É hora de acabar com a lei da meia entrada

Pensando em ir ao Lollapalooza esse ano? Prepare-se então para desembolsar "míseros" R$800 para ver suas bandas preferidas em Interlagos, enquanto seu amigos chilenos pagam a metade! Quem é o culpado de tudo isso, e o que tem a ver com a política brasileira? Dica: a meia entrada e os bons e velhos amigos do Rei! Confira no artigo do Terraço Econômico.

Terraço Econômico

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Multidão em show do Lollapalooza
Multidão em show do Lollapalooza

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O dia 31 de agosto deste ano já está marcado na história brasileira como aquele em que se consumou o impeachment da agora ex-presidente Dilma Rousseff. Coincidentemente, neste mesmo dia eram anunciados os valores dos ingressos para o próximo Lollapalooza, um dos maiores festivais de música do país, realizado anualmente em São Paulo. O que uma coisa tem a ver com a outra?

A um preço de R$ 800 para os dois dias de festival[1] – um acréscimo de mais de 20% em relação ao ano anterior – o valor foi considerado abusivo por grande parte do público alvo do evento, causando grande indignação [2]. Foi criticado não somente o valor em si, considerado desproporcional, mas também a suposta elitização do evento, com a exclusão do público de mais baixa renda.

Essa percepção quanto ao valor do ingresso é bastante justificada. Comparada às edições argentinas e chilenas do festival – que em 2016 custaram o equivalente a R$405 e R$505, respectivamente – o Lollapalooza brasileiro tem custo de fato elevado [3]. Mesmo comparado à edição americana, realizada em Chicago (onde a renda média da população é consideravelmente maior), o valor assusta: os amantes de rock’n roll da metrópole americana pagaram cerca de R$1080 este ano, porém com o diferencial que usufruíram de quatro dias de festival, ao invés dos dois dias de música no Autódromo de Interlagos [4].

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Em meio à indignação, entretanto, cabe a pergunta: por que é que o ingresso do Lollapalooza tupiniquim tem valor tão destoante em relação a seus primos gringos? Partindo da premissa de que os empresários responsáveis por todas as versões do festival visam maximizar seu lucro, por que é que estes parecem conseguir cobrar um valor tão mais elevado no Brasil?

A resposta encontra-se, em grande parte, na nossa lei de meia entrada. Enquanto nas edições argentina, chilena e americana do festival todos os frequentadores pagam o valor integral da entrada, na edição brasileira nada menos que 95% do público (dados da edição 2013) obtém seu ingresso pela metade do valor. Nesta mesma edição de 2013, a organização do festival havia afirmado que o valor “justo” para o passe de um dia de festival girava em torno de R$175; como o preço real e integral cobrado foi de R$350, 95% do público pagou exatamente o mesmo preço que teria pago se a tarifa “justa” fosse seguida. Em outras palavras: 95% pagaram metade do dobro. Os outros 5% pagaram o dobro mesmo [5].

Este fato não deveria surpreender a ninguém com um mínimo de conhecimento de teoria microeconômica. Os custos de um empresário – seja ele dono de um cinema, teatro, time de futebol ou festival de música – são fixos. E não é uma canetada do governo que tem o poder de fazer esses custos baixarem. Confrontado com a obrigatoriedade de conceder entrada à metade do valor a boa parte do público, resta ao empresário uma opção: aumentar o valor integral do ingresso, de forma a compensar a queda de arrecadação.

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Não é de se surpreender que nosso país – caso único de país que tem em lei a obrigatoriedade de se conceder meia entrada a qualquer um que apresente documento estudantil – não é líder mundial apenas no custo de festivais de música. Segundo levantamento de 2011 realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, uma ida a uma sala de cinema paulistana custa mais caro que programa equivalente em Nova York, Paris e Tóquio. Por aqui, cerca de 70% dos ingressos vendidos são meia entrada. Não fosse por ela, estima-se que o valor do ingresso cairia em 35-40% [6].

E não para por aí. Um levantamento de 2005 da Fundação Getúlio Vargas mostra que em todas as capitais do país o aumento dos ingressos de eventos culturais havia superado em muito a inflação – e a influência da meia entrada neste aumento é unânime entre os empresários do setor [7]. E não pense que este fenômeno está restrito a eventos culturais: se você gosta de assistir futebol em estádio, também está saindo no prejuízo. Em 2008, 40% dos ingressos para os clássicos entre os quatro grandes paulistas foram vendidos pela metade do valor; no Rio, esta fatia subia para 60%. Os presidentes dos clubes são unânimes em apontar esta como uma das principais causas do valor elevado dos ingressos [8].

