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Em 10 de setembro de 2014, José Pepe Mujica, então presidente do Uruguai, desembarcou em Porto Alegre.
Mujica falaria para uma multidão emocionada na UFRGS, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, composta, em essência, por estudantes mais à esquerda, empolgados com as mensagens e a liderança do ex-guerrilheiro que agora governava o país vizinho.
O discurso lotou o auditório da faculdade, como ocorreriam outras vezes em universidades brasileiras.
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Um fato curioso, entretanto, marca a data: em 8 de setembro, 2 dias antes, Mujica estava em Montes del Plata, inaugurando uma fábrica de celulose resultante de um investimento de US$ 2,7 bilhões.
O empreendimento foi liderado pela sueco-finlandesa Stora Enso e a chilena Arauco. Trata-se de um projeto polêmico, que seis anos antes havia sido oferecido ao próprio Rio Grande do Sul.
Por aqui, o empreendimento foi fortemente combatido, com pressões de sindicatos, estudantes, políticos e ativistas que afirmavam que a fábrica criaria um “deserto verde” nos pampas.
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No Uruguai de Mujica, a multinacional encontrou um cenário totalmente distinto.
A despeito de seu passado como guerrilheiro, ligado a um grupo de socialistas, maoístas e anarquistas, Mujica fez um governo entediante. Uma síntese do próprio Uruguai.
O país que há 40 anos possui exatamente a mesma população de 3,3 milhões de habitantes e que há quase dois séculos se tornou independente do Brasil é, no melhor dos sentidos, um marasmo absoluto.
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A população não cresce, a inflação segue sob controle, a economia não tem sobressaltos e a política possui um negócio que você, morando no Brasil, talvez não lembre mais o que é: políticos que discutem ideias.
No continente que elegeu Pedro Carrilo, Nicolas Maduro, Alberto Fernandez e Jair Bolsonaro, o Uruguai se destaca pelas transições de poder pacíficas e pouco (para não dizer nenhum) extremismo.
A cena de militantes pró-Tabaré Vasquez acenando bandeiras em frente a militantes pró-Lacalle Pou (que você pode conferir clicando aqui), dá uma ideia de como foi a última transição no país.
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A vitória de Lacalle Pou, de centro-direita, sobre Tabaré Vasquez, de centro-esquerda, marcou o fim de um período de 14 anos de governo de esquerda no país.
Pou assumiu prometendo rever algumas posições diplomáticas do país. Condenar com veemência a ditadura venezuelana, algo que seus antecessores de esquerda se recusaram, além de buscar maior independência em relação ao Mercosul, abalado por discussões entre Brasil e Argentina.
Seu mandato, entretanto, começou no fatídico março de 2020, quando a pandemia da Covid-19 chegou ao continente.
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Foi nesse cenário, com pouco mais de um mês de governo, que Tabaré, o ex-presidente e candidato derrotado, chegou ao palácio do governo com um envelope debaixo do braço. Duas semanas depois, Pou visitou a residência do ex-presidente. Conversaram por duas horas e se despediram.
No dia seguinte, o presidente anunciaria as medidas contra a pandemia. Boa parte delas estava presente no envelope entregue por seu antecessor. Sem qualquer exigência ou disputa por protagonismo, mas em busca apenas de um mero consenso.
A luta do país contra a pandemia rendeu bons frutos. As primeiras ondas do coronavírus, que atacaram pesadamente Brasil e Argentina, pouco afetaram o país vizinho, que iniciou a vacinação de forma acelerada. Ao final de julho, 60% dos uruguaios já havia tomado duas doses do imunizando, número superior ao dos Estados Unidos e quase 4 vezes maior que o do Brasil.
As discussões sobre o caso uruguaio, entretanto, não se resumem a um cenário de exceção como a pandemia.
Trata-se de um país com um problema demográfico grave. Sua população está estagnada. Ela não cresce há 40 anos e está envelhecendo.
Foi para enfrentar esse desafio que Lacalle Pou recebeu o comando do país. Algumas de suas medidas foram aprovadas mesmo num ano atípico como o de 2020.
Em abril de 2020, o governo enviou ao congresso uma lei com 520 artigos, chamada de “LUC” (Lei de Urgente Consideração, na tradução).
A lei estabelece uma espécie de teto de gastos, além da redução no número de funcionários públicos.
No campo da educação, as 68 reformas propostas reduziram a participação dos sindicatos na tomada de decisões. Já na segurança, 96 artigos elevam, entre outras medidas, as penas para diversos tipos de crimes, criam registros nacionais para estupradores e aumentam os casos onde os policiais podem utilizar armas em legítima defesa.
A proposta foi aprovada em cerca de três meses. A oposição foi, para os níveis do país, relativamente pesada, mas não no Parlamento. Grupos estudantis e sindicatos se mobilizaram nas ruas, apesar de mudanças e adaptações terem sido votadas com apoio da frente de esquerda.
Dentre as inovações adotadas, está a aceitação de moeda estrangeira em conta corrente no país e a diminuição de exigências para obtenção de vistos. Essas medidas estão entre as que mais afetam os brasileiros que moram, ou pretendem se mudar, para o Uruguai.
Os 14 anos de gestão da Frente Ampla terminaram em 2020 com poucas críticas às medidas adotadas por parte do empresariado e da oposição. Há de se reconhecer, como lembram líderes políticos locais, que a maior parte dos erros estão em “não ação”.
Mujica e Vázquez governaram o país com respeito à macroeconomia e passaram longe das invenções brasileiras que levaram a crise de 2015 e 2016 por aqui, mas também avançaram pouco sobre reformas como a da Previdência.
Em um país cuja população está envelhecendo rapidamente, impedir que as contas entrem em uma espiral negativa é algo imperativo, e que não foi realizado no período.
As reformas que cabem a Lacalle Pou, portanto, dizem respeito a avançar em medidas deixadas em segundo plano, muito mais do que desfazer ações de seus antecessores, como tradicionalmente ocorre no Brasil.
Essa vantagem estratégica deve ser importante, na medida em que o país vizinho busca uma maior liberdade para negociar acordos comerciais, não se limitando a agenda de países como Brasil e Argentina.
O clima de estabilidade, que já rendeu ao Uruguai o título de “Suíça da América do Sul” no passado, parece estar contribuindo também para atrair milionários argentinos, que veem o seu país natal ser cada vez mais dragado pela inflação e medidas restritivas do governo.
Enquanto Alberto Fernandez promulgava seu “imposto solidário”, para confiscar ao menos 1% do patrimônio dos mais ricos na Argentina, o Uruguai recebeu por volta de 20 mil argentinos.
Pode parecer pouco, mas considerando a escala, considere como seria se. em um espaço de três meses, 1 milhão de pessoas decidissem vir morar no Brasil.
A obrigação de investimento para garantia da cidadania no país caiu de US$ 5 milhões para US$ 1,6 milhão e, a de propriedades, de US$ 1,5 milhão para US$ 380 mil. Em suma, o Uruguai está tentando atrair pessoas para contornar seus problemas demográficos.
De quebra, em julho deste ano o país anunciou que iria se distanciar do Mercosul para buscar acordos comerciais de maneira independente, sem se deixar afetar pelas lambanças diplomáticas de Brasil e Argentina.
Sem perder o foco nas discussões relevantes ou se distrair com rixas políticas, o Uruguai continua sendo um país pacato, “chato” e seguro do que quer para si.