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*Por David Z. Norris
O FTT, token nativo da falida exchange FTX, desempenhou um papel fundamental na queda da corretora cripto e de sua empresa-irmã, a Alameda Research. Foi o uso do criptoativo para inflar os balanços das duas firmas, revelado pelo CoinDesk, parceiro do InfoMoney, em 2 de novembro, que levantou as primeiras dúvidas sobre o antigo império cripto.
Mas não é só isso: o FTT pode também ter sido fundamental para outro aspecto da fraude da FTX, servindo como “garantia” fictícia (mas na verdade sem valor) para empréstimos com o objetivo de resgatar a Alameda.
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Mas o que são os tokens nativos de corretora e outras plataformas cripto? Que papel eles desempenham nas exchanges que os emitem? Como eles devem ser tratados sob os padrões contábeis modernos? E como eles avançam na agenda de descentralização da indústria cripto?
Tecnicamente, os criptoativos nativos não são nada de especial. O FTT é um token no padrão ERC-20 do Ethereum (ETH), um tipo de ativo digital que praticamente qualquer pessoa pode criar com mínima habilidade técnica. Já o BNB, o token nativo da Binance, roda na blockchain da corretora, a BNB Chain, que começou como um fork (derivado) do Ethereum, e se fundiu com uma rede privada da corretora.
Esses tokens geralmente não são descentralizados. Eles são, no fundo, um incentivo para as pessoas continuarem utilizando a mesma plataforma centralizada. Os detentores podem usá-los para obter descontos em taxas de negociação, recompensas e acesso antecipado a ofertas.
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Apesar das conversas no Twitter, o token FTT não distribuiu uma parte da receita da plataforma FTX nem concedeu aos detentores nenhum direito de governança – a maioria dos outros tokens de exchanges também não.
Todo esse cenário contrasta com um dos conceitos que podem ter inspirado a criação deles. Entre 2016 e 2017, houve muita discussão no mercado cripto sobre utility tokens (tokens de utilidade), que seriam usados para incentivar e pagar os nodes (computadores conectados ao software de uma blockchain) por serviços de computação descentralizada.
Os ativos da rede de armazenamento descentralizada Storj, o BitTorrent (BTT) e o Helium (HNT), focado em rede Wi-Fi descentralizada, são outros exemplos de utility token.
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O apelo dos tokens de utilidade é que você não precisa de nenhum regime legal para impor direitos de propriedade ou reivindicar um lugar na “estrutura de capital” – ou seja, a lista ordenada de obrigações de uma organização para contrapartes, incluindo devedores e investidores. Isso ocorre em parte porque não há uma estrutura de capital, mas também porque o valor deriva da demanda por serviços que estão, de fato, diretamente conectados à blockchain.
O valor dos tokens de exchanges, por outro lado, está ligado a um regime regulatório ou legal que, em muitos casos, não existe de fato. A maioria, senão todos os criptoativos dessa classe, são emitidos pelas chamadas exchanges “offshore”, como FTX e Binance, que são registradas em paraísos fiscais – a FTX, por exemplo, está baseada nas Bahamas.
As exchanges Kraken e Coinbase, registradas nos EUA, por outro lado, não têm tokens nativos porque estão em mercados com mais restrições regulatórias. Os tokens de exchanges representam, portanto, uma maneira de as corretoras offshore arrecadarem dinheiro sem precisar lidar com tanta regulação.
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“A Binance foi a primeira a lançar [um ativo digital nativo] e foi muito bem-sucedida. E quando você é bem-sucedido, há imitadores”, disse Katie Talati, cofundadora e diretora de pesquisa da gestora de criptoativos Arca. “A Huobi e a OKX também lançaram seus próprios tokens e isso tem sido um padrão. A FTX não lançou [o seu token] até o segundo semestre de 2019″.
Mas só porque os tokens de exchange podem arrecadar dinheiro como patrimônio não significa que de fato eles são patrimônio. “Atualmente, eles não fazem parte do capital e você não pode reivindicar nada em caso de falência, por exemplo”, disse Talati. “Não há governança, você não pode dizer que quer que a exchange faça X,Y e Z.”
Mas esses tokens, emitidos por entidades sem fortes reguladores ou mesmo direitos de propriedade necessariamente bem aplicados, são negociados como ações. Katie disse que um modelo de fluxo de caixa descontado (forma de análise usada por analistas financeiros para estimar o valor de uma empresa) é uma maneira útil de pensar sobre seu valor, “mas há muitos insumos que não podemos modelar”.
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Essa proximidade com um modelo de patrimônio pode ter facilitado o caminho para as finanças fraudulentas de Sam Bankman-Fried, fundador da FTX. O FTT era o que é conhecido como token de “baixo fluxo, alto valor totalmente diluído”.
Apenas uma parte muito pequena foi negociada publicamente, mas o preço público dessa fração foi considerado aplicável a centenas de milhões de dólares do token de propriedade da própria FTX. Isso faz um pouco de sentido se você pensar em termos do “valor do patrimônio” que o fundador de uma startup, por exemplo, mantém depois que os investidores de capital de risco obtêm sua fatia.
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Mas o manuseio dos tokens FTT nos balanços da FTX e da Alameda não seguia as práticas contábeis padrões de patrimônio ou, mais importante, a realidade. Ao contabilizar seu próprio patrimônio ou lidar com ações que comprou de volta nos mercados públicos, as empresas não as adicionam à sua estimativa de avaliação ou ativos líquidos. Em vez disso, geralmente as contabilizam separadamente como “ações em tesouraria” (títulos anteriormente em circulação que foram recomprados por acionistas da emissora).
Isso porque o patrimônio de uma empresa não faz parte do seu valor total, mas ele é um reflexo desse valor. Acrescentar seu próprio estoque aos seus resultados seria um pouco como ligar uma extensão em si mesma, em vez de na tomada.
Esse engano contábil básico se tornou uma bomba-relógio quando o Bankman-Fried aparentemente começou a usar o FTT como garantia para empréstimos entre a FTX e a Alameda, bem como outras entidades relacionadas.
A centralidade do FTT levou os líderes do setor cripto a esclarecer sua posição sobre a contabilização de tokens de exchange e ativos internos semelhantes. Changpeng Zhao, CEO da Binance, se esforçou na semana retrasada para esclarecer que sua corretora “nunca usou BNB como garantia”. No Twitter, o CEO da Ripple, Brad Garlinghouse, também esclareceu que sua empresa não conta seu vasto tesouro de XRP em seu balanço.
Esse comportamento ajuda a explicar por que as reportagens do CoinDesk sobre os fluxos de FTT foram tão explosivas. Afinal, ele não é o tipo de ativo que deveria ser usado da maneira que aparentemente foi, e nenhuma entidade verdadeiramente independente o aceitaria como garantia de empréstimo, ou mesmo o consideraria um “ativo”.
Investidores cripto experientes deverão ser os players que imporão essa regra. Katie é clara na posição da Arca. “Quando olhamos para [projetos], muitos deles terão seu próprio token em seu balanço”, disse ela. “E nós apenas riscamos eles da lista para sinalizar que essa prática está errada”.
*David Z. Norris é head de insights do CoinDesk