Se a lei de meia entrada já é estúpida do ponto de vista econômico, ela também é altamente regressiva do ponto de vista social. Como as camadas sociais mais abastadas tendem a manter o status de estudante por mais tempo – seja pelas taxas mais altas de ensino médio completo, pelo maior acesso ao ensino superior, ou pela possibilidade financeira de arcar com cursos de especialização – são elas as grandes beneficiadas pelo desconto estudantil obrigatório. De acordo com o Censo 2000, realizado pelo IBGE, um empregador tem, em média, mais de dez anos de estudos, enquanto um(a) trabalhador(a) doméstico(a) sem carteira assinada não chega nem a cinco [9]. Um estado da Fundação Getúlio Vargas deixa ainda mais clara a correlação entre anos de estudo e renda: segundo os pesquisadores, cada ano de estudo corresponde a um aumento da ordem de 15% na renda [10]. É importante observar que, nesta análise, a ordem da causalidade é irrelevante. Independentemente de uma maior renda familiar propiciar mais anos de estudo, ou de mais anos de estudo posteriormente levarem a um aumento de renda, o fato é que os grandes beneficiados da política de meia entrada são aqueles que, agora ou futuramente, pertencem ou pertencerão ao topo da pirâmide social.

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O cenário criado por essa política é altamente representativo das  incongruências das políticas sociais brasileiras: enquanto um estudante de pós-graduação de família de classe A ou B (que provavelmente já se beneficia de mensalidade gratuita paga com dinheiro de impostos dos mais pobres em uma universidade pública) ainda consegue ver sua banda de rock favorita tocar por metade do valor, um ajudante de pedreiro de classe C ou D é forçado a pagar o valor inteiro do ingresso, já altamente inflacionado devido a esta mesma lei. Tristemente, são justamente organizações estudantis ditas defensoras da “justiça social”, como a UNE e a UBES, as maiores defensoras desta política regressiva.

Voltando à pergunta inicial do texto – o que tudo isto tem a ver com o processo de impeachment recentemente concluído? Visando recolocar nossa cambaleante economia de volta nos trilhos, o novo governo já anunciou seu objetivo de aprovar reformas estruturais necessárias, porém polêmicas, como a da previdência e a trabalhista. Não surpreendentemente, estas reformas já encontram resistência de grupos de interesse organizados e influentes, como servidores públicos contemplados com regras diferenciadas de aposentadoria e sindicatos.

O problema é que engana-se quem pensa que são apenas estes grupos que gozam de privilégios obtidos às custas de toda a população. Dentre regras de previdência diferenciadas para servidores públicos, idade mínima de aposentadoria diferenciada para homens e mulheres, juros subsidiados a grandes empresários, entre tantas outras políticas que visam grupos específicos, quase todos recebemos algum tipo de privilégio. A lei da meia entrada estudantil é apenas mais um exemplo desta prática tão corriqueira: programas onerosos e ineficientes, com altos porém difusos custos, e benefícios pequenos porém concentrados – e que, justamente por isso, são defendidos com unhas e dentes por seus recipientes.

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Se o novo governo sonha em ser bem-sucedido em sua tentativa de reerguer a economia brasileira até 2018, precisará ter a coragem necessária para enfrentar estes diversos grupos de interesse. Mas se nós, como país, decidirmos que chegou a hora de parar de tomar medidas paliativas e prezar pela racionalidade econômica, sob pena alternativa de nos autocondenar a permanecer perpetuamente aquém de nosso potencial, chegou também a hora de olhar para os nossos próprios umbigos e questionarmos nossos próprios privilégios. Pense nisso na próxima vez que você for ver sua banda de rock favorita.

Beni Fisch,
formado em ciência política e história pela Universidade McGill, e mestre em Economia Política Internacional pela LSE 

Referências:

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[1]http://g1.globo.com/musica/lollapalooza/2017/noticia/2016/08/lollapalooza-2017-ingressos-serao-vendidos-partir-de-12-de-setembro.html

[2]http://www.guiadasemana.com.br/shows/noticia/lollapalooza-brasil-anuncia-preco-de-ingresso-para-2016

[3]https://www.lollapaloozaar.com/tickets/

[4]http://time.com/money/4135166/lollapalooza-2016-tickets-more-expensive-extra-day/

[5]https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/95-dos-ingressos-vendidos-no-lollapalooza-eram-meia-174136311.html

[6]http://brasil.elpais.com/brasil/2014/08/16/cultura/1408209653_575294.html

[7]http://oglobo.globo.com/cultura/preco-de-ingressos-para-eventos-culturais-no-rio-superou-inflacao-desde-2000-9341749

[8]http://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk1204200816.htm

[9]http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022010000200006

[10]http://www.cps.fgv.br/ibrecps/iv/midia/kc1654.pdfx

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Terraço Econômico

O Terraço Econômico é um espaço para discussão de assuntos que afetam nosso cotidiano, sempre com uma análise aprofundada (e irreverente) visando entender quais são as implicações dos mais importantes eventos econômicos, políticos e sociais no Brasil e no mundo. A equipe heterogênea possui desde economistas com mestrados até estudantes de economia. O Terraço é composto por: Alípio Ferreira Cantisani, Arthur Solowiejczyk, Lara Siqueira de Oliveira, Leonardo de Siqueira Lima, Leonardo Palhuca, Victor Candido e Victor Wong.