Carros elétricos, megafusões e expansão das marcas chinesas: o que a saída da Ford diz sobre o futuro dos automóveis

A Ford sai do Brasil em busca carros com maior valor agregado - autônomos, conectados e elétricos. O futuro pode estar em países como China e Estados Unidos

Giovanna Sutto Mariana Fonseca

Carro da Tesla (Image by Blomst from Pixabay)
Carro da Tesla (Image by Blomst from Pixabay)

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SÃO PAULO – A decisão tomada pela Ford nesta segunda-feira (11) – encerrar a produção nacional de veículos, com o fechamento de suas três fábricas no país – foi motivada por uma conjunção de fatores (veja todos nesta matéria). Mas a principal linha de argumentação é a de que a Ford busca automóveis com maior valor agregado, que possam combater a perda de participação e anos de prejuízo no mercado brasileiro. A resposta, segundo a própria montadora e especialistas ouvidos pelo InfoMoney, está na inovação.

Entre 2013 e 2020, a operação da América do Sul da Ford acumulou prejuízos de US$ 5,7 bilhões. A Ford teve uma participação de mercado de 7,14% em 2020, menor que a das marcas General Motors, Fiat, Volkswagen e Hyundai.

“Essa perda de espaço aconteceu principalmente devido à falta de inovação. A Ford não ampliou, não inovou, não atualizou seu portfólio na mesma velocidade que as concorrentes. Apesar da surpresa da notícia em um primeiro momento, era questão de tempo até a montadora ter que paralisar a produção. Afinal, ela perdeu o nível de competitividade”, explicou anteriormente ao InfoMoney Raphael Galante, economista que atua no setor automotivo há 14 anos e consultor na Oikonomia.

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A própria fabricante de automóveis sinalizou olhar para o futuro, em comunicado sobre o fechamento das fábricas brasileiras. Elas produziam modelos tradicionais, como Ford EcoSport e Ford Ka, que sairão de linha. “Estamos mudando para um modelo de negócios ágil e enxuto ao encerrar a produção no Brasil, atendendo nossos consumidores com alguns dos produtos mais empolgantes do nosso portfólio global. Vamos também acelerar a disponibilidade dos benefícios trazidos pela conectividade, eletrificação e tecnologias autônomas suprindo, de forma eficaz, a necessidade de veículos ambientalmente mais eficientes e seguros no futuro”, diz a nota.

Em mercados mais representativos para a montadora e com mais incentivos para a produção de carros inovadores, o futuro já chegou. Nos Estados Unidos, a Ford anunciou que deixaria de vender carros de passeio em 2018. O foco ficou em picapes e SUVs elétricos. No mesmo ano, a Ford prometeu um investimento de US$ 11 bilhões na frente eletrificada e a introdução de 40 veículos elétricos até o final de 2022.

Já China e Europa são mercados exemplares em incentivos aos elétricos. Segundo o CB Insights, empresa de análise de dados em inovação, a China projeta que as vendas de veículos elétricos representarão 25% do total nos próximos anos até 2025. Já a Alemanha proibirá a venda de veículos a combustão, mas a partir de 2030. O Reino Unido também banirá a venda de carros movidos por diesel e gasolina, mas de 2035 em diante. Nesses países, ver carros elétricos circulando pelas vias é algo comum.

Nesse cenário, o Brasil fica como seguidor de tendências, analisa Milad Kalume Neto, diretor de novos negócios da consultoria automotiva Jato Dynamics. “Ninguém produzirá um carro elétrico com tecnologia local, porque não existe investimento para isso. Não introduziremos novos veículos elétricos no mundo, usaremos os que tiverem à disposição para o nosso mercado. Ainda assim, a legislação precisa ser alterada para que possamos ao menos garantir competitividade para o segmento de elétricos.”

Guilherme Massa, cofundador da Liga Ventures, plataforma de inovação aberta que conecta empresas a startups, cita exemplos de avanços legislativos que devem ser feitos. Por exemplo, a definição de quem instalará pontos de recarga e de como será o repasse de custos de energia caso a fonte esteja em um local público ou em empresa privada, não na casa do motorista.

Futuro autônomo, conectado e elétrico

A revolução mais próxima é a dos carros elétricos. Segundo a revista britânica The Economist, a participação desses veículos continuará crescendo. O movimento acompanha regulações mais restritