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SÃO PAULO – Quase R$ 2,4 bilhões foram “esquecidos” pelos brasileiros no sistema de consórcios em 2020. Os dados constam em relatório publicado recentemente pelo Banco Central.
Tecnicamente, esse dinheiro é conhecido como “recursos não procurados”. Segundo o Banco Central, trata-se de “valores financeiros pendentes de devolução a cotistas de grupos de consórcio encerrados”. Significa que eles pertencem a alguém que não os resgatou quando já poderia ter feito isso.
Um detalhe: desde 2008, quando entrou em vigor a Lei dos Consórcios (11.795), as administradoras estão autorizadas a cobrar uma taxa de permanência sobre os recursos não procurados. Só em 2020, isso rendeu R$ 823 milhões às instituições financeiras — o que corresponde a 34% do valor total esquecido pelos consorciados.
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Na média, segundo o Banco Central, a taxa de permanência foi de 5,1% ao mês em 2020. No ano, a soma é de cerca de 61%. Significa que alguém que deixasse de resgatar R$ 1.000 de um consórcio já encerrado teria, um ano depois, apenas R$ 390 na conta.
O Banco Central não limita ou fixa os valores das taxas de permanência. A legislação determina apenas que suas condições estejam detalhadas no contrato de participação em grupo de consórcio.
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A taxa de permanência média variou ao longo dos últimos anos. Chegou a ser de 5,8% ao mês em 2013 e de 4,9% em 2017. De 2013 para cá, período abrangido no relatório do Banco Central, o maior volume de recursos cobrados pelas administradoras sobre os recursos não procurados ocorreu em 2017 — foram R$ 866 milhões
Ano | Taxa de permanência (% ao mês) | Taxa de permanência (R$ milhões arrecadados ao ano) |
2013 | 5,8% | 672 |
2014 | 5,7% | 574 |
2015 | 5,2% | 678 |
2016 | 5,0% | 769 |
2017 | 4,9% | 866 |
2018 | 5,2% | 813 |
2019 | 5,2% | 805 |
2020 | 5,1% | 823 |
Fonte: Banco Central
“Eventual abuso na fixação de preços é matéria de competência dos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, a exemplo dos Procons e do Departamento Nacional de Defesa do Consumidor (DPDC)”, segundo o Banco Central.
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De onde vem o dinheiro esquecido?
Os recursos não procurados, de acordo com Paulo Rossi, presidente da Associação Brasileira de Administradoras de Consórcios (Abac), são compostos principalmente pelo dinheiro de pessoas contempladas no consórcio que não foram resgatá-lo, pelas parcelas já pagas por pessoas que acabaram desistindo do produto, e também pelos valores depositados nos fundos de reserva, caixa comum existente em alguns grupos para fazer frente a despesas extras ou inadimplência de participantes.
Segundo executivos do setor, a principal fonte de recursos esquecidos são os casos em que o participante desiste do consórcio, seja porque teve uma redução de renda, seja porque perdeu o interesse na modalidade. Nesses casos, os valores já pagos não podem ser resgatados imediatamente – caso contrário, o funcionamento do grupo, que depende das economias de todos os membros para que um ou alguns a cada mês sejam sorteados e adquiram o bem desejado, seria desestabilizado.
O desistente, que continua participando dos sorteios mensais, poderá receber o dinheiro de volta em duas situações: quando for contemplado ou quando o grupo terminar. Assim, se alguém fez um consórcio de 60 meses e parou de pagar as parcelas no 20º, precisará — na pior das hipóteses — esperar mais 40 para resgatar os recursos que já havia pago.
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Ocorre que quando o prazo a esperar é tão longo, tudo pode acontecer no meio do caminho: o participante pode mudar de telefone e endereço, a conta corrente informada inicialmente pode ter sido encerrada, ele pode falecer, entre muitas outras possibilidades.
