O que o charlatanismo médico e o econômico tem em comum?

Qual a semelhança entre um homeopata e um economista heterodoxo? Ambos são discípulos de saídas (esotéricas e mágicas) tanto para as questões econômicas, como para problemas de saúde em geral. Mesmo assim, muitos continuam a acreditar na sua mágica eficiência. Mas porque possuem tantos adeptos? O Terraço Econômico dá alguns palpites.

Terraço Econômico

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Publicidade

Heterodoxia s.f.: Caráter daquilo que se opõe aos padrões tradicionais, à doutrina ortodoxa. Condição da pessoa contrária às regras, aos dogmas e às opiniões estabelecidas por um grupo.
Homeopatia s.f.: Homeopatia é o sistema de tratamento clínico-terapêutico, que consiste em tratar doenças por doses muito pequenas (infinitésimas) de drogas capazes de produzir efeitos semelhantes aos sintomas das doenças que se pretende combater.
Charlatão:s.m. Aquele que se passa por médico, pautando-se em sua experiência, sem possuir conhecimentos teóricos; impostor; mistificador.

Um estudo australiano publicado no ano passado provou que não existe condição de saúde para qual a homeopatia é eficiente. Essa afirmação foi feita após a análise sistemática de mais de 1.800 artigos médicos constituindo a evidência mais robusta até hoje produzida sobre o assunto. Mesmo assim, muita gente continua acreditando na sua mágica eficiência. Fenômeno não muito diferente da heterodoxia econômica, pois em paralelo, seus discípulos insistem em acreditar que exista uma saída -esotérica- para a crise econômica e que não passe pela conta de padaria básica do “é preciso gastar menos do que arrecadamos no longo prazo”. Porque será que isso acontece? Aqui vão alguns palpites.

  1. Gostamos de soluções fáceis e mágicas. A verdade é que a grande maioria das pessoas sabe o que precisa fazer para ter uma vida saudável: se alimentar bem, fazer atividade física, não fumar ou beber em demasia, dormir bem, administrar o stress, tomar vacinas e ir ao médico regularmente para realizar exames preventivos. Não tem muito segredo. Mas isso exige esforço e disposição. Mas o que queremos, quando estamos com dor nas costas? Não é ouvir que seria bom perder peso, fortalecer os músculos da barriga, fazer ioga e meditar. O que queremos é uma pílula mágica “natural” que tire a dor e de preferência os quilinhos a mais. Da mesma forma, quando o país passa por uma crise não queremos ouvir que teremos de aumentar impostos e/ou reduzir benefícios, o que queremos são “injeções de ânimo na economia”, já que é difícil realmente aceitarmos que o frenesi de bonança dos últimos anos na verdade era uma exceção, não a regra de nossa realidade. Acreditamos nos charlatões porque é mais fácil acreditar naquilo que gostaríamos que fosse verdade.
  2. Eles são bons de papo. Médicos alopatas e economistas ortodoxos baseiam as suas decisões em evidências científicas que por sua vez estão embasadas em números, testes estatísticos, hipóteses e longa série de verificações. Como a matemática e a estatística são ciências áridas e incompreensíveis para grande parte das pessoas, eles acabam passando por chatos e arrogantes. Já os charlatões, por não terem o apoio dos dados, investem na retórica e na simpatia, alguns conhecidos pelas longas narrativas históricas. Uma consulta de homeopatia tende a ser muito mais longa do que uma consulta tradicional. O homeopata faz inúmeras perguntas para o paciente, escuta com atenção e com isso cria uma relação de confiança. Isso não é ruim e tem um efeito terapêutico importante que o médico tradicional deveria adotar. Mas não muda o fato de que a diluição (remédio homeopático) não serve para nada. Da mesma maneira, os economistas heterodoxos falam para a população, vivem na mídia, são muito mais vocais e com isso parecem muito mais importantes do que realmente são, sempre prontos para acusar os malvados capitalistas contra as injustiças desse mundo! Assim como os médicos alopatas, os economistas ortodoxos deveriam aprender a se comunicar melhor e a ser mais didáticos, não é porque tem razão que não precisam explicar suas ideias para a população de forma clara. Além disso, como já dizia o famoso economista Jonh K. Galbraith: “Um economista nunca deve ter medo de ter ideias impopulares”.
  3. Eles pregam o “discurso do bem contra o mal”. Somos ensinados desde bem pequenos a acreditarmos que todas as histórias têm vilão e mocinho. Charlatões se aproveitam desse discurso maniqueístas para se colocarem como a personificação do bem contra os grandes vilões “a indústria farmacêutica que lucra com o sofrimento dos doentes” ou “o capitalismo financeiro internacional sustentado pela miséria dos povos periféricos”. Gostamos de nos colocar na posição de vítima porque é mais fácil do que nos colocarmos na posição de responsável pela própria saúde ou sucesso. Afinal, se eu sou o responsável eu tenho que me cuidar, tenho que me preparar, correr atrás, me esforçar. Mas se o vilão é o culpado, a minha função passa a ser apenas a de reclamar e torcer para que algum herói desprendido de interesses pessoais venha me salvar.
  4. Elas funcionam em alguns casos ou por algum tempo. Se o charlatanismo não funcionasse nunca, em nenhum lugar teria acabado, mas funciona. A homeopatia pode funcionar de várias maneiras: a) existe o que chamamos de efeito placebo. Ele acontece quando os sintomas melhoram mesmo quando o paciente toma uma “pílula de farinha”. Estima-se que o efeito placebo ocorra em até 1 em cada 3 pessoas. b) alguns remédios que vendidos como ”homeopáticos” tem na verdade princípio ativo de medicamentos alopáticos. Um exemplo clássico é o remédio homeopático 46, vendido pela marca Almeida Prado . Sim, ele funciona porque contém Picossulfato Sódico em concentração semelhante (dependendo da apresentação), àquela encontrada no famoso laxante alopático Guttalax.

