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SÃO PAULO – O histórico encontro entre os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e da Coreia do Norte, Kim Jong-un, repercutiu globalmente e provocou uma série de avaliações entre especialista sobre o futuro das relações entre os dois países, além de consequências para o próprio sistema internacional em geral. Depois de horas de reuniões, os líderes divulgaram uma declaração conjunta composta por compromissos que teriam como norte a busca por paz e prosperidade na Península Coreana. O documento foi considerado vago por muitos analistas, mas um passo inicial de grande significado por outros, embora muitas das implicações ainda sejam incertas.
O atual momento de aproximação entre Washington e Pyongyang sucede episódios tensos envolvendo os dois governos, com ameaças mútuas de ataques elevando o nível de preocupação global com um confronto inédito envolvendo o uso de tecnologia nuclear. A melhora nas relações entre os dois históricos inimigos contrasta com um momento de maior desavença e distanciamento dos Estados Unidos de históricos aliados, como observado na cúpula do G-7, realizada poucos dias antes no Canadá. Por que estaria Trump criando laços com inimigos e tensões com aliados?
Para compreender a dimensão e as implicações desta reunião inédita em Singapura e o contexto global em que ela se insere, o InfoMoney ouviu o especialista em segurança internacional Bernardo Wahl, professor de relações internacionais das Faculdades Metropolitanas Unidas e da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Em entrevista por e-mail, o especialista listou três possíveis desdobramentos para a aproximação entre Trump e Kim. Confira a íntegra da análise abaixo:
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InfoMoney – Qual é o significado do encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un, em Singapura?
Bernardo Wahl – Trata-se de um encontro histórico, por ser a primeira vez em que duas lideranças em exercício de ambos os países se reuniram. Isso demonstra uma mudança expressiva na trajetória das relações entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, de conflito para cooperação, o que é essencial para o desenvolvimento de confiança mútua. Foram revertidos cerca de 70 anos de hostilidades recíprocas em direção a relações mais pacíficas, pelo menos por enquanto. De uma relação tensa, no passado remoto e recente, caracterizada por testes atômicos e de mísseis norte-coreanos, exercícios militares conjuntos entre EUA e Coreia do Sul, sanções impostas ao regime da Coreia do Norte pela comunidade internacional, além de inflamada retórica tanto de Washington, D.C. (“fogo e fúria” e “homem foguete”, por exemplo) quanto de Pyongyang, passou-se para vias diplomáticas mais amigáveis. O encontro, tão esperado e tão cheio de expectativas, foi inicialmente cancelado por Trump, mas depois remarcado. Um completo processo de desnuclearização na península coreana é bastante improvável no curto e médio prazos, até porque é a garantia última de sobrevivência do regime liderado por Kim Jong-un (seriam os EUA confiáveis para garantir a segurança dele? Vale lembrar que os EUA se retiraram recentemente do acordo nuclear com o Irã, e da mesma forma vale recordar dos casos de países como a Líbia, que renunciou ao seu programa de armas de destruição em massa, e seu líder, Muamar Kadafi, foi derrubado do poder, ou o caso do Iraque, que não tinha armas de destruição em massa, e seu líder, Saddam Hussein, também foi derrubado do poder). Porém, o encontro de Kim Jong-un com Donald Trump marca uma significativa alteração não apenas nas relações bilaterais, mas nas relações internacionais como um todo, por mais falta de detalhes que possa haver na declaração conjunta de Singapura, embora tais detalhes possam ser especificados posteriormente. Houve empatia entre os líderes dos dois países, ao contrário do encontro do G-7 realizado pouco antes no Canadá, evento caracterizado, entre outras coisas, por atritos entre Trump e o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, e pela popularização de uma foto de Trump com os braços cruzados encarando uma Ângela Merkel com expressão facial de seriedade, em uma situação que parecia um impasse. Se, por um lado, Trump não se entende com os tradicionais aliados dos Estados Unidos, por outro, parece ter se entendido com alguém que era, até há pouco, pária: Kim Jong-un. Há mudanças que podem ser observadas em termos de ordem internacional na gestão Trump, como, por exemplo, os EUA não exercendo mais o papel de liderança dos assuntos mundiais, como faziam desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Parece que Trump está promovendo uma espécie de “destruição criativa” e dando uma “sacudida” na atual ordem mundial, sendo o encontro com Kim Jong-un um exemplo disso. IM – Quais são as implicações esperadas para a relação bilateral entre EUA e Coreia do Norte, o processo de desnuclearização de Pyongyang e sobre outros países, como a Coreia do Sul (que pode ter que enfrentar o fim de exercícios militares), a Rússia e a China?