De acordo com o relatório do Banco Central, atualmente, 49,1% das cotas do sistema pertencem a consorciados “excluídos” dos grupos — seja porque desistiram, seja porque deixaram de cumprir obrigações financeiras contratuais. Segundo Márcio Kogut, CEO da Mycon, fintech de consórcio digital, significa dizer que, na prática, metade das pessoas que compram consórcios não chegam ao fim dos pagamentos. E quanto maior é esse percentual, maior tende a ser também o volume de recursos não procurados no futuro.
“Muitas vezes, os vendedores reforçam que as chances de contemplação são altas, gerando expectativas irreais no participante. Mas consórcio não é dinheiro rápido, não é capital de giro”, afirma Kogut. Na Mycon, segundo ele, que faz vendas apenas digitais, as desistências somam 13%.
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Além da quebra de expectativas, outros fatores explicam a taxa elevada de exclusão. Ainda que o dinheiro fique “preso” até a contemplação ou até o encerramento do grupo, o processo de desistência é mais simples que o de um financiamento, segundo Lorelay Lopes, diretora de negócios da UP Consórcios. Isso é verdade especialmente para quem ainda não foi contemplado — grosso modo, é só interromper os pagamentos. Após a contemplação, a situação é diferente, pois o bem adquirido com a carta de crédito fica alienado em nome da administradora e a inadimplência pode acarretar na sua perda.
“Por mais que a desistência pareça dolorosa, se desvencilhar do compromisso dos pagamentos mensais de um consórcio é fácil”, explica Lorelay. Na sua visão, a “empolgação” de quem encontra no consórcio uma forma relativamente barata de adquirir um bem desejado é um dos fatores que podem levar à desistência no futuro, quando as condições da vida se impõem. “As pessoas assinam o contrato, que traz todas as informações, mas não é suficiente, porque muitas vezes elas não o leem integralmente. Muitas não têm noção do funcionamento do produto”.
Rossi, da Abac, diz que há alternativas para os consorciados antes de uma saída definitiva. “O participante pode ser transferido para uma cota de menor valor no grupo ou pode ainda transferir sua cota para outra pessoa. Se precisar parar de pagar por um tempo, pode ser reabilitado e voltar a participar do grupo. A exclusão é a última saída”, afirma.
Questionado se existe alguma iniciativa para reduzir os elevados níveis de desistência dos consórcios, o Banco Central respondeu que, em 2016, foram estabelecidas exigências regulamentares de comprovação de viabilidade econômico-financeira para que as administradoras criem novos grupos. Elas precisam verificar a capacidade de pagamento dos participantes, avaliar os níveis de inadimplência e de exclusão de consorciados que possam impactar o fluxo de recursos regular para o grupo, planejar o processo de vendas de novas cotas ou de cotas de reposição, além de definir processos e sistemáticas efetivas de cobrança e de renegociação de dívidas de inadimplentes, bem como de recuperação de ativos.
O que dizem as regras do BC
Segundo o Banco Central, quando um grupo de consórcio está prestes a ser encerrado, a administradora precisa comunicar os participantes da existência de valores remanescentes à disposição para resgate. Isso precisa ser feito em até 60 dias depois da última assembleia de contemplação.
Ainda antes de fechar o grupo, a administradora deve depositar os valores remanescentes aos participantes nas contas informadas nos contratos de adesão, caso isso tenha sido autorizado previamente — e avisá-los sobre isso.
Só então ocorre o encerramento. A partir daí, o que tiver sobrado no grupo recebe o carimbo de “recursos não procurados”. As administradoras devem divulgar em seus sites, com acesso pela página inicial, os beneficiários dos valores e a orientação sobre os procedimentos que devem ser adotados para recebê-los. “Esses valores serão devolvidos pela administradora assim que forem exigidos pelos credores, mas estarão sujeitos à cobrança de taxa de permanência, conforme regra prevista em contrato”, informa a autoridade.
Segundo Rossi, da Abac, as administradoras procuram contatar os participantes com dinheiro para receber de todas as formas: correspondência, telefone, e-mail e até WhatsApp. É comum, no entanto, que encontrem dificuldades por conta de dados cadastrais desatualizados. Segundo o Banco Central, é obrigatório constar no contrato do consórcio a informação de que é do participante, inclusive se for excluído do grupo, a obrigação de manter atualizadas suas informações cadastrais perante a administradora, incluindo o endereço, o número de telefone e os dados da conta de depósitos, caso possua.
