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Michel Chevalier foi um engenheiro e economista francês, encarregado pelo governo de seu país de construir, em 1836, uma avaliação sobre a situação financeira das Américas. Credita-se a ele e ao seu estudo a criação do termo “América Latina”.
Ao contrário do caso dos Estados Unidos, onde América e o próprio termo “americano” foram incentivados como uma forma de demonstrar distância em relação aos colonizadores ingleses (contra o qual o país havia lutado para se separar), a ideia de “Latina”, nasce como maneira de reforçar os laços da região em relação a suas metrópoles europeias.
Chevalier avaliou em sua visita que as Américas encontravam-se divididas de maneira similar a Europa, com um norte protestante e um sul católico. Sua concepção, que seria posteriormente evocada por Napoleão III, delimita a região abaixo do Rio Grande, na divisa do México com os EUA, como um território natural para as potências europeias.
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O termo acabou ganhando força por aqui, perdendo seu significado negativo e se tornando uma maneira de mostrar a integração entre a região. Francisco Bilbao, filósofo chileno, já pregava em 1856 por uma união dos países chamados de latinos, o “pan-latinismo”.
O fato é que essa união pouco ocorreu graças em boa parte ao Brasil, país que ocupa metade do território considerado latino-americano e ainda hoje é pouco integrado a região.
As razões para isso são inúmeras, a começar pelo fato de que 80% de nossa população vive a no máximo 200 Km de distância do mar longe, portanto, da maior parte dos vizinhos sul-americanos, além de nossa barreira de idioma (não, não adianta fingirmos que o nosso “portunhol” dê conta de reduzir essa distância).
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Somos um país pouco integrado também comercialmente. Nossas relações comerciais com toda a América Latina somam US$ 55 bilhões, meros 3% do tamanho de nossa economia. Para efeito de comparação, a França compartilha apenas com a Alemanha uma corrente de comércio de 8% da sua economia.
Como se sabe, o comércio é uma importante maneira de integrar sociedades. Como Thomas Friedman brinca em sua “teoria dos arcos dourados” (que alega nunca ter havido guerra entre dois países que possuem um McDonald’s, símbolo do capitalismo americano), o comércio é um importante mantenedor da paz e uma porta de entrada para novas tecnologias e o desenvolvimento.
Em um continente em crises constantes, a ausência de integração amplia os eventuais problemas. Como somos quase todos dependentes de exportações primárias, a economia da região segue a onda de preços de commodities, ditados em outros continentes com poder de barganha maior.
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Na prática, tentativas de integração não foram muito frutíferas. Em relação ao PIB, nosso comércio com a Argentina, por exemplo, se manteve desde a criação do Mercosul.
Nos últimos anos, face às frustradas tentativas do país vizinho de escapar de problemas como a inflação e uma desvalorização colossal de sua moeda, a integração deu lugar a concorrência.
Mesmo nossas trocas comerciais são alvo de ataques pela Argentina que, nas últimas décadas, à medida em que sua crise avançava, impôs restrições ao comércio com o Brasil, criando barreiras a entrada de produtos manufaturados.
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A turbulência política no país vizinho contribui, senão para garantir um crescimento conjunto, para ressaltar que, apesar dos pesares, o Brasil ainda é de longe um dos países mais estáveis da região.
Nossos problemas de educação e formação de mão de obra existem e superam outros concorrentes na região (temos 84% da população alfabetizada contra 97% dos hermanos argentinos), mas ainda assim, são parcialmente compensados pela estabilidade econômica.
Sim, eu sei, não é algo tão óbvio. Afinal, lembranças de hiperinflação e preocupação com o câmbio não fazem parte do cotidiano dos brasileiros, ao contrário da educação ou segurança. Mas, na prática, nossa economia já passou por boa parte das reformas que outros países da região ainda lutam por conseguir.
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Não por coincidência, o Brasil integra o grupo de 25 economias mais favoráveis para se investir no mundo. Somos o único país latino-americano nessa condição, de acordo com a consultoria A.T. Kearney.
Em números totais, ficamos em 4º lugar no mundo, com US$ 78 bilhões em investimentos produtivos em 2019 (contra US$ 11,7 bilhões da Argentina e US$ 38,9 bilhões do México, os maiores concorrentes da região).
Com uma hiperinflação que obriga o governo a importar cédulas de pesos, tamanha a velocidade com que elas de desvalorizam, a Argentina se perde entre uma inflação acumulada de 43,8% nos últimos 12 meses, contra 1,88% do Brasil, e uma taxa de juros de 38%, contra 2.25% no Brasil.
Note, porém, que o juro pago pelo governo por lá é inferior à inflação, o que na prática faz da Argentina o país com menor taxa de juros do planeta, e cria uma impossibilidade de financiamento saudável da dívida, forçando o país vizinho a recorrer a uma prática abolida pelo Brasil nos anos 90, a de financiar gasto público por meio da impressão de moeda.
