Choque entre potências ou crise superada: como a morte do embaixador russo afeta a estabilidade global

Analistas traçam cenários para as possíveis reações e consequências ao assassinato do diplomata da Rússia

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – O assassinato do embaixador russo na Turquia Andrey Karlov durante a inauguração de uma exposição fotográfica em Ancara, ocorrido na última segunda-feira (19), ainda gera questionamentos e divergências entre os especialistas acerca de quais poderiam ser os impactos sobre o cenário geopolítico. Se por um lado os governos de Vladimir Putin e Tayyip Erdogan tentam fomentar em seus discursos a cooperação mesmo em situação delicada, por outro há quem vislumbre um aumento natural de tensão entre os países, considerando-se também o histórico instável de suas relações diplomáticas. Em um contexto global de incerteza crescente e atritos entre grande potências, os resultados podem ser imprevisíveis.

Para o especialista em Segurança Internacional Bernardo Wahl, o assassinato do embaixador foi um atentado terrorista e ocorre em momento delicado, uma vez que Moscou e Ancara recém-superaram o incidente da derrubada de um caça russo por forças turcas. Ele acredita que a resposta inicial de Putin foi comedida e apropriada, já que não interessa a nenhum dos dois países quer um retrocesso nos avanços diplomáticos e econômicos alcançados no último ano, mesmo com os países ocupando posições antagônicas na guerra síria.

“Os russos dependerão mais dos turcos para o compartilhamento de inteligência e demandarão maior autonomia na proteção de seus recursos. Dificilmente Moscou mudará a sua abordagem na Síria em resposta ao evento em questão. As Forças Armadas turcas, por sua vez, estão envolvidas em profundidade no conflito na Síria, sendo que Ancara precisa mais do que nunca manter uma relação de trabalho com Moscou”, explicou o professor. Mesmo assim, Wahl acredita que o episódio recente tornará mais tensa a relação entre os dois países e poderá comprometer o cessar-fogos como aquele que visava garantir a evacuação de civis em Aleppo. “Há múltiplos interesses e atores envolvidos, o que dificulta enormemente achar uma solução. Será muito difícil uma negociação”, observou.

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O internacionalista Rodrigo Gallo apresenta outra leitura possível para o acontecimento. Para ele, há uma clara iniciativa dos chefes de Estado envolvidos em “colocar panos quentes” e contornar o impasse gerado. O professor acredita que o peso das estruturas do sistema internacional limita a possibilidade de ação dos atores. “Por mais que turcos e russos tenham pontos de vista distintos no conflito da Síria, fica claro que o assassinato não tem a ver com o governo Erdogan, mas sim uma ação isolada de um indivíduo. Muito do que foi dito depois já deixa claro que, de alguma forma, os dois países estão tentando um diálogo e que não há nenhum tipo de rusga mais grave entre os Estados”, ponderou.

O especialista destaca que o assassinato de Karlov precisa ser compreendido dentro de um contexto de conquista importante de Bashar al-Assad em meio à recuperação do controle de Aleppo com decisivo apoio russo na empreitada — o que também apareceu no discurso do jovem policial turco Mevlut Mert, autor dos disparos, durante o atentado. Tal ofensiva provocou uma das ondas mais sangrentas do confronto, que já dura quase seis anos e ceifou a vida de mais de 400 mil pessoas. “Há muita gente na Turquia que, de certa forma, pensa como o policial, no sentido de que a Rússia tem provocado baixas no mundo islâmico, na Síria”, afirmou o professor.

Bernardo Wahl pontua que o episódio recente em Aleppo prejudicou o distanciamento relativo que a Rússia procurava ter em relação ao Estado Islâmico. O assassinato de Karlov evidencia um momento de maior exposição russa a retaliações, tendo em vista a maior interferência do país no oriente médio. “Cada ator está jogando de acordo com seus próprios interesses e os alinhamentos acontecerão conforme tais interesses possam ser atendidos. Erdogan se distanciou do Ocidente, as possibilidades da entrada da Turquia na União Europeia parecem cada vez mais distantes, mas isso não significa um alinhamento absoluto com a Rússia”, pondera, explicando que a Turquia é favorável à saída de Bashar al-Assad do comando da Síria e apoia grupos rebeldes que lutam contra o governo da Síria. Enquanto isso, a Rússia é favorável à permanência do ditador sírio, uma vez que tem interesses geopolíticos na região, entre eles o entreposto naval de Tartus, a única base militar russa fora da região que abrange a ex-URSS. “Ao mesmo tempo, interessa a ambos os países o combate ao terrorismo de grupos não-estatais, como o Daesh (Estado Islâmico), que ameaça tanto Moscou quanto Ancara”, afirmou o professor.

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Ele ressalta que atualmente a Europa e o Oriente Médio enfrentam um cenário de alta volatilidade e há um crescente antagonismo entre a Rússia e o Ocidente, em especial à OTAN, “o que pode levar a resultados desastrosos para todos os envolvidos”. O especialista em segurança internacional considera que a morte do embaixador russo pode desencadear graves crises entre países, assim como o assassinato de Francisco Ferdinando eclodiu na I Guerra Mundial. “Antes do assassinato do arquiduque áustro-húngaro em junho de 1914, a ideia de que uma grande guerra poderia irromper na Europa era considerada absurda. Porém, ela aconteceu”, argumenta.

Segundo Wahl, atualmente há quem veja guerras entre grandes potências como coisa do passado, mas isso não é necessariamente verdade. “Uma faísca (como o assassinato do embaixador russo) em um mundo cheio de tensões pode remeter ao ocorrido entre 1914-1918. E a guerra na Síria tem todo o potencial para isso”, afirma.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.