O que a Boate Kiss ensina sobre o caso Brumadinho

Pouco após o incêndio na Boate Kiss, em 2013, a Assembleia Legislativa do RS aprovou uma lei exigindo diversos procedimentos burocráticos para prevenção de incêndios em edifícios gaúchos. Mas a comoção popular após o incêndio parece ter levado deputados a desprezar ponderações práticas na hora de aprovar a lei. As exigências se mostraram inviáveis e a regulação aprovada em 2013 já foi substancialmente alterada.

Pedro Menezes

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No último fim de semana de janeiro, a imprudência de uma empresa matou centenas de inocentes. A mesma descrição cabe em duas tragédias: o incêndio que matou 242 jovens em Santa Maria e o rompimento de uma barragem em Brumadinho, Minas Gerais, onde segue incompleta a contabilidade dos corpos.

São claras as diferenças entre Vale e Kiss, mineração e sertanejo universitário, entre boate, rios e Mata Atlântica. A semelhança está principalmente nos corpos empilhados, nas famílias destruídas e na demanda social por leis que dificultem a repetição de pesadelos evitáveis.

É natural que assim ocorra. Infelizmente, a legislação que rege a prevenção de incêndios, acidentes aéreos e crimes ambientais costuma avançar quando tragédias acontecem. A morte de 123 passageiros no voo Varig 820, incendiado em 1973 por uma bituca de cigarro acesa no lixo do banheiro, foi crucial para a proibição do fumo em aviões de todo o mundo. O luto é fundamental para a melhoria da regulação.

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Depois dos casos de Mariana e Brumadinho, o Congresso Nacional provavelmente precisará trabalhar em novas regras para barragens de mineração. Antes de pareceres técnicos sobre o que ocorreu, é difícil saber o que vai mudar. E, novamente, é natural que isto ocorra.

Foi o que aconteceu após o incêndio na Boate Kiss. A Lei Complementar 14.376, de 2013, estabeleceu diversas normas para prevenção de incêndios no Rio Grande do Sul.

Criou-se, por exemplo, o Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndio – COESPPCI -, ligado ao Corpo de Bombeiros gaúcho. Alvarás para construção e reformas se tornaram mais difíceis por conta de exigências relativas à prevenção de incêndios. Anos depois, já no governo Temer, uma lei federal foi criada para o assunto.

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Problemas na lei gaúcha

A lei aprovada em 2013 exigia, em toda renovação de alvará, que um engenheiro ou arquiteto fosse contratado para assumir a responsabilidade técnica pela prevenção de incêndios no local. Mesmo que o estabelecimento não alterasse suas instalações elétricas ou nada que afetasse a probabilidade de incêndio no local.

Em resumo, foram criadas diversas obrigações para que toda e qualquer edificação se adequasse a rígidos padrões de prevenção de incêndio. O Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (APPCI) era exigido até mesmo em pequenas construções e reformas, independente do risco de incêndio no local. A obtenção do APPCI dependia de um processo caro e burocrático que rapidamente começou a dificultar novas construções no estado.

A lei original pode ser lida neste link. Como o leitor deve reparar, boa parte do texto está riscado. Desde então, duas novas leis alteraram o texto original, em 2014 e 2016.

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A última alteração – Lei Complementar 76/2016 – foi aprovada por 39 votos a 1 na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Uma quase unanimidade que se deve ao reconhecimento da inadequação da lei anterior.

Muito do espírito da lei de 2013 foi mantido. O incêndio na Kiss foi causado pela combinação de um material acústico inflamável com o uso de fogos de artifício dentro da boate. A legislação agora leva em conta o material de construção do prédio, não apenas seu tamanho e capacidade. Os procedimentos de prevenção mais comuns nos Estados Unidos e Europa passaram a ser adotados em solo gaúcho.

Mas agora, além da licença APPCI, existe outra, menos burocrática e que pode ser aprovada pela internet, reservada aos casos de construções pequenas, de baixo risco. As exigências pensadas em 2013 se mostraram inviáveis do modo como foram originalmente pensadas.

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A lei de 2016 alterou extensamente a de 2013. Hoje, os próprios deputados reconhecem os exageros do texto original, aprovado sob comoção popular após a morte de 242 jovens. E isso deve servir de lição para o caso Brumadinho.

As lições para o caso Brumadinho

Antes de mais nada, vale um esclarecimento: não defendo aqui que a lei deve se manter inalterada. Algumas regulações sobre barragens de mineração devem ficar mais duras assim que soubermos o que causou o rompimento em Brumadinho.

Os laudos técnicos devem embasar alterações legais. Os responsáveis pelas mortes, pela destruição do meio ambiente e propriedades privadas devem ser firmemente punidos. As vítimas precisam receber uma reparação rápida e efetiva. Nada disso se discute.

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A lição da Boate Kiss para o caso de Brumadinho é outra: não adianta aprovar leis excessivamente burocráticas para atender ao apelo popular. Um excesso de burocracia atrapalhará o próprio cumprimento da lei original, levando a mudanças no texto em poucos anos.

E pior: pode até agravar os problemas que se tentava resolver. Imagine o leitor a possibilidade, não tão improvável, da Câmara aprovar um projeto de lei que exija procedimentos excessivos para a reforma de barragens, encarecendo desnecessariamente o reparo das mesmas. Assim que o crime de Brumadinho for esquecido, tais exigências incentivariam mineradoras a negligenciar reparos em barragens, dado o custo.

Em outras palavras, as necessárias e inevitáveis mudanças regulatórias que virão não devem se basear em agrados ao público, mas na melhor evidência disponível para casos do tipo em outros lugares do mundo, na opinião de estudiosos e laudos técnicos.

No caso da boate Kiss, a lei que sucedeu o incêndio exigia diversos procedimentos irrazoáveis para atender ao anseio popular. Se o mesmo for feito no caso Brumadinho, se houver mais demanda popular por burocratização do que pela responsabilização dos criminosos, o Congresso pode acabar contratando novos desastres, ao invés de uma solução séria para o problema.

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Pedro Menezes

Pedro Menezes é fundador e editor do Instituto Mercado Popular, um grupo de pesquisadores focado em políticas públicas e desigualdade social.