Publicidade
SÃO PAULO – Os preços caíram no país pelo segundo mês seguido. Segundo o IBGE, o IPCA registrou deflação de 0,38% em maio, depois de recuar 0,31% em abril. Essa é a maior queda de preços mensal em 22 anos, desde agosto de 1998 (-0,51%), ou a segunda maior deflação em 40 anos, desde 1980, início da série histórica do índice medido pelo IBGE. Também foi a maior queda para um mês de maio de toda a série do IPCA.
Os brasileiros traumatizados pelo período de hiperinflação, que assombrou o país entre o fim da década de 80 e início dos anos 90, podem até achar que o alívio nos preços é uma notícia boa em meio a tantas negativas. Mas economistas consultados pelo InfoMoney dizem que não há nada a comemorar na queda de preços.
O IPCA é um índice de inflação e o principal termômetro da variação de preços da economia brasileira hoje. Ele mede o comportamento de uma cesta de produtos e serviços que reflete o padrão típico de consumo de famílias que ganham de 1 a 40 salários mínimos. Quando o IPCA sobe há inflação, quando cai há deflação.
Continua depois da publicidade
Para começar a explicar a deflação, é importante olhar o dado em perspectiva. Alex Agostini, economista-chefe da Austin Rating, diz que ao observar os dados IPCA desde 2000 (após a criação do tripé macroeconômico, em 1999, que adotou os parâmetros de câmbio, juros e inflação que seguem até hoje) os meses de maio registraram, em média, uma inflação de 0,42%, bem diferente da queda do mês passado.
“Todo indicador tem um padrão histórico e quando o dado sai do padrão, existe algo fora do lugar. É como o nosso corpo: em geral a temperatura é de 36,5ºC, se fica muito acima temos febre e se fica muito abaixo o corpo pode ter uma hipotermia e falência múltipla dos órgãos”, comenta Agostini.
E o que explica essa quebra de padrão só torna o quadro ainda mais preocupante. “Essa deflação é decorrente de uma crise profunda. É o sintoma de uma relação econômica que tem na sua origem o prejuízo de alguém, de um cidadão que produziu algo a R$ 10 para vender a R$ 12, mas a crise é tão grande que ele precisou vender a R$ 9 para amenizar o prejuízo.”
Continua depois da publicidade
Em outras palavras, a deflação dos últimos dois meses é consequência de uma destruição de valor, de preços despencando porque os brasileiros não estão consumindo, seja porque estão saindo menos de casa, diante das restrições impostas pela pandemia, ou porque perderam renda e emprego e tiveram que cortar gastos.
Poderia ser bom, mas não é
Para entender a inflação, vale lembrar da lei da oferta e da demanda. Quando a oferta supera a demanda os preços tendem a cair e quando a demanda supera a oferta eles tendem a subir. Em uma situação hipotética e bem mais positiva, os preços poderiam cair, portanto, diante de um aumento da produtividade das empresas, que impulsionaria a produção. Mas não é o que está acontecendo.
“Seria ótimo se um crescimento econômico justificasse a atual queda de preços. Mas por que essa deflação é tão ruim? Pela sua causa. Muita gente perdeu renda, emprego e em um contexto de muita incerteza as pessoas consomem menos. E como a produção acontece antes de a demanda se consolidar, já existia uma produção em curso, que não foi acompanhada pela demanda e os preços caíram”, explica Juliana Inhasz, professora de economia do Insper.
Continua depois da publicidade
Em outro cenário, uma queda de preços poderia até ser positiva e estimular o consumo, mas de que adianta os produtos ficarem mais baratos se as pessoas não têm renda para consumir? “Você pode até pagar menos por alguns produtos, mas isso deriva de um problema mais grave que pode bater em você”, resume Alex Agostini.
Com a renda caindo e o endividamento subindo, o país entra em um ciclo vicioso. O consumo fica baixo, a receita das empresas cai, a arrecadação de impostos diminui, empresários interrompem investimentos, contratações e no limite se veem obrigados a demitir funcionários ou até fechar as portas, aumentando o desemprego, que reduz ainda mais o consumo.
Preços que sobem não ajudam
Existe outro aspecto negativo embutido nos últimos dados do IPCA. Os produtos que estão subindo são justamente aqueles que o brasileiro não pode abrir mão. “O que joga o preço da cesta para baixo são os itens que os brasileiros deixaram de consumir porque estão dentro de casa, como o lazer, vestuário, mas o que as pessoas realmente precisam comprar está mais caro, como os alimentos. Resultado: comprar o básico ficou mais caro para as pessoas de renda menor, elas estão gastando mais do que antes com a subsistência”, comenta a professora de economia do Insper.
