“Não importa o que aconteça, as reformas têm que continuar”

Entenda os motivos que explicam a grande necessidade das reformas que o governo está promovendo

Terraço Econômico

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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* Por Rafael Barros de Oliveira, colaborador do Terraço Econômico

Na semana passada, a conceituada revista The Economist publicou uma matéria intitulada Como lidar com a crise política do Brasil. O próprio subtítulo da reportagem traz a resposta, a solução ou o caminho indicado pelo semanário britânico: Quem é [ou quem for, quem será] presidente importa menos que a continuação das reformas econômicas e políticas.

Poucos dias antes disso, o sempre incisivo Arthur Lula efetuou um disparo ainda mais certeiro aqui no Terraço Econômico: Com ou sem Temer, haverá Reforma da Previdência. Antecipando tendências e argumentos que seriam replicados – sem a mesma pujança, é importante destacar – pela The Economist, meu colega de Terraço mostra, por A mais B, a contabilidade deficitária da Previdência e deriva daí a necessidade imperiosa e incontornável da referida reforma:

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A reforma da previdência será feita. Não adianta espernear e nem negar a realidade. Pode ser hoje, pode ser daqui 5 anos ou daqui 10. A matemática pune. Tenha em mente: o debate não é se terá ou não reforma, por que ela é INEVITÁVEL. A questão é o seu desenho, a sua intensidade e a data da sua aprovação.

O argumento de Arthur Lula, repetido de maneira mais superficial pelos britânicos, é sólido: há uma situação crítica muito bem diagnosticada por instrumentos de econometria e protocolos de administração pública, segundo os quais a situação atual é insustentável e – no longo prazo – catastrófica, do que se pode concluir que reformas precisam necessariamente acontecer. O salto das premissas (diagnóstico e projeção futura) à conclusão (necessidade das reformas) é de um rigor impecável, respeitando o que há de melhor disponível hoje em racionalidade econômica. No entanto, não é apenas a racionalidade econômica que está em jogo na questão.

Uma analogia médica sobre racionalidades e escolhas

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Aproveitarei o exemplo da dobradinha Pedro Lula e Renata Veloso, também aqui no Terraço, e me servirei de uma analogia médica: imagine que um(a) paciente seja diagnosticado(a) com uma condição médica qualquer, para a qual exista um tratamento comprovado, com altas chances de sucesso; caso contrário, sem o tratamento, o(a) paciente certamente morrerá no curto prazo (questão de dias, semanas ou poucos meses). O tratamento, entretanto, é extremo e deixará consequências indeléveis (p.ex.: uma amputação, um tratamento cujo efeito colateral seja causar esterilidade, perda de visão, audição, mobilidade nas pernas, etc). Sem o recurso ao tratamento, tem-se (por assim dizer) a morte certa – ou antecipada, pois certa ela é para todos nós. Com recurso ao tratamento, uma vida prolongada, com algum sacrifício envolvido no trade-off.

Pergunta: o(a) paciente deve necessariamente se submeter ao procedimento sugerido pelo(a) médico(a)? Parece óbvio que a resposta é um sonoro não! A não ser que consideremos apenas a racionalidade médica, segundo a qual a saúde (e a vida) é o valor máximo a ser perseguido, promovido e preservado, somos obrigados a reconhecer que há uma pluralidade de valores em jogo (incluindo a noção de vida digna, o desejo de evitar o sofrimento, etc.) e, portanto, de racionalidades presentes. A multiplicidade de racionalidades que se manifestam em fenômenos complexos é o que nos permite entender e valorizar a liberdade de escolha do(a) paciente em questão no caso hipotético e compreender a decisão tomada – embora possamos, naturalmente, discordar dela.

As racionalidades na esfera pública e o fundamento da democracia

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De maneira semelhante, só podemos afirmar a necessidade das reformas se aceitarmos (pelo menos) uma de duas pressuposições: a) a racionalidade econômica é – se não a única – a mais importante no caso das reformas em pauta (da Previdência, trabalhista, etc.); b) a opinião majoritária (ou mesmo consensual) dos melhores e maiores especialistas num determinado assunto é justificativa e fundamento suficiente para a tomada de decisão por parte de agentes do Estado. Como já tratei da primeira pressuposição num texto aqui no Terraço, vou me concentrar agora na segunda.

Ainda que uma determinada opinião sobre um tema seja consensual entre os maiores economistas (ou médicos), e ainda que ela seja verdadeira e certa, isso não basta para obrigar o poder público a tomá-la. Vivemos numa democracia representativa, na qual “[t]odo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Constituição Federal, art. 1º, parágrafo único). Isso significa que o fundamento das tomadas de decisão por parte de agentes estatais está, em última análise, na transferência da soberania popular que se dá por meio da eleição de representantes – que nomearão outros funcionários ou farão as leis que determinarão como eles serão recrutados.

