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Os planos do Banco Central para o real digital ficaram mais concretos na segunda-feira (6), com o anúncio do primeiro piloto da nova apresentação da moeda brasileira.
Os testes acontecerão ao longo de 2023 e contarão com a participação de instituições do sistema financeiro, nos moldes dos fóruns que deram origem ao Pix.
Segundo Fábio Araújo, responsável pelo projeto do real digital no BC, objetivo é desenvolver a plataforma de testes com “foco especificamente na infraestrutura de programabilidade em DLT”.
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Mas, o que isso significa?
O que é DLT?
DLT é sigla em inglês para Tecnologia de Registro Distribuído, uma espécie de rede contábil em que todos os participantes têm acesso ao histórico de operações e podem auditar os dados de maneira mais transparente. É uma versão mais colaborativa dos tradicionais bancos de dados – e, por isso, considerada mais segura.
O tipo de DLT mais famoso é a blockchain, tecnologia que nasceu com o Bitcoin (BTC) em 2008. O assunto, portanto, é algo muito novo.
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Na blockchain, a rede distribuída conta com uma criptografia especial e um sistema de incentivos que permite que qualquer pessoa participe da verificação de dados sem a capacidade de burlá-los – após inúmeras tentativas, a tecnologia blockchain nunca foi hackeada.
A DLT, no entanto, é um conceito mais amplo. No caso do BC, a escolha foi pela Hyperledger Besu, uma tecnologia inspirada no Ethereum (ETH), mas que permite criar redes controladas por um administrador central.
Ela mescla bancos de dados tradicionais e com blockchain: os dados são armazenados e auditados por vários participantes, mas o controlador – no caso, o Banco Central – pode decidir quem tem permissão para entrar e olhar os dados que trafegam ali dentro.
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O uso de DLT para uma moeda nacional, como se quer fazer com o real, tem implicações que passam pelo ganho de transparência nas operações, o que facilita auditoria por parte das autoridades.
Há, no entanto, uma preocupação em manter a privacidade dos dados trafegados, de modo que transações não sejam acessadas por qualquer instituição.
“As tecnologias distribuídas têm a tendência de dar uma ampla visibilidade de informação na rede, então precisamos pensar bem nas estratégias que podem ser usadas para garantir as privacidades que são requeridas por lei”, comentou Araújo.
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Programabilidade do dinheiro
Entender DLT é importante para compreender as mudanças prometidas pelo real digital, mas o objetivo final do BC não é simplesmente criar um banco de dados mais moderno. O foco do esforço, na verdade, está mesmo no que se chama de “dinheiro programável”.
Mas, ao contrário do que o nome pode indicar, “dinheiro programável” não se refere a tarefas corriqueiras como o agendamento de pagamento no banco.
“A programabilidade é um conceito mais profundo. Quando a moeda é programável, significa que é possível embutir essas regras dentro da própria moeda”, explica Jefrey Santos, diretor de tecnologia da Capitual, fintech envolvida nos testes de prova de conceito do real digital.
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A programação da moeda pode permitir, por exemplo, que empresas criem programas de fidelidade para clientes que, por exemplo, contabilizam compras e serviços prestados automaticamente para entregar uma bonificação monetária.
Se hoje algo do tipo precisaria de uma infraestrutura de back office, com o real digital poderia ser criada por um simples programa de computador.
“Eu consigo fazer isso na forma de um token programado. Dessa forma, através da tecnologia das moedas programáveis, eu consigo emitir um ativo que pode durar [determinado] tempo. A moeda então já sabe que irá durar apenas 30 dias após ser emitida”, exemplificou Santos.
O mesmo tipo de programação poderia ser aplicado, disse, a benefícios trabalhistas, como o vale-alimentação e o vale-refeição, assim como para créditos de telefonia, entre outros tipos de gastos direcionados.
Fábio Araújo, do BC, explicou mais sobre a programabilidade de transações em fala recente durante participação em evento promovido pelo grupo empresarial Lide.
