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Por muito tempo considerado um mercado não exposto a catástrofes climáticas, o Brasil tem sofrido com o aumento da frequência de eventos extremos. Um dos exemplos mais recentes é o ciclone extratropical que atinge parte do Rio Grande do Sul desde a madrugada da última sexta-feira (16), provocando temporais e ventanias e deixando alagamentos, estradas bloqueadas, falta de luz e voos cancelados em cidades da região metropolitana de Porto Alegre. Além dos prejuízos materiais, segundo a Defesa Civil do estado, até a noite de domingo (18), o ciclone já havia deixado 13 mortos e três pessoas desaparecidas, além de 3,7 mil pessoas desabrigadas e 697 desalojadas.
As mudanças climáticas também vêm impactando as variações de períodos de secas e chuvas agravadas pelo La Niña, que chegou ao fim em março de 2023 após três anos de duração. Um dos seus reflexos foi a seca que afetou o Sul do país e impactou a produção de soja e milho resultando em perdas seguradas de US$ 1 bilhão em 2022, segundo dados da companhia global de seguros e resseguros Swiss Re.
Para o restante de 2023, o horizonte segue desfavorável, com formação do fenômeno climático El Niño e o fortalecimento gradual dele entre o fim do outono e o inverno, informação confirmada pelo Centro de Previsão Climática da Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA). Em abril deste ano, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) já havia alertado sobre a possível chegada do fenômeno em poucos meses. O El Niño é caracterizado pelo aquecimento anormal e persistente da superfície do Oceano Pacífico na região da Linha do Equador, podendo se estender desde a costa da América do Sul até o meio do Pacífico Equatorial, explica o Inmet. No Brasil, seu impacto se dá aumentando o risco de seca na faixa norte das regiões Norte e Nordeste e de grandes volumes de chuva no Sul do País.
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Na análise de Pedro Farme, CEO no Brasil da corretora de resseguros global Guy Carpenter, o mercado de seguros brasileiro não está preparado para absorver os eventuais prejuízos gerados por uma frequência maior de ciclones extratropicais. Isso porque um evento climático dessa magnitude costuma afetar áreas muito maiores, chegando a atingir, por exemplo, de duas a cinco fábricas em uma mesma ocorrência.
“E aí é que começa a juntar a realidade do mercado com a nova realidade climática, ou seja, um mercado que a vida inteira teve regulação, requerimento de capital e compra de resseguro voltado para uma perspectiva de que a gente não tinha eventos da natureza ou não estava exposto a evento de grande porte de natureza, hoje precisa se adequar”, aponta. Segundo ele, faltam ao país modelos preditivos (sistemas que analisam conjuntos específicos de dados para prever cenários ou tendências) adequados a essa nova “realidade climática” brasileira, a exemplo do que já existe em locais como a Flórida, nos Estados Unidos, com um trabalho em relação aos furacões comuns em sua costa. Contudo, ele conta que a companhia já começou a desenvolver um modelo para o Brasil focado em vendavais.
Por meio da CNseg (Confederação Nacional das Seguradoras), as seguradoras estão se movimentando neste sentido, com um projeto que visa desenvolver ferramentas para mapear os riscos climáticos em todos os estados, incluindo um mapa de calor (Heat Map) que irá medir a exposição brasileira a 12 riscos climáticos físicos. O programa foi desenvolvido inicialmente em âmbito global pela United Nations Environment – Programme Finance Initiative (UNEP- FI), braço financeiro da ONU para questões climáticas, e já teve ferramenta utilizada nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Na América Latina, o Brasil foi o país escolhido para o projeto que deve ser concluído ainda em 2023.
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As seguradoras poderão avaliar os estados e capitais mais impactadas pelos seguintes riscos: ondas de calor e de frio, secas, mudanças crônicas de temperatura, enchentes fluviais, costeiras e urbanas, aumento do nível do mar, estresse hídrico, variabilidade sazonal, intensidade do vento e incêndio. Quanto à intensidade, o impacto de cada um dos riscos nos estados e nas capitais poderá ser classificado como: alto, médio, baixo ou indeterminado.
“O Heat Map oferece uma visão simplificada da exposição geográfica brasileira, considerando dois cenários climáticos, aumento de 2ºC e de 4ºC, e dois horizontes temporais distintos, 2030 e 2050”, conta Ana Paula Almeida Santos, diretora de Sustentabilidade e Relações de Consumo da CNseg. A ferramenta servirá para auxiliar a subscrição, ou seja, em uma precificação dos produtos de seguros mais adequadas ao risco. Além disso, Ana Paula aponta que a ferramenta “pode ter um grande auxílio na construção de políticas públicas”, contribuindo para a mitigação dos riscos e destinação mais adequada de verbas, por exemplo, às regiões mais suscetíveis a sofrer com os eventos climáticos.
Quais são as áreas mais impactadas?
Considerando os impactos dos eventos climáticos extremos no mercado de seguros, o segmento rural costuma ser o mais afetado diretamente. Em 2022, as seguradoras que operam no ramo arrecadaram cerca de R$ 13,4 bilhões e pagaram R$ 10,5 bilhões em indenizações. É um setor que conta com subsídio do governo que, neste ano, anunciou o montante de R$ 1 bilhão para auxiliar os produtores.
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Contudo, as fontes do setor consultadas pela reportagem apontam várias outras áreas cada vez mais impactadas. O seguro de automóvel é um deles, a exemplo dos 6,5 mil veículos resgatados pelas seguradoras após as chuvas que atingiram São Sebastião, no litoral paulista, em fevereiro.