Mocinho ou vilão?
Os consórcios têm uma história de mais de 50 anos no Brasil — e, aliás, só no Brasil. Criação do mercado nacional que não se disseminou em outros países, o produto surgiu como uma forma de possibilitar o consumo à população em uma época em que o crédito era escasso. Mas, na visão de Ione Amorim, economista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), sempre teve um quê de “polêmico”. “Em alguns momentos o consórcio aparece como uma grande oportunidade e outros, como vilão”, diz. “Em geral, a forma como as cotas são vendidas é muito pouco esclarecedora”.
Um dos principais atrativos do consórcio é a não cobrança de juros e, sim, de uma taxa de administração — normalmente, bem mais baixa que o custo de um empréstimo. Em 2020, por exemplo, a taxa de administração média, considerando todas as modalidades de consórcio, ficou em 16,51%. Esse percentual é aplicado sobre o valor da cota, com pagamentos de uma pequena fração dele a cada mês.
Podem existir, porém, outros custos em uma cota de consórcio — e eles variam de administradora para administradora. É o caso do fundo de reserva e da própria taxa de permanência sobre recursos não procurados. Não há uma consolidação de todas essas cobranças paralelas em uma taxa unificada, como o CET (Custo Efetivo Total, de divulgação obrigatória pelas instituições financeiras que oferecem crédito.
Segundo o Banco Central, não é possível adotar instrumentos como o CET nos consórcios. “Nesse segmento, o consorciado começa a sua participação na condição de poupador e, após a contemplação, passa a ser tomador de crédito”, esclareceu a instituição em nota. “Uma vez que o momento dessa mudança de condição é incerto, não é possível fazer um cálculo semelhante ao CET para ser apresentado ao consorciado quando da sua adesão ao grupo de consórcio”.
Também não existe, segundo a autoridade monetária, mecanismos para interromper a cobrança de taxa de permanência, a exemplo do que acontece com recursos deixados em contas correntes inativas. “O caso dos recursos não procurados nos consórcios lembra muito quando, no passado, as pessoas resgatavam o dinheiro da conta corrente, mas não formalizavam o encerramento da conta”, lembra Ione. “O banco continuava cobrando tarifas e, se o correntista tivesse cheque especial, acabava com uma dívida. Por muitos anos, isso foi prática comum no sistema financeiro”.
Mais tarde, isso mudou. Hoje, segundo o Idec, se uma conta corrente não for movimentada pelo cliente por mais de 90 dias, o banco deverá comunicar a situação ao correntista, alertando-o de que a tarifa de manutenção continua sendo cobrada. Após seis meses sem movimentação, o banco poderá optar por manter a conta aberta ou contatar o usuário para que ele decida, em 30 dias, se voltará a movimentá-la. Se não houver manifestação do consumidor, o banco cessará a cobrança de tarifas e débitos sobre a conta após esse período.
Sistema de Valores a Receber
Os consórcios não são os únicos produtos que acumulam recursos esquecidos. O Banco Central calcula que haja cerca de R$ 8 bilhões deixados em instituições financeiras – e que poderiam estar no bolso dos consumidores. Por isso, desde junho a autoridade está desenvolvendo o Sistema de Informações de Valores a Receber (SVR), que permitirá a pessoas físicas e jurídicas consultar os saldos mantidos em instituições financeiras e facilitará a devolução dos valores.
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A previsão é de que o SVR esteja em operação em dezembro, com informações de saldo credor de contas encerradas, parcelas de empréstimo e tarifas cobradas indevidamente, recursos não procurados em consórcios e cotas de capital a devolver em cooperativas de crédito, entre outros. “Boa parte das pessoas desconhece ou não se lembra que possui esses direitos. Além disso, a perspectiva de recebimento de valores baixos pode não motivá-las a procurarem as instituições financeiras com as quais mantém ou mantiveram relacionamento atrás de informações”, explica o Banco Central.