“Uma Prefeitura poderá dar um voucher para comprar leite que pode ser digital e estar na carteira [digital do cidadão], e ter todas as características de dinheiro, mas, na hora do pagamento, ele só vai se prestar para aquela finalidade”, explicou.
No entanto, o responsável pelo real digital ressaltou que é preciso separar o voucher do dinheiro, deixando claro que não é um desejo do BC controlar os gastos do cidadão.
“É muito importante separar o voucher do dinheiro, e deixar bem claro para quem está recebendo. Isso precisa estar muito claro para as pessoas, porque existe um risco de interferência que é preciso tomar muito cuidado”, salientou Araújo “Cabe às pessoas definirem como vão usar [seu dinheiro]”.
Contratos inteligentes
O BC avalia diversas provas de conceito que exploram o conceito de programabilidade do dinheiro. Em uma delas, desenvolvida pela Vert, o dinheiro programável é utilizado para que um banco possa monitorar gastos de um empréstimo para o setor rural, com o objetivo de melhorar a auditoria e expandir o crédito para este setor.
Em outro, criado pelo Santander em parceria com a Parfin, uma moeda digital é usada em um marketplace de compra e venda de veículos que faz a transmissão do bem assim que o pagamento é realizado, eliminando a necessidade de ir ao cartório.
Em outro teste, realizado pela Tecban junto com o Capitual, um token é utilizado para pagamentos de compra online que libera o dinheiro automaticamente para o vendedor quando o comprador retira o produto em um armário inteligente.
Esse tipo de inovação, com uso de transações financeiras sem interferência humana, é proporcionado pelo uso dos smart contracts (contratos inteligentes), programas de computador que se executam de forma automática assim que certas condições acordadas previamente pelas partes são atendidas. Eles são feitos para interagirem com ativos digitais e, por isso, são incompatíveis com o sistema bancário atual.
Os smart contracts são a tecnologia por trás de diversas inovações no campo das criptomoedas, como NFTs e DeFi, e surgiram com a invenção do Ethereum, considerado abertamente pelo BC como inspiração para o real digital.
“No ano passado, um terço dos pagamentos foram processados manualmente a nível mundial. É um absurdo pensar que hoje em dia um pagamento ainda depende de alguém com uma planilha para fazê-lo chegar na outra pessoa”, comenta o CTO da Capitual.
Primeiro passo: ativos financeiros
As possibilidades do real digital são imensas, mas o BC irá dedicar o piloto para testar se as funcionalidades podem ser aplicadas a ativos financeiros. A descobrir se a moeda digital poderá alimentar um marketplace digital de Títulos Públicos Federais envolvendo clientes de bancos diferentes.
A simulação trará o cliente de um banco “A” comprando um título de um cliente do banco “B”, com a transação conciliada imediatamente nos bastidores, com uma comunicação instantânea das instituições financeiras com o BC.
A novidade lembra o Pix, mas com muito mais funcionalidade. “O real digital funcionará como uma espécie de “Pix dos serviços financeiros”, disse Fábio Araújo.
Se tudo der certo, a primeira inovação do real digital poderá ser criar uma nova leva de ativos financeiros emitidos em forma de tokens, que poderão trazer consigo a função de portabilidade e de negociação sem limitação de horário – ao contrário do que acontece hoje, em que é possível enviar uma ordem no fim de semana, mas a operação é liquidada apenas no expediente bancário, ativos financeiros tokenizados poderão funcionar 24 horas por dia, assim como as criptomoedas.
“Esse novo cenário permite imaginar um mundo de possibilidades para os negócios, seja mercado primário ou secundário, em território nacional e internacional”, opina Yuri Nabeshima, head da área de inovação do VBD Advogados.
“A maior velocidade, menor custo e simplificação das operações por meio da adoção da tecnologia disruptiva (blockchain e smart contract) promete aquecer o ambiente de negócios, promovendo a inclusão financeira de novos stakeholders (fintechs, investidores em geral, etc), de maneira até transfronteiriça”.