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SÃO PAULO – Não é qualquer brasileiro que pode desfrutar de 40 dias inteiros na Europa – seja pelo preço do roteiro ou pela limitação das férias anuais. Mas com um horário flexível e um retorno considerável, o trabalho como “trader de milhas” permitiu que Ricardo Olito fizesse essa viagem recentemente.
“Voltei há alguns dias”, conta Olito, que fez da negociação de pontos de programas de fidelidade a sua atividade profissional. “Eu era gerente de marketing, fui morar fora e quando voltei tentei abrir uma empresa, mas não tive sucesso. Foi quando me deparei com o mercado de milhas. Comecei aos poucos e hoje vivo disso”, relata ao InfoMoney.
Ele afirma que faz seu próprio horário de trabalho, mas a função exige dedicação e produtividade alta. “As pessoas acham que eu vivo de férias porque viajo muito, mas não é tão fácil quanto pensam”, conta ele, que usa computador e celular para negociar de qualquer lugar do mundo.
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Um “salário” bem incerto
João* comercializa milhas há cerca de três anos. “Eu vendo tanto nos maiores sites de vendas de milhas quanto no particular para amigos”, conta ele, que usa a venda de milhas para obter uma renda extra. “As vendas particulares são mais rentáveis, mas mais trabalhosas e com mais riscos. Você basicamente assume todo o trabalho e os riscos de uma agência de viagem”, conta, sob condição de anonimato.
A maior venda que obteve foi em 2016, quando vendeu 750 mil milhas da Avianca, o que resultou em um lucro de R$ 20 mil. Isso representou um lucro de quase 90%.
O que Olito e João fazem é uma atividade não regulamentada de compra e venda de milhas e pontos de programas de fidelidade. Eles aproveitam oportunidades de compra mais baratas e, depois, revendem com lucro. Uma espécie de “trade”, nos moldes do mercado financeiro, mas dentro desse nicho. Também fica claro que é uma analogia.
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“A frequência com que eu vendo milhas varia muito. O processo de venda pode durar meses”, relata. “Por exemplo, no começo do ano eu adquiri cerca de 600 mil milhas Smiles e até hoje não terminei de vendê-las”, diz. O valor final de venda do total dessas milhas deve ser, segundo ele, próximo de R$ 13 mil, “o que vai representar um lucro que não deve chegar a 5%”, complementa.
Olito, que vive disso, conta que a maior venda que fez gerou um lucro de R$ 15 mil de uma só vez. Mas esse valor foi atingido uma única vez: nas demais vezes em que negociou milhas, os valores variaram bastante.
Com a incerteza, ele aprendeu a manter uma boa reserva financeira e disciplina no consumo. “Depende bastante do mês, mas é bem possível manter pelo menos uns R$ 2 mil de lucro mensais. Mas tem vezes que consigo negociar mais milhas e ganhar bem mais que isso. Tem que saber a hora de comprar e de vender, acompanhar o mercado mesmo”, diz.
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Foco nas oportunidades
A atividade depende de grande conhecimento do mercado. “Costumo comprar pontos no site da Livelo, parcelo a compra e aguardo uma promoção para fazer uma transferência bonificada para outro programa de fidelidade”, diz Olito.
A transferência bonificada funciona como qualquer promoção de varejo. Imagine, por exemplo, que a Smiles esteja oferecendo 100% de bônus nas transferências que vêm do site da Livelo. Ou seja, o usuário poderia comprar 10 mil milhas e, ao fazer a transferência da Livelo para a Smiles, receberia 100%, totalizando 20 mil pontos.
Isso significa que o usuário pode vender dobro do que venderia sem a promoção e possivelmente ganhar mais dinheiro. É assim que os traders de milhas geralmente potencializam os seus ganhos.
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Olito pondera que, quando acontecem essas promoções, muitas pessoas aproveitam e, em consequência, muitas milhas entram no mercado para venda. “Por isso, sempre seguro um pouco pós transferência, para vender em um preço mais legal. Compro na baixa e vendo na alta”, diz.