Pensando ainda na região costeira, Farme, da Guy Carpenter, alerta para o prejuízo às exportações que um vendaval forte poderia causar ao derrubar, por exemplo, uma grua do porto de Santos, gerando eventualmente uma paralisação das atividades do maior porto da América Latina. É o tipo de situação que geraria um grande impacto negativo no segmento de transportes, sempre muito preocupado com a questão de roubos. “O mercado de transporte que se percebe afastado do risco climático, tem que se preocupar com isso, porque você passa a ter regiões que são importantes hubs logísticos do Brasil muito mais expostos a intempéries da natureza também”, salienta.
Isso sem contar os possíveis casos de catástrofes climáticas que resultem em interdição de rodovias, também a exemplo do que houve com a Rio-Santos que teve diversas interdições no trecho da região de São Sebastião. “Existe até uma discussão grande no mercado sobre como, por exemplo, que você vai proteger uma rodovia em concessão pública? Hoje os limites exigidos pelos editais de licitação e concessão são muito baixos, porque não imaginam um dano, por exemplo, que vá bloquear um trecho de muitos quilômetros da Dutra. Como é que o governo vai ter que agir, porque esses sinistros podem voltar para o governo, pode voltar a ter discussão de equilíbrio financeiro dos contratos de concessão por riscos que não foram medidos na primeira estimativa dos editais, e o mercado hoje não prevê esse tipo de limite. É um mercado muito diferente quando a busca é por limite de proteção catastrófica”, observa Farme.
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Ana Paula, da CNseg, ressalta ainda outros impactos no longo prazo gerados por aumento na frequência e intensidade de fenômenos como El Niño e La Niña. Segundo ela, há reflexos na saúde suplementar e no seguro de vida. “Porque no Norte e Nordeste o El Niño causa baixa umidade, incêndios florestais, e processo de desertificação. Uma quantidade maior de carbono e poluição atmosférica gera uma tendência muito maior de hospitalização por doenças respiratórias”, aponta a executiva.
Como o risco pode ser compartilhado entre setor público e privado?
É consenso entre os especialistas consultados que o risco deve ser compartilhado entre o setor privado e o governo. “Em geral, a média global é de 30% a 36% dos sinistros pagos de seguro representando o total das perdas econômicas. Então se um furacão causa uma perda econômica de 100 milhões de dólares é estimado que o mercado de seguros vai pagar entre 30 a 40 milhões de dólares desse prejuízo todo. Ou seja, os 70 ou 60 bilhões de dólares restantes é o que chamamos de ‘gap’ [lacuna] de cobertura, que acaba ficando um pouco na sociedade civil e muito na mão do governo. Especialmente quando falamos de ativos públicos, como ruas, escolas, estradas e por aí vai”, exemplifica Farme.
Ou seja, são ativos públicos que precisarão ser reconstruídos com verbas governamentais obtidas a partir dos impostos pagos por toda a sociedade civil. No caso do Brasil, ele estima que esse ‘gap’ é muito maior. “Se olharmos o histórico sobretudo dos eventos de São Paulo desse ano, de Angra dos Reis de três anos atrás, e da Serra do Rio de Janeiro em 2011, nesses exemplos, a média indenizada de seguro ficou abaixo de 9%, ou seja, o ‘gap‘ é maior do que 90%”, pontua.
“O que se defende é que cada vez mais o seguro tem que fazer parte do planejamento nacional e o risco climático deve ser compartilhado. Há consenso internacional que o setor privado não pode arcar sozinho com essa conta”, reforça Ana Paula, da CNseg.
Os entrevistados apontam que muitos países, cada um a seu modo, já dividem a conta de reflexos gerados pelo risco climático entre setor público e privado. Os exemplos citados vão além de países mais desenvolvidos como Estados Unidos e os europeus (como França e Alemanha), mas incluem até México e Chile.
“Sem dúvidas é uma iniciativa que já vimos vários exemplos positivos no mundo com uma pluralidade de modelos, seja uma compra integralmente terceirizada privada, seja através de um veículo estatal que administra a distribuição dos recursos e compra resseguro do mercado privado”, indica o CEO da Guy Carpenter.
O advogado Cassio Gama Amaral, sócio da área de seguros do Machado Meyer Advogados, concorda que o ‘gap’ de cobertura para catástrofes climáticas é um dos grandes problemas brasileiros hoje. “Infelizmente no Brasil o mercado de seguros vai ser menos impactado [pelo El Niño] do que deveria”, diz, justamente por conta da lacuna de proteção securitária, e até por conta do fundo de catástrofes naturais que há anos é debatido no país, “que é um fundo que está vazio”.
O advogado aponta que no atual cenário de restrição fiscal pelo qual o Brasil passa, assim como boa parte do mundo, é difícil que esse fundo de fato comece a funcionar. Por isso, o ideal seria uma “estrutura mista de seguro e proteção estatal”. “Eu acho que falta aqui no Brasil uma ação mais proativa do mercado segurador propondo soluções mistas que passem necessariamente por instrumentos que gerem eficiência, que gerem resultados para os seguradores e que reduza o custo para o estado e os contribuintes”, comenta.
Amaral sugere também que o mercado de capitais poderia contribuir mais por meio da captação de recursos financeiros para fazer frente a riscos catastróficos – os chamados ‘cat bonds’. Ele conta que no Brasil é relativamente novo, mas no exterior já é algo muito comum e o mercado chega a girar de 40 a 70 bilhões de dólares no mundo. “É muito utilizado lá fora e a gente tem hoje regulamentação no Brasil que permite algo como isso”, complementa o sócio do Machado Meyer.