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Walter Payton (1954-1999) foi um daqueles atletas raros, cujo legado se sobressai dentro e fora dos gramados da NFL, a liga de futebol americano dos Estados Unidos.
O nome do jogador batiza o título de “Homem do Ano” concedido anualmente pela liga para destacar a atuação dos atletas de futebol americano em causas filantrópicas.
Pode parecer um detalhe, mas a homenagem faz a filantropia garantir seu espaço de honra em um esporte reconhecido por fazer garotos de origem humilde se transformarem em astros multimilionários.
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O prêmio de US$ 500 mil, que é integralmente destinado a uma instituição de caridade, é disputado fervorosamente pelos torcedores de cada time da liga, que podem votar e ajudar a causa escolhida pelo jogador.
Por aqui, onde o futebol é um símbolo nacional que movimenta R$ 52,3 bilhões anuais na economia (coisa de 0,8% do PIB), a filantropia tem um status muito menor.
Nos acostumamos a descobrir as histórias de superação dos atletas, mas os projetos sociais ainda se restringem aos indivíduos, não às instituições.
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Há belas iniciativas ligadas aos nossos esportistas. Existe até mesmo disposição para doar, como Neymar mostrou há poucas semanas ao destinar R$ 5 milhões ao combate contra o Covid-19. Mas o que nos falta, ainda, é uma cultura de filantropia.
A boa notícia em meio a pandemia é que, apenas nos últimos 30 dias, empresas e famílias brasileiras já levantaram R$ 3,1 bilhões em doações para a compra de equipamentos e ajuda aos desassistidos pela paralisação da economia.
Apenas em lives de artistas nacionais no YouTube foram levantados R$ 166 milhões, doados principalmente em forma de alimentos.
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A lição dos EUA
O valor arrecadado no Brasil em um mês na luta contra o Covid equivale a 1 ano e meio de doações para a filantropia em anos “normais”. Trata-se de uma quantia relevante e bem distribuída.
Por ano, doamos R$ 2,1 bilhões para causas ligadas a educação, saúde, esporte etc. O número equivale a 0,03% do PIB brasileiro e está em linha com países como o México, por exemplo.
Mas nos Estados Unidos, símbolo máximo do capitalismo e da ganância para alguns, as doações correspondem a 1,44% do PIB, totalizando US$ 427 bilhões anuais.
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Em outras palavras, os americanos doam a cada 8 horas o mesmo que os brasileiros doam ao longo de um 1 ano.
Trata-se de uma quantia impressionante até mesmo para países ricos.
Americanos doam o quase 3 vezes o que doam os britânicos (0,54% do PIB), 9 vezes mais do que os alemães (0,17%), e 13 vezes mais do que doam franceses e noruegueses (0,11%), dois países exaltados por seu Estado de bem-estar social.
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As doações de americanos para filantropia assustam, e muito, quando colocadas em perspectiva.
Por ano, famílias e empresas americanas doam voluntariamente para a educação o suficiente para bancar todas as universidades brasileiras durante 6 anos (R$ 310 bilhões).
Doações para a saúde somam R$ 207 bilhões, ou 40% mais do que o orçamento do Ministério da Saúde brasileiro. Os americanos doam ainda outros R$ 110 bilhões para instituições culturais, 30 vezes o orçamento da nossa Secretaria da Cultura.
A quantidade de doações é tão grande que até criam alguns paradoxos.
As tradicionais universidades da Ivy League, o grupo de elite do ensino superior americano, estão abarrotadas de grana doada por seus ex-alunos.
Sozinha, Harvard possui em seu caixa mais dólares do que o governo francês: o endowment (fundo que administra os recursos doados) da universidade acumula US$ 42 bilhões, enquanto a França tem US$ 38 bilhões em suas reservas.
O resultado é que a universidade mais conhecida e mais bem ranqueada do planeta, com 160 prêmios Nobel, pode se dar ao luxo de garantir US$ 0 de cobrança para 20% de seus alunos.
Sim, você não leu errado: um aluno cuja renda familiar seja de até US$ 65 mil dólares anuais (R$ 350 mil), pode estudar em Harvard de graça, bancado pelas doações de ex-alunos.
No Brasil, a prática é adotada por instituições sem fins lucrativos como o Insper, que tem entre seus fundadores Jorge Paulo Lemann, que é ex-aluno de Harvard. A instituição nacional garante bolsas de estudo integral para 16% dos seus alunos,.
Nos Estados Unidos, toda essa história com doações e filantropia tem o que se pode chamar de um marco zero no início do último século, com dois magnatas de origem humilde que se tornaram não apenas os homens mais ricos de seu tempo, como possivelmente da história: Andrew Carnegie e John Rockefeller.