“Quem não tem tempo e dedicação para estudar e acompanhar diariamente o mercado e não tem fôlego para ficar meses com o dinheiro imobilizado não deve investir nesse mercado, porque fatalmente será pressionado a vender em um momento ruim e acabará amargando prejuízos”, complementa João.
Olito exemplifica: alguns sites que promovem a venda de milhas entregam o valor da venda em 21 dias. Se, por exemplo, ele compra 500 mil pontos na Livelo a R$ 0,035 (uma promoção rara, mas que acontece), pagaria parcelado R$ 17.500 no cartão de crédito. Aproveitando uma transferência de 100% de bônus, faria os 500 mil virar 1 milhão de pontos.
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Depois, poderia vender em algum site. Mas o lucro da venda total desses pontos estaria na conta dele em somente 21 dias. “Então, de repente, cai R$ 25 mil na minha conta, mas eu tenho uma dívida parcelada em 10 vezes. Precisa saber gastar e administrar o dinheiro”, explica.
João sugere: “venda sem afobação, maximizando os lucros, de forma que o rendimento compense todo o trabalho desprendido e o risco assumido. Vender de forma afobada é receita infalível para ter prejuízos”.
Milhas para uso próprio
Felipe Morilhas é motoboy e também faz o “trade de milhas” usando a estratégia de transferência bonificada com o objetivo de ter uma renda extra.
Ele começou a “operar” em 2016 e, de lá até agosto de 2019, vendeu 1.321.700 milhas e lucrou R$ 31.920 nesse período – um ganho mais modesto. “Eu guardo parte do dinheiro ou uso para viajar com a minha família e vendo a cada dois meses mais ou menos”, conta.
Ele conta que usa o cartão de crédito para pagar tudo o que consegue e vai acumulando milhas: junta os pontos no programa Sempre Presente, do Itaú, e transfere para programas como o da Smiles, aproveitando essas ofertas com bônus.
“Quando vejo que a promoção está valendo, faço a conversão. Sempre anuncio todas as milhas que eu tenho. Se a validade delas é longa ou se eu não tenho pressa para vender porque não vou usar, eu oferto com um preço mais alto que a média. Se as milhas vão vencer ou quero vender rápido, coloco no preço de mercado para vender mais rápido”, complementa.
Ou seja, ele passa um período considerável do processo juntando milhas, antes de colocar em plataformas especializadas na comercialização de pontos.
Morilhas conta que costuma passar o máximo de milhas que consegue para o site na hora de vender, porque pode subir o valor de venda. “Quanto maior número de milhas, maior o valor que eu consigo colocar. Mesmo se minha oferta não for a mais barata, eu tenho mais milhas o que pode facilitar para uma pessoa que esteja querendo para comprar uma passagem internacional, por exemplo. Um único vendedor resolve. É praticidade para quem vai comprar”, explica.
Mercado sem regulação
O mercado de milhas não foi criado com intuito de revenda para lucro, mas não existe regulamentação oficial dessa prática. Mesmo assim, as companhias aéreas e programas de fidelidade já têm opiniões bastante definidas sobre o tema.
O InfoMoney entrou em contato com a Abemf (Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização), que compreende Multiplus, Smiles, TudoAzul, Mastercard, Visa, Elo, entre outros. O posicionamento oficial é terminantemente contrário à prática das vendas para lucro.
“A venda de milhas é proibida pelos regulamentos dos programas de fidelidade, justamente para assegurar a viabilidade do programa, sua atratividade e continuidade. Sendo assim, o participante que comercializa seu saldo acumulado está infringindo os termos aceitos no momento de adesão”, afirma Paulo Curro, diretor executivo da Abemf.
Ele explica, que ao fazer isso, a pessoa fica sujeita a ações como cancelamento da emissão de tickets; impedimento de embarque; exclusão definitiva do programa do qual faz parte; além da possibilidade de demais medidas legais pelo programa de fidelidade.
