O motorista que pega a estrada, especialmente em meses de alta temporada, lida com o trânsito e as filas no pedágio para ir à praia ou em alguma cidade do interior a passeio.
Mas um novo formato de cobrança de pedágios pode melhorar esse processo: chamado de freeflow, ou pedágio por quilômetro rodado. Nele, a cobrança é proporcional à distância percorrida; sem as paradas para pagamentos, o trânsito pode ser mais fluido.
A novidade foi anunciada, em junho de 2021, quando a lei 14.157 foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). Ela voltou à crista da onda, neste ano, por causa de sua operacionalização.
A lei regulamentou a possibilidade de um sistema de livre passagem, sem praças de pedágio em rodovias, e alterou também o Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
O InfoMoney buscou informações com experts e associações do setor, além do governo sobre as mudanças do sistema e as suas vantagens e desvantagens. Confira:
O que é o free flow?
O sistema free flow de pagamento por livre passagem tem um funcionamento similar ao que já existe hoje com o pagamento automático nas praças de pedágios, por adesivos eletrônicos, ou “tags”. Empresas como Sem Parar, ConectCar, Veloe, entre outras, já oferecem serviços similares.
A ideia é que o motorista utilize as rodovias sem precisar passar pelas barreiras físicas de pedágio, o que pode agilizar o trânsito. O ponto principal do projeto é o pagamento proporcional. Com o sistema free flow instalado, o motorista pagaria somente pelo trecho que percorreu na rodovia.
“Hoje existem praças de pedágios localizadas estrategicamente nas vias para que os motoristas passem e efetuem o pagamento das tarifas. Mas tanto o usuário que percorre 10 km, como o que percorre 90 km, vão pagar exatamente a mesma tarifa”, avalia Marco Aurélio Barcelos, diretor-presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias.
Quem defende o novo modelo entende que as praças físicas de pedágio promovem uma injustiça tarifária.
O formato de free flow prevê a retirada das praças de pedágios com cobradores e barreiras físicas para a instalação de pórticos (arcos perpendiculares ao chão), que vão identificar os carros que passarem por eles e efetuar uma cobrança de tarifa proporcional ao período percorrido até ali.
“Com a tecnologia que já existe, teremos uma detecção eficiente e com uma maior distribuição desses pórticos vamos garantir a proporcionalidade de custo ao motorista. Se hoje tenho sete praças de pedágios em uma rodovia X, teria 30 pórticos para fazer essa cobrança mais justa”, explica Barcelos.
Como vai funcionar (e os desafios)
Ainda não tem uma definição de como o sistema vai funcionar no Brasil. Há um grupo de trabalho formado por representantes das concessionárias privadas, das empresas de pagamentos automáticos, do governo e de agentes envolvidos na construção do sistema para discutir como a implementação e a execução do projeto vai funcionar.
Mas quais as opções mais prováveis? Segundo a nota enviada ao InfoMoney pelo Ministério da Infraestrutura serão instalados pórticos, com sensores e câmeras, pelas concessionárias responsáveis pelas várias rodovias do país.
Ao passar pelos arcos, os carros podem ser identificados de duas maneiras já conhecidas e utilizadas no exterior: “leitura de uma tag previamente instalada ou leitura da placa do veículo, gerando uma cobrança por aquele percurso percorrido”, diz, por nota, o ministério.
Do lado das tags, alguns desafios são a obrigatoriedade de todos os motoristas necessariamente precisarem das tags para serem cobrados pelos pórticos; a necessidade de uma tag para cada rodovia; o alcance da tag na identificação; o formato do pagamento, então, seria necessário que o motorista tivesse em cada tag débito automático ou outro formato de pagamento.
Além disso, e se o motorista simplesmente não pagar? Hoje, o que garante o pagamento é a barreira física, ou seja, a pessoa não segue viagem a não ser que faça o pagamento. Como evitar um índice de inadimplência no caso das passagens livres? O condutor sabe que é só passar e que sua viagem não será interrompida. “Esse é nosso maior desafio hoje. Está em discussão como fazer essa identificação com a cobrança de forma eficiente”, explica Barcelos.
Barcelos explica que entre as soluções sob estudo estão o aproveitamento das empresas de pagamentos automáticos que já existem no Brasil, como a Sem Parar, Conect Car, Veloe, entre outras.
“Temos um mercado significativo, e o setor de concessão de rodovias não tem participação alguma nele. Hoje, os próprios editais de licitação impõem às concessionárias que ofereçam esse pagamento automático em suas rodovias. Não ganhamos a mais pelo usuário que trafega pelo sistema automático”, explica.
Diante disso, em vez de cada concessionária criar sua tag e o usuário, por sua vez, precisar de 20 identificações em seu carro, a ideia é fazer com que o mecanismo já instalado e utilizado por parte da população seja aproveitado pelo free flow.