Mas se os magnatas do início do século 20 focaram seus esforços em construir bibliotecas (Carnegie construiu 2.800 delas) e universidades (Rockefeller fez a doação que levantou a Universidade de Chicago), hoje o mais importante é gerar impacto de maneira diversa.
Criada pelo casal Bill e Melinda Gates, a iniciativa “Giving pledge”, que leva seus membros a doarem a maior parte de sua fortuna, já conta com 204 bilionários e milionários ao redor do mundo, incluindo o bilionário brasileiro Elie Horn, fundador da construtora Cyrela.
Ao todo, o patrimônio daqueles que se comprometeram com a iniciativa já soma US$ 1,07 trilhão, gerando no mínimo US$ 500 bilhões em doações no futuro.
No Brasil, a despeito de ainda engatinhar, as ações do tipo tem crescido. Em 2018, por exemplo, o Brasil ganhou seu primeiro endowment voltado para a ciência, o Instituto Serrapilheira.
O documentarista João Moreira Salles, herdeiro do Unibanco, e sua mulher, a linguista e professora Branca Vianna Moreira Salles, doaram R$ 300 milhões para financiar projetos em áreas como física e matemática.
Ao ressaltar que o Brasil forma mais cineastas do que matemáticos todos os anos, João Moreira Salles demonstra interesse em mudar essa realidade.
Qualquer um pode ser filantropo
Ao contrário do que possa parecer, e me desculpe se lhe causei ou reforcei a impressão errada, filantropia nem de longe é um papo de bilionários.
Causas que envolvam o voluntariado ainda são a maioria das doações: 4,3% dos brasileiros se envolvem em algum trabalho voluntário, contra 64% dos millennials (nascidos entre 1980 e 1995) e 71% dos boomers (nascidos entre 1946 e 1965) dos EUA.
Mudar essa realidade é um passo fundamental para o Brasil, já que precisamos nos comprometer a construir uma cultura quase do zero.
Lembra-se de Harvard, onde você poderia estudar pagando US$ 0 se sua família tivesse uma renda inferior a média americana? Também 0 seria sua chance de conseguir uma bolsa por lá sem histórico de apoio a trabalho voluntário.
Dessa institucionalização da filantropia como “obrigação” nasce a boa vontade de muitos. Sejamos sinceros: seres humanos são movidos a incentivos. Apelar a nós mesmos sempre é o meio mais efetivo de obter bons resultados.
Quer um exemplo?
Em 2011, o Reino Unido reuniu um time de psicólogos, sociólogos e outros especialistas para descobrir como convencer as pessoas a doarem seus órgãos, algo que não exige esforço, nem custo.
Na pesquisa, especialistas mostraram algumas frases aos participantes, como “Todos os dias 3 pessoas morrem por falta de doadores de órgãos” e “Você pode salvar ou transformar até 9 vidas doando órgãos”.
Ambas são bastante chocantes, convenhamos. Mas nenhuma teve o mesmo impacto que outro slogan selecionado pela equipe: “Se você precisar de um transplante de órgãos, você gostaria que houvesse um disponível? Se sim, assine aqui e ajude outras pessoas”
O resultado? O NHS, o SUS britânico, passou a receber 100 mil novos doadores a mais por ano.
Apelar para nossos sentimentos pessoais pode parecer rude. E, como as redes sociais mostram, nosso instinto de criticar quem doa é bastante arraigado.
Como se fossemos fiscais da caridade alheia, vimos nas últimas semanas matérias denunciando doações de empresas como a Ambev, por supostamente fazerem publicidade em frascos de álcool-gel, ou minimizando a doação de R$ 1 bilhão feita pelo Itaú, valor que seria “apenas” 3% do lucro do banco.
Para piorar, muitos ainda levantam o dedo para dizer que “empresas não fazem isso por amor ou bondade, mas por publicidade”, como se fosse uma grande revelação a qual poucos tivessem acesso.
Sim, caro leitor, pode parecer estranho, mas seu banco não lhe ama. A empresa de cervejas e a construtora também não nutrem qualquer sentimento de paixão por você.
Mas isso não importa.
No fim do dia, o que importa não é a intenção, facilmente falseável, mas a ação. O ato do cantor que arrecada milhões na live importa muito mais para as famílias carentes que recebem cestas básicas do que a boa intenção do jovem que critica o artista na internet.
Mas sabe o que há de melhor nisso tudo? É muito mais fácil apelar para o auto-interesse das pessoas em ficarem em paz consigo mesmas, doando e apoiando iniciativas sociais de impacto do que apelar para sentimentos complexos como o amor ao próximo.
No futuro, podemos construir uma sociedade na qual os incentivos apontem para valorizar quem impacta vidas positivamente. Para isso, basta abraçar a oportunidade que está aqui na nossa frente.
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