De maneira análoga, a heterodoxia econômica também “funciona” por curtos períodos especialmente quando o céu é de brigadeiro, simulando um efeito placebo, temos o mais latente exemplo dos governos populistas na América Latina nos anos 2000. Além disso, não raro também incorporam “remédios” do menu ortodoxo, ou seja, testados cientificamente. Os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por exemplo, existem na Europa desde 1933 e tem a sua eficácia comprovada estatisticamente em diversos estudos sendo empregado inclusive nos EUA e no Banco Mundial; não foi, portanto, algo inventado por economistas heterodoxos brasileiros.

Continua depois da publicidade

Por outro lado, importante mencionar que não é porque a medicina alopática seja baseada em evidências científicas que ela é perfeita, assim como não é a ortodoxia econômica. Elas são apenas o melhor que temos no momento.

A medicina que praticamos hoje é baseada em estudos populacionais, mas os remédios são prescritos para indivíduos, não para populações. Por esse motivo, é muito pouco provável que o mesmo remédio, na mesma dose, seja o ideal para pacientes diferentes. A tecnologia, tanto com base na genética, quando a partir da análise de grandes quantidades de dados está possibilitando uma mudança de paradigma na medicina que deve passar a ser muito mais personalizada. Em breve, impressoras 3D irão poder imprimir um medicamento criado exclusivamente para você, com base no seu DNA e em outras particularidades da sua doença.

Esses mesmos avanços tecnológicos podem mudar vários conceitos econômicos ortodoxos. A inteligência artificial pode reduzir drasticamente a necessidade de humanos em várias profissões. Vários gigantes da tecnologia como Google, Tesla e Uber, por exemplo, estão começando a testar o modelos de carro sem motorista. Robôs irão nos substituir não apenas trabalhos mecânicos, até funções de advogados já podem ser feitas com algoritmos de inteligência artificial. Essas e outras mudanças tecnológicas como o avanço da economia compartilhada, do bitcoin, da realidade virtual e das grandes cadeias globais de geração de valor devem mudar a forma como a sociedade está organizada economicamente.

Continua depois da publicidade

Mas independente desses avanços, os fatos médicos e econômicos continuarão a ser passíveis de serem medidos estatisticamente de forma científica e não na base da conversa, e é isso o que sempre irá diferenciar os sérios dos charlatões, afinal: “In god we trust, all others must bring data.”

Renata K. Velloso
Médica, formada em administração pública, vive e trabalha na Califórnia.

Pedro Lula Mota
Editor do Terraço Econômico

Tópicos relacionados

Autor avatar
Terraço Econômico

O Terraço Econômico é um espaço para discussão de assuntos que afetam nosso cotidiano, sempre com uma análise aprofundada (e irreverente) visando entender quais são as implicações dos mais importantes eventos econômicos, políticos e sociais no Brasil e no mundo. A equipe heterogênea possui desde economistas com mestrados até estudantes de economia. O Terraço é composto por: Alípio Ferreira Cantisani, Arthur Solowiejczyk, Lara Siqueira de Oliveira, Leonardo de Siqueira Lima, Leonardo Palhuca, Victor Candido e Victor Wong.