“E o usuário poderia aderir à tag que preferir e automaticamente ao passar pelo pórtico seria cobrado como já funciona hoje nessas empresas. E o pagamento poderia ser feito em débito automático. Entendemos que esse é um bom modelo”, diz.
Porém, não há consenso sobre como vai funcionar isso ainda, nem como a cobrança desse serviço será na prática.
Em relação à capacidade e alcance de identificação das tags utilizadas em pórticos, Barcelos afirma que o modelo que está sendo considerado na implementação é capaz de detectar um carro mesmo se ele passe a 300 km por hora, por exemplo, considerando uma velocidade super alta. Ou seja, seria difícil um motorista não ser identificado.
A outra opção de identificação é por meio da placa do carro. Chamado de OCR (Optical Car Reader), no exterior, o sistema basicamente lê a placa física do carro.
Os desafios também se impõem neste sistema: os motoristas podem fraudar as placas; o free flow precisaria ter acesso a todo o sistema do Senatram (Secretaria Nacional de Trânsito) para conseguir identificar o carro, o motorista e enviar um boleto no fim do mês com as cobranças — seria um novo formato de cobrança em termos de processos. E o pagamento seria sempre no fim do mês.
“Diante dos desafios para ambas as opções, o que observamos no exterior é a redundância dos sistemas. Ou seja, convergir os dois sistemas. Podemos ter as duas opções de identificação. Se o usuário não pagar via tag, será cobrado por boleto depois. Precisamos achar uma solução para garantir que haja o pagamento. Com inadimplência, o projeto não para de pé e todo mundo sai perdendo: o investimento feito pela concessionária, a qualidade nas vias para o usuário, fora o tempo dedicado ao projeto”, avalia Barcelos.
Quando sai do papel?
Embora a lei 14.157 tenha sido sancionada, não há uma data que defina o início da implementação do sistema free flow no país. “O pagamento por livre passagem em rodovias federais ainda depende de regulamentação, o que está previsto na agenda regulatória da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) para 2022”, explicou o Ministério da Infraestrutura, em nota.
O grupo de trabalho tem discussões frequentes sobre como implementar o projeto e quais serão as regras.
“Estamos há cerca de oito meses em debates sobre diversas questões referentes à implementação. A expectativa é que uma primeira versão da regulamentação fique pronta no primeiro trimestre de 2022, mas não significa que logo em seguida os motoristas já terão acesso ao novo sistema”, diz Marco Aurélio Barcelos, diretor-presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias. “Teremos consultas públicas, aprimoramentos. É um processo para conseguirmos deixar o projeto eficiente e viável para as concessionárias e para os motoristas”.
Apesar dos trâmites em andamento, o Ministério da Infraestrutura explicou que o primeiro teste em uma rodovia federal está previsto para acontecer na Dutra, na região de Guarulhos, em São Paulo, “após as obras de adequações que serão feitas naquela região, diante do novo contrato de concessão do leilão realizado no final de outubro de 2021”.
Formato já opera em SP
Após a aprovação da lei 14.157, a Artesp (Agência de Transporte do Estado de São Paulo) iniciou o modelo de pagamento por km rodado.
Segundo a agência, o sistema funciona nas rodovias Engenheiro Constâncio Cintra (SP-360), no município de Itatiba; na Rodovia Santos Dumont (SP-75), no município de Indaiatuba; na Rodovia Governador Adhemar Pereira de Barros (SP-340); e na Rodovia Prof. Zeferino Vaz (SP 332), nos municípios de Paulínia, Cosmópolis, Artur Nogueira, Engenheiro Coelho e Conchal.
De acordo com a Artesp, nessas vias, a cobrança do sistema é feita eletronicamente, através de pórticos instalados ao longo da rodovia e as tags. Para adesão, há a necessidade de cadastro prévio junto à concessionária. O sistema se aplica aos veículos que utilizem o sistema de cobrança automática (AVI) e que estejam portando dispositivo eletrônico ativo, distribuído aos interessados.
“A regra de elegibilidade dos usuários varia de acordo com a rodovia concedida e as definições da concessionária que administra cada uma delas. Vale ressaltar que o sistema não concede descontos aos usuários, apenas garante o pagamento da tarifa de pedágio proporcional ao trecho efetivamente percorrido”, explicou a agência em nota.
O sistema já é uma realidade em mais de 20 países. Na América Latina, o Chile é o único país que utiliza o pedágio de passagem livre de forma oficial há pouco mais de cinco anos.
É mais barato para o motorista?
Considerando que o motorista passaria por mais pórticos do que hoje passa por pedágios tradicionais, a resposta imediata é pensar que haverá mais custo. E nada sobre os valores foram definidos ainda.
