor é maltratado nos estádios, tem dificuldade em comprar ingressos, não encontra camisa do time nas lojas, tem que aturar dirigentes que contratam mal, falta de transparência nas informações, atletas mimados, mas ainda assim se mantém irredutivelmente fiel ao clube de coração, o defendendo até nas causas perdidas. Reduzir este agente a um consumidor é um equívoco.
Logo, um dos caminhos para ter o torcedor próximo é o da informação. Mantê-lo ciente do que acontece e do que acontecerá na próxima temporada é fundamental para ajustar expectativas, e expectativa correta é um passo certo em direção ao bom relacionamento entre torcida e clube.
Além disso, os clubes são associações sem fins lucrativos, que possuem inúmeras renegociações de impostos não pagos, que se colocam em risco de insolvência e por isso podem deixar enormes prejuízos para a sociedade. Estar claro qual o caminho que estão tomando é necessário.
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Pensando num orçamento justo e com alinhamento de expectativas, cito dois exemplos vindos da Europa – já estou ouvindo algumas pessoas dizendo “…mas na Europa é diferente, a cultura é outra e blá-blá-blá…”, e justamente por isso está anos-luz à frente do Brasil em termos de desenvolvimento técnico e financeiro – que apontam para isso:
- No início da temporada 19/20, o Liverpool, campeão da Champions League e vice da Premier League, não fez contratações na janela de verão, tendo vendido cerca de € 40 milhões. Nas temporadas anteriores o clube contratou Alisson, Fabinho, Keita, Shaquiri, Van Dyik, Salah, Chamberlain. Perguntado sobre isso, Jurgen Kloop respondeu “Temos contas para pagar pelas contratações recentes. Além disso, temos renovações de contratos se aproximando, e custam ao clube”. Visão clara de gestão, responsabilidade do gestor esportivo sobre os impactos financeiros de suas ações.
- Na temporada 18/19, o Tottenham não contratou nenhum atleta. A diretoria informou que os esforços financeiros estavam direcionados à construção do estádio e que naquele momento não haveria contratações, mas se comprometeu a não negociar ninguém. Resultado obtido por Pochettino: vice-campeonato da Champions League. O treinador argentino conseguiu mobilizar a equipe e levá-la à final da competição europeia. Depois pediu reforços, mas naquele momento as ações foram claras: o orçamento não permitia.
No Brasil não vemos nada disso. Ainda na semana passada, os gestores financeiros do Vasco da Gama pediram demissão e a justificativa que chegou ao público é o desacordo por ações da diretoria de futebol, que gastaram acima do que estava orçado com treinador e com atletas. Isso, para um clube que está com atrasos de salários, conforme a imprensa noticia, e que tem um orçamento no mínimo estranho, como veremos mais adiante.
Há um desalinhamento de ações entre os departamentos financeiros e de futebol. Como falta governança nas estruturas, o futebol sempre fala mais alto e os dirigentes sempre pendem para o lado fácil dos gastos no lugar de defender o equilíbrio. Não adianta nada prever no orçamento e, semanas depois, extrapolá-lo.
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A questão que fica é: o que acontece se a diretoria não cumprir o orçamento? Se os gastos forem acima do previsto, ou se as receitas de marketing não chegarem ao esperado? Numa empresa qualquer seria caso de explicações, penalizações financeiras e até demissão. Sem visão e ação corporativas, a figura do orçamento é mera peça decorativa.
Outro ponto é sobre a forma de divulgação. Não há um padrão. Há clubes que usam efeito caixa, outros usam competência. A maioria mostra apenas o demonstrativo de resultados, sem apresentar o que seria uma projeção das demonstrações financeiras, com balanço e fluxo de caixa. Afinal, o orçamento serve para termos sensibilidade sobre o comportamento de receitas e custos, mas também para saber como se comportarão investimentos e dívida. Quanto sobrará efetivamente de dinheiro? Onde será usado? O que o clube pretende fazer com os vencimentos de dívida? Qual a estratégia de alongamento de passivos? Espera receber as vendas de atletas à vista ou tolera parcelamento? Trabalhará para contratar com pagamento à prazo? Essas e tantas outras são pergunta que devem ser feitas antes de um orçamento e respondidas através dos números completos. O orçamento deveria virar uma projeção.