Para piorar, o governo local ainda insiste em práticas como congelamento de preços, também abolidas por aqui há décadas (apesar de ter seus defensores ainda hoje).
Não é coincidência, portanto, que a frequência do idioma espanhol tenha diminuído nas praias catarinenses.
O resultado de tudo isso é que não apenas a Argentina repele investimentos produtivos, como também perde aqueles conquistados nos últimos anos.
Desde que a crise no país vizinho voltou a se agravar, inúmeras empresas têm deixado o país e se instalado no Brasil.
Casos como o da Saint-Gobain, a empresa francesa que nasceu como responsável pela produção da vidraçaria no Palácio de Versailles e hoje produz vidros para carros e vende materiais de construção, além de empresas como Basf e Axalta, também atuando no setor automático, são apenas a ponta do iceberg.
Em 2016, a mesma Saint-Gobain que agora suspendeu a produção até uma “melhora do mercado local”, havia investido US$ 200 milhões para operar no país.
Entre 2010 e 2019 a moeda local se desvalorizou 1.675%, tornando mais difícil a recuperação do capital investido. Por meados de 2012, o CQC argentino (programa que originou o de mesmo nome no Brasil), chegou a brincar com o quão comum é para os argentinos usarem o dólar para operações no dia a dia, algo que é impensável para os brasileiros.
Em meio à crise do Covid-19, as reações também têm sido bastante complicadas, levantando a incertezas quando o assunto é a economia.
O governo local anunciou a estatização de um dos maiores grupos agrícolas, a suspensão de contas em dólar (justamente a moeda que os argentinos usam como proteção), e se prepara para o que pode ser seu 10º calote na história.
Em 4 de agosto, a Argentina encerra o prazo para uma renegociação de US$ 65 bilhões com o FMI. Trata-se de um valor maior que toda a dívida externa pública brasileira (em torno de US$ 40 bilhões, ou 2% do PIB), mas apenas uma fração da dívida total Argentina (de US$ 320 bilhões, ou 50% do PIB).
O problema nisso tudo, porém, é que ao mesmo tempo em que os problemas vizinhos ressaltam algumas qualidades brasileiras (como a liberdade de imprensa e de dados públicos, que por aqui possuem maior confiabilidade), ainda corremos um risco que os economistas chamam de “Efeito Orloff”.
A brincadeira tem origem no slogan da fabricante russa de vodka, que durante os anos 90 era “Eu sou você amanhã” (em referência a ressaca quase certa no dia seguinte). No economês, o exemplo virou o seguinte: um país emergente que entra em crise abala a confiança nos emergentes de uma maneira geral.
Isso ocorre porque estes países têm uma estrutura econômica, via de regra, parecida. São países exportadores de commodities e com contas externas quase sempre no vermelho.
Essa, entretanto, não é uma sentença fatal. Estamos hoje em uma situação muito melhor do que em outras épocas, como os anos 90, ou nos 80, quando a queda no preço do petróleo levou à chamada “década perdida” (termo que surgiu no México e se espalhou pela América Latina inteira).
É bem verdade que outras economias do continente encontram fases mais positivas, como é o caso da Colômbia, Chile e Peru. Ainda assim, os 3 estão distantes em tamanho e peso econômico na região como os 3 exemplos citados aqui (Brasil, Argentina e México).
A grande questão para o Brasil nos próximos anos será, portanto, sua capacidade de consolidar a sua boa forma por meio de estabilidade entre as instituições e mostrar ao restante do mundo que somos, ao menos na América Latina, uma boa opção para investidores.
Em um mundo onde os conflitos entre EUA e China se acirram, teremos de encarar com seriedade as discussões, e é aí que entra o perigo.
Neste exato momento a Embraer se vê encurralada com uma possível sanção americana à venda de 20 jatos para o Irã, no valor de US$ 1 bilhão. O governo brasileiro, entretanto, demonstra estar alinhado ao governo americano, o que levaria a problemas ainda maiores em uma de nossas mais competitivas empresas.
Em um mundo onde as duas maiores potências do planeta disputam poder abertamente, a posição do Brasil é delicada. Ao contrário da guerra fria, em que não possuímos qualquer relação relevante com os soviéticos, no momento atual a China é nossa maior parceira comercial.
Temos uma boa oportunidade de nos consolidarmos como um país apto a receber investimentos que irão olhar para a China de maneira cautelosa, ao mesmo tempo em que tenhamos uma relação comercial com o país asiático.
Como o cenário atual na América Latina demonstra, somos uma opção viável para ambos os casos, seja para investidores internacionais, seja para o comércio.
Resta saber se este fino equilíbrio será mantido ou se mais uma vez jogaremos pela janela uma oportunidade relevante de desenvolvimento.
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