Segundo a ABCR, a ideia é não aumentar os preços, mas sim distribui-los pelos pórticos. Então, imagine a seguinte situação: um pedágio hoje custa R$ 9 e ambos os motoristas que percorrem 10km e 90km pagam.
Com o free flow, a promessa inicial é que esse pedágio virasse, por exemplo, três pórticos cada um custando R$ 3, e que o motorista que percorre 10km pagasse apenas um e o que percorresse os 90km pagasse os 3.
Mas sem a regulamentação essa é apenas uma suposição do que pode acontecer. O projeto ainda está sob desenvolvimento.
O Ministério da Infraestrutura explica que os pedágios e a cobrança de tarifas ocorrem somente em rodovias concedidas à iniciativa privada, responsável pela construção das praças ou implementação do sistema.
Dessa maneira, o investimento principal da execução dos novos modelos de pedágio ficará sob a responsabilidade das concessionárias das rodovias. “A implementação tem custo, naturalmente. Considerando um exemplo de uma nova concessão no futuro, a ideia é que essa despesa de implementação esteja inclusa no projeto. Mas as empresas têm um negócio a zelar, o custo de instalação tem que caber no modelo de concessão, tem que caber no orçamento. Os custos vão refletir nas tarifas, mas se a inadimplência for alta, o modelo não para em pé”, explica Barcelos.
Segundo ele, haverá uma análise mais aprofundada para entender como a mudança afeta o fluxo de caixa das concessionárias.
Vale lembrar que hoje 100% do arrecadado com as tarifas de pedágio se torna receita para a concessionária, em casos de rodovias privadas. Mas a empresa também tem outros encargos, custos de investimentos, impostos trabalhistas, manutenção, entre outros pontos. Será preciso esperar mais detalhes da regulamentação para entender os efeitos reais no bolso dos motoristas.
Hoje, no Brasil, há cerca de 75 concessionárias, considerando escalas municipais, estaduais e federais; 48 delas são associadas à ABCR. “Em termos de quilômetros cobertos, as principais empresas são associadas ao nosso time”, diz Barcelos.
Empresas têm interesse
O InfoMoney entrou em contato com algumas empresas de pagamentos automáticos para entender a visão delas sobre a possível nova demanda de tags e a integração com o free flow e concessionárias.
É consenso entre as empresas consultadas que o free flow pode ser positivo para os negócios, o que indica que o modelo que utiliza as tags deve ser uma solução para o projeto.
Carla Barreiros, diretora de operações de credenciados da Sem Parar, entende que a empresa já tem uma tecnologia que pode ser incrementada para a utilização do sistema e considera o modelo mais democrático.
“Achamos bem positivo. O sistema irá democratizar o acesso às rodovias e promover a justiça tarifária, já que o motorista pagará pelo km rodado. Além da tag física, temos a opção da tag virtual, uma tecnologia via Bluetooth que proporciona o pagamento dos pedágios diretamente pelo celular, com alta escalabilidade por estar conectada no dispositivo móvel dos motoristas e motociclistas”, explica a executiva, mesmo sendo apenas opções disponíveis, já que nada foi definido.
Felix Cardamone, CEO da ConectCar, avalia a mudança como uma oportunidade de amadurecimento para o setor, que será mais demandado neste formato. “Em termos práticos, isso significa que o motorista terá uma tecnologia embarcada para poder processar a passagem e a cobrança pela via. A expectativa é de que o free flow possa gerar uma modernização dos contratos de concessão, incorporando inovações”, diz.
Segundo ele, países como Alemanha, Itália, Japão, França, Chile e Argentina utilizam a tag como a principal forma de pagamento em operações free flow.
Alexandre Fontes, superintendente de Operações e Customer Experience da Veloe, defende que a mudança pode ser positiva, dentre outros pontos, porque é uma tecnologia que já está mais ‘aculturada’ no dia a dia dos brasileiros.
“Com isso, há um potencial de crescimento exponencial no uso de tags por meio de motoristas que ainda não usufruem desse tipo de meio de pagamento e a continuidade de quem já usufrui. Hoje, já temos mais de 1,6 milhão de tags ativas na nossa base de cliente e acreditamos que esse número vai aumentar ainda mais para 2022″.
Ele destaca também a contribuição que esse modelo traz para o meio ambiente, já que não há necessidade de parada em filas de pedágio evitando a emissão desnecessária de gases de combustíveis fosseis.
De fato, muitas oportunidades podem se abrir. Há previsões de ao menos 27 novas concessões brasileiras até o final de 2023, o que deve dobrar a extensão das rodovias concedidas atualmente.
Segundo a ABCR, circulam no Brasil por volta de 46 milhões de veículos e aproximadamente só 17% possuem uma tag instalada. “É um potencial enorme de novos usuários a serem beneficiados pelo modelo free flow“, diz Cardamone.
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