Por outro lado, vale lembrar que as pessoas que atuam na compra e venda de pontos não atuam de forma irregular.
Alexandre Zylberstajn, especialista em milhas e sócio do site Passageiro de Primeira, explica que, com o passar do tempo, os programas de fidelidade começaram a oferecer promoções por meio de parceiros, o que permitiu que as pessoas acumulassem pontos de outras formas, além de viajar ou comprar no cartão de crédito.
Atualmente, gastos em restaurantes e postos de gasolina, por exemplo, permitem o acúmulo de pontos. Além disso, os próprios programas de fidelidade permitem que os usuários comprem pontos com o objetivo de atingir o valor necessário para fazer a troca por produtos ou serviços.
“Hoje o ativo em si está muito acessível. Justamente pelos programas de fidelidade permitirem que o usuário compre milhões de pontos ao ano, surge uma contradição: ninguém consegue usar tantas milhas assim. Então, os “traders” enxergam oportunidades de mercado e vendem mesmo sabendo das vedações previstas nos contratos de adesão. O mercado ainda é muito desregulamentado”, afirma.
Além disso, existem decisões judiciais favoráveis aos consumidores que negociam milhas. Uma delas, tomada pelo tribunal de Justiça de Minas Gerais, sustenta que: “As cláusulas restritivas de direitos (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade) somente podem ser instituídas nos negócios jurídicos gratuitos, a exemplo da doação e do testamento”.
Avianca é exemplo: tenha cautela
João afirma que hoje em dia está mais cauteloso em relação ao trade. Ele acredita que tem sido difícil vender milhas com um bom preço, porque a maioria das emissões compensa mais se compradas em dinheiro, em vez de emitidas por milhas.
Além disso, para ele, o mercado está “muito estrangulado”, com uma rentabilidade muito menor do que já foi no passado.
“Acho que a Avianca é um caso bem ilustrativo da deterioração que o mercado de milhas sofreu. Em poucos meses deixou de ser a queridinha dos milheiros para ser um ativo que virou pó. Quem ficou com milhas no programa simplesmente perdeu tudo, literalmente”, conta.
Uma série de novas restrições também atingem quem quer lucrar com a operação, que não é regulamentada. “As companhias aéreas fecharam o cerco contra os milheiros, limitando a quantidade de emissões anuais e inflacionando muito as tabelas de resgate”, diz João.
Os principais programas de fidelidade também limitaram a emissão de passagens via milhas para no máximo 25 CPFs por ano por pessoa. Ou seja, em teoria, os traders de milhas só podem fazer 25 vendas ao ano – se seguirem as regras dos programas.
Impostos
Caio Bartine, coordenador Tributário do Complexo Educacional Damásio de Jesus, explica que todo lucro com milhas deve ser declarado no Imposto de Renda, mas valores de até R$ 35 mil não são tributados.
“A venda de milha aérea é considerada uma alienação de bens e direitos e na prática elas são tributadas como se fossem ganho de capital. Uma instrução normativa diz que deve incidir 15% de IR sobre o lucro da venda, se ultrapassar R$ 35 mil por mês”, explica o advogado.
Além disso, se a pessoa fez a operação de vendas e obteve lucros acima de R$ 35 mil, tem até o fim do mês subsequente da venda para o recolhimento do imposto via DARF.
“Não pode misturar o pagamento das milhas com valores como salário, aluguel, etc. Só tenho a tributação do imposto quando pagamento for efetivamente recebido, por isso no mês seguinte ao que foi pago as milhas”, diz.
Muitos usuários não declaram a venda de milhas, e o mercado segue funcionando em meio a incertezas nesse sentido – já que não nada é ilegal, por enquanto. É difícil controlar o comércio que envolve tantos usuários no ambiente online.
*O nome foi alterado a pedido da fonte.
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