Para o bem ou para o mal, a responsabilidade de um agente público é para com a população, sobre cujo poder se legitima a própria investidura de suas funções. Isso é tanto mais verdadeiro e forte no caso de representantes eleitos: no limite, é ao conjunto universo dos representados (todos os cidadãos) que ele ou ela deve prestar contas. A coluna de ontem do Por quê? Economês em bom português, na Folha de São Paulo, acerta em cheio ao reconhecer isso.

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A ideia de que especialistas sejam capazes de legitimar ação política não é democrática e tem nome: epistocracia – das palavras gregas episteme (conhecimento) e kratos (poder) – ou o governo dos sábios. No caso desse sistema político, cabe aos mais educados, esclarecidos, sábios e conhecedores de um assunto dirigir a sociedade, e é de suas opiniões que emana a legitimidade do poder político.

A crítica de Platão à democracia, no Livro VI da República, é célebre: devemos entregar o comando de um navio rumo ao mar agitado a um conjunto aleatório de cidadãos ou àqueles, dentre eles, mais hábeis e melhor treinados em matérias náuticas? Da mesma forma, dirá Platão, o comando da pólis deve ser exercido por quem se dedica à reflexão sobre assuntos políticos e sociais, que seriam os únicos com direito a votar e a serem votados. No mesmo sentido, atualmente, Jason Brennan, professor de filosofia política da Universidade de Georgetown e estudioso da (ir)racionalidade eleitoral, critica a ideia de que a democracia seja um regime bom e moral. Em seu livro Contra a democracia [Against Democracy], Brennan argumenta, a partir de evidências empíricas, que os eleitores somos mal informados e, portanto, votamos de maneira irracional. Isso estaria na raiz de muitas das mazelas sociais e seria sanado com a substituição da democracia pela epistocracia.

De volta à realidade

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Não há dúvidas de que a democracia – e principalmente sua versão representativa contemporânea – seja passível de muitas e duras críticas. No entanto, somos – como a maioria dos Estados ocidentais – um Estado democrático de direito, e é essa noção que deve servir de pano de fundo para nossas discussões políticas, econômicas e sociais.

Cabe ao povo, segundo as regras de nosso jogo político, eleger os representantes que lhe pareçam os melhores. Ainda que mal informados e incorrendo em erro – elegendo alguém que apoia posições contrárias às minhas –, a escolha democrática é legítima. Fatos supervenientes – como o uso massivo de dinheiro ilegal para influenciar o resultado das urnas ou o envolvimento de representantes em escândalos de corrupção – retiram a legitimidade dos representantes, e estes devem sofrer as consequências e ser substituídos de acordo com o estabelecido nas regras eleitorais.

Foi por isso que, ao defender as eleições indiretas em caso de vacância da Presidência, aqui no Terraço, acrescentei:

Quem quer que assuma, deve se comprometer a realizar duas tarefas: 1) não aprovar nenhuma reforma estrutural, reconhecendo a ausência de legitimidade do atual Congresso para tanto e transferindo essas decisões para a legislatura que assumirá em 2019; 2) garantir a transição democrática, especialmente por meio do aprofundamento das investigações envolvendo parlamentares, funcionários públicos de qualquer instância e membros do setor privado – respeitando, sempre, o devido processo legal –, e permitindo à sociedade civil construir alternativas políticas para o novo ciclo eleitoral.

Isso não quer dizer que as reformas não sejam desejáveis, nem que os economistas que as apoiam estejam equivocados, mas apenas que isso não basta. É necessário um elemento de legitimidade política e democrática que está ausente do cenário político brasileiro atual. Sem convencer a população dos benefícios das reformas, mil gráficos e reuniões de gabinete pouco importarão, pelo menos enquanto continuarmos a ser uma democracia.

Democracia implica arcar com suas próprias escolhas. Implica, inclusive, a liberdade de escolher errado e de sofrer as consequências nefastas disso. Quem crê que estamos a caminho de uma decisão equivocada tem apenas uma alternativa: convencer o maior número possível de pessoas disso, para que elas sejam melhor informadas, mudem suas opiniões e as promovam dentro da arena política, elegendo ou pressionando representantes para reverberar o novo posicionamento.

Não falemos em necessidade das reformas, mas em legitimidade. Não falemos em necessidade das reformas: convençamo-nos, enquanto sociedade, dos benefícios delas.

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O Terraço Econômico é um espaço para discussão de assuntos que afetam nosso cotidiano, sempre com uma análise aprofundada (e irreverente) visando entender quais são as implicações dos mais importantes eventos econômicos, políticos e sociais no Brasil e no mundo. A equipe heterogênea possui desde economistas com mestrados até estudantes de economia. O Terraço é composto por: Alípio Ferreira Cantisani, Arthur Solowiejczyk, Lara Siqueira de Oliveira, Leonardo de Siqueira Lima, Leonardo Palhuca, Victor Candido e Victor Wong.