E claro que isso só funciona se for feito e monitorado em bases mensais, com divulgações públicas entre orçado e realizado trimestralmente, para que os torcedores acompanhem seus clubes e entendam a realidade. Porque pedir dinheiro via patrocínio de adesão, fazer campanha de sócio torcedor, pedir doações é fácil. O difícil é sempre explicar para onde está indo o dinheiro.
Finalmente, vamos aos orçamentos. Recebi números de 11 clube da Série A. Alguns muito bem explicados, como os casos de Flamengo, Grêmio, Internacional e Atlético Mineiro. Vamos separar a avaliação em dois blocos: o primeiro com os clubes que apresentaram dados de 2019 e 2020 para mostrar a evolução (é sempre a melhor forma de fazer) e depois veremos os que apresentaram dados de 2020 apenas.
Clubes com 2019 e 2020
Não cabe a mim criticar a construção dos orçamentos. Não estou na pele dos financeiros, que são profissionais capacitados tecnicamente para fazer este trabalho, como percebi nos contatos que tive para a construção do modelo de Fair Play Financeiro. Definitivamente, os departamentos financeiros são a solução e não a causa das dificuldades.
Interessante como os clubes, exceto o Flamengo, orçaram redução de custos com futebol, indo na direção correta da austeridade. Temos vistos que alguns clubes não estão renovando contratos de atletas, enxugando elencos pesados e que custam caro. Vemos também as rescisões amigáveis, que são boas para os clubes que precisam reduzir folha e para os atletas, que podem buscar clubes para jogar e receber em dia.
Ao mesmo tempo, todos apontam montantes grandes vindos de venda de atletas, que acaba sendo sempre a válvula de escape para fechar as contas. A pergunta que faço é: os departamentos de futebol tem controle e ação sobre essas vendas? Considerando o cenário atual de contratações de atletas, cada vez mais jovens, os clubes possuem uma “análise de portfólio” e um monitoramento que permite ser ativo na gestão dos atletas ou são apenas reativos e dependem da boa vontade e ação dos empresários para alcançar os valores orçados?
O mundo ideal é ter os atletas de base monitorados, acompanhando sua evolução. Quem faz isso tem a visão sobre quais atletas estagnaram e quais ainda podem ser desenvolvidos, agindo de maneira mais acurada na decisão de vender ou não um atleta. Num mercado cada vez mais restritivo, quem não usar de inteligência na gestão da equipe ficará distante dos resultados esportivos e financeiros.
Dos casos acima, o Corinthians orça prejuízo e não demonstra como evita-lo. O São Paulo tem o maior desafio, que é reduzir tão drasticamente uma folha cara e composta por atletas veteranos e sem mercado, além de conseguir receitas muito acima dos anos anteriores. Talvez o Grêmio tenha sido excessivamente conservador.
Clubes com 2020
Como não dá para comparar com o que ocorreu em 2019, o que podemos dizer é que exceto por Bahia e Ceará, mais modestos nas receitas com vendas de atletas, os demais foram bastante arrojados. Ainda assim o Internacional orça prejuízo. Já o caso do Vasco não parece fazer muito sentido. Números parecem bastante improváveis considerando a história do clube. Enquanto isso o Santos apresenta um número que exigirá aquele esforço adicional para ser cumprido, especialmente nas receitas, e o Atlético Mineiro parece apostar no conservadorismo. Já Bahia e Ceará mostram números bastante realizáveis, e o curioso é ver que o orçamento de custos com futebol do Bahia já é maior que o do Vasco e o do Ceará é pouco inferior. O Nordeste chegou com força e estrutura para ocupar o espaço de clubes do Sudeste que se perderam nos caminhos da má gestão.
Ao final de 2020 faremos a comparação entre os dados orçados e os reais. Fundamental para que o futebol continue dando passos à frente. Não há mais espaço para malabarismos, e entender isso é fundamental para a sustentabilidade de longo prazo dos clubes.
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