Continua depois da publicidade
De acordo com o IBGE, em maio as maiores altas do IPCA foram registradas pelos artigos de residência, que subiram 0,58%, e pelos alimentos, que avançaram 0,24%, com destaque para a cebola (+30,08%), a batata-inglesa (+16,39%) e o feijão carioca (8,66%). As carnes subiram 0,05% em maio, depois de quatro meses consecutivos de queda. Já os itens com maior queda foram transportes (-1,90%), vestuário (-0,58%) e habitação, com queda de 0,25%.
Juliana Inhasz chama atenção para outra distorção do cenário atual. Com a pandemia, o consumo das famílias mudou, mas o IPCA segue acompanhando os preços da cesta de produtos mais consumidos antes da quarentena. Assim, os produtos que caíram não necessariamente são os mais essenciais hoje, por isso, na prática, muitas famílias podem ter percebido aumento de gastos e sentir que a deflação não chegou no bolso.
Riscos maiores
Mesmo com a deflação nos últimos dois meses, o economista, ex-diretor do Banco Central e colunista do InfoMoney, Alexandre Schwartzman ressalta que o Brasil ainda está distante de um quadro deflacionário. “É provável que o Brasil feche o ano com uma inflação muito baixinha, mas ainda assim não teremos queda persistente de preços, é algo mais focado no curto prazo. O preço da gasolina, dos serviços não vai permanecer em queda por muito tempo.”
Continua depois da publicidade
De todo modo, Scwartzman explica que a deflação é observada com cuidado pelos economistas porque, se os preços caem por meses ou anos seguidos, há um incentivo para que a população adie o consumo. Sabendo que o preço vai ficar mais baixo no mês que vem, o cidadão posterga a compra para o mês seguinte. “É o que aconteceu com o Japão, muito da estagnação da economia japonesa vem da perspectiva de deflação. A economia perde os instrumentos para lidar com isso e cresce pouco”, diz o economista.
Ele alerta para um segundo fenômeno causado por uma onda deflacionária. Diante de uma queda forte de preços, quem já estava endividado se vê numa situação pior. “A consequência é um aumento do valor real das dívidas. Quem já devia tem mais dificuldade para pagar e quem recebe tem uma situação melhor. De forma geral, há uma transferência de renda de devedores para credores”, afirma o ex-diretor do Banco Central.
Metas de inflação
Todos esses fatores explicam por que o governo monitora a inflação de perto. A hiperinflação já evidenciou o acontece quando os preços sobem de forma descontrolada: as famílias temem não ter dinheiro para comprar o básico, estocam produtos, a demanda aumenta ainda mais e sem uma oferta condizente os preços sobem. E se os preços caíssem de forma descontrolada, em um quadro de deflação persistente, o governo arrecadaria menos, as empresas também, o desemprego subiria e a economia não cresceria.
E essas são as razões que explicam por que o governo todo ano estipula metas para que os preços não fujam do controle. A meta para este ano é de 4%, com margem de um e meio ponto percentual para cima ou para baixo (2,5% a 5,5%). Como o IPCA acumulado em 12 meses até maio está em 1,88%, a inflação está abaixo da meta.
Por isso, há uma expectativa de que o governo volte a reduzir os juros, para estimular o consumo e trazer novamente a inflação para a meta.
Confiança em baixa
Economistas têm repetido que o cenário atual é atípico e por isso os remédios tipicamente usados para combater crises anteriores não estão mais funcionando.
“Para sair da crise é preciso ir além de instrumentos convencionais de política monetária, que incluem redução de juros, concessão de crédito e auxílio emergencial. Tudo isso é importante, mas o pilar do crescimento econômico é o consumo das famílias, que representa dois terços do PIB, então não basta ter linhas de crédito é preciso transmitir para a sociedade que o plano vai dar certo, mas os ruídos políticos estão impedindo que a sociedade tenha confiança”, diz o economista-chefe da Austin Rating.
Schwartzman acrescenta que um dos maiores riscos que a economia corre hoje é a transformação de soluções temporárias em gastos permanentes.
“Não temos hoje um seguro contra epidemia, por isso é preciso oferecer uma rede de proteção social para famílias e empresas. Obviamente, vamos ter uma dívida alta para compensar lá na frente, mas é um problema que não é para hoje. Hoje precisamos ter uma proteção temporária. E a ideia de formar uma renda básica universal permanente francamente é uma péssima ideia e vem em um péssimo momento. O problema do Brasil é que temos péssimas ideias em péssimos momentos”, conclui.