BW – O encontro realizado em Singapura é o ponto alto da distensão na relação entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte. Trump e Kim Jong-un assinaram uma declaração delineando os próximos passos da relação entre os dois países, deixando os detalhes para serem preenchidos depois por funcionários de ambas as nações. O que pode ser destacado do encontro é que os EUA pretendem parar os exercícios militares realizados com a Coreia do Sul (o que não significa retirar as tropas norte-americanas do território sul-coreano) e estão preparados para aceitar uma abordagem em etapas para a desnuclearização da Coreia do Norte, o que significa que ambos os lados oferecerão incentivos ao longo do caminho, em vez de os EUA esperarem até a conclusão do processo antes de oferecerem quaisquer compensações. Ainda há muitos detalhes espinhosos para serem resolvidos, o que pode fazer com que desmorone o diálogo entre os EUA e a Coreia do Norte. Mas os eventos da cúpula dificultam que os EUA justifiquem qualquer retorno futuro a uma estratégia de aplicar pressão máxima à Coreia do Norte. Trump afirmou que convidará Kim Jong-un para a Casa Branca, o que seria outro passo bastante significativo em termos do relaxamento nas relações bilaterais. Para a Coreia do Norte, o encontro permitiu ao país se envolver com os EUA em um nível de igualdade, também introduzindo oportunidades para o país se mover em direção a um acordo de paz relativo à Guerra da Coreia (1950-1953), que terminou com um armistício, mas ainda não com um acordo de paz formal. De todos os atores regionais, a Coreia do Sul era a que mais tinha expectativas em ver os EUA e a Coreia do Norte se afastarem do caminho da guerra (afinal, Seul seria o alvo principal de ataques militares norte-coreanos em caso de um conflito armado aberto). Aliás, também houve um encontro histórico entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte em abril de 2018, quando os líderes de ambos os países se encontraram na linha que divide as duas Coreias. A Coreia do Sul fará de tudo ao seu alcance para garantir que o ímpeto das negociações entre EUA e Coreia do Norte continue, embora não esteja claro se o país foi consultado sobre o cancelamento dos exercícios militares conjuntos dele com os EUA. Para a China, o acordo simbólico e melhores laços entre os EUA e a Coreia do Norte são desenvolvimentos positivos, desde que resultem em um relacionamento que se situe entre a rápida reaproximação e o fracasso total. A fim de aliviar as preocupações imediatas sobre o confronto militar, a China quer que a Coreia do Norte faça progressos claros para reduzir sua capacidade nuclear e se abster de novos testes nucleares e de mísseis. A decisão dos EUA de suspender os exercícios militares introduz a perspectiva de uma postura limitada de defesa e, mesmo que aponte também para ajustes militares mais flexíveis na região, isso é percebido como um ganho líquido para Pequim. Agora que a cúpula diminuiu a probabilidade de um confronto militar entre os EUA e a Coreia do Norte, a próxima prioridade da China será garantir que ela desempenhe um papel importante em moldar os acontecimentos vindouros na península coreana. Tratando-se da Rússia, Moscou teme ser deixada do lado de fora da solução bilateral para a questão nuclear e de mísseis norte-coreanos. Isso ameaçaria não apenas desvalorizar claramente a narrativa do papel internacional da Rússia como uma grande potência global, que é muito importante para o Kremlin, mas também para criar formatos novos e não muito amigáveis à Rússia para a prestação de segurança na Ásia Oriental, na qual as garantias de segurança dos Estados Unidos teriam o papel fundamental. IM – Como a tentativa de aproximação entre Estados Unidos e Coreia do Norte deve ser entendida do ponto de vista da estratégia de política externa de Washington? Há poucos dias, Trump retirou apoio ao comunicado final aprovado na cúpula do G-7 após o fim do encontro. Como compreender o novo episódio neste contexto por muitos entendido como de maior isolacionismo norte-americano?
BW – Donald Trump exalta quebrar tabus em política externa. Ele oferece novas abordagens a problemas antigos. Trump herdou um país cansado de ser o policial do mundo, frustrado por jihadistas e Estados “rebeldes” como o Irã, e preocupado com o crescente desafio da China. As duras guerras, no Afeganistão e no Iraque, e a crise financeira de 2008 apenas aprofundaram a sensação de que o sistema de instituições, tratados, alianças e valores classicamente liberais, reunidos depois de 1945, não estava mais beneficiando os norte-americanos comuns. Trump tem outras ideias. Ele lançou ataques aéreos na Síria (depois deste país usar gás sarin) em nome da manutenção das normas internacionais. Porém, Trump aborda todos os relacionamentos como um conjunto de transações competitivas. Quando os Estados Unidos se submetem a devoções diplomáticas, convenções ou à sensibilidade de seus aliados, Trump acredita estar negociando com uma mão atada às costas. É nesse contexto da estratégia de política externa de Washington, D.C. que deve ser vista a tentativa de aproximação dos Estados Unidos com a Coreia do Norte. IM – O que esperar após a formalização de compromissos por Washington e Pyongyang para a “paz e prosperidade” na região? É realmente possível acreditar em uma desnuclearização da Coreia do Norte?
BW – Existe um otimismo em relação ao encontro entre Donald Trump e Kim Jong-Un, o que é compreensível. Mas o otimismo é um pouco prematuro. A Coreia do Norte e os Estados Unidos ainda vêem o mundo em termos fundamentalmente diferentes. Há três possíveis resultados que podem emergir da cúpula. O primeiro e o mais provável é o retorno ao status quo, isto é, serão necessários mais encontros ou os países voltarão a se ameaçar. O segundo cenário, improvável, é que a Coreia do Norte passe a ver a China como sua principal ameaça (impérios chineses já ocuparam a península coreana ao longo da história, e Xi Jinping está aumentando bastante seu poder na China atual), fazendo concessões e buscando garantias de segurança dos EUA, os quais ficariam em posição sensível diante da China. O terceiro cenário é a capitulação dos EUA. Nesse cenário, Washington, D.C. estaria disposta a abandonar seus compromissos de segurança na península coreana em troca de uma promessa norte-coreana de desnuclearização. O problema aqui é que os EUA se tornaram tão investidos na Coréia do Sul que se retirar da península agora pelas promessas vazias de um país tão historicamente desonesto quanto a Coreia do Norte seria visto como um sinal de tremenda fraqueza por parte dos aliados dos EUA. Quer investir em ações pagando só R$ 0,80 de corretagem? Clique aqui e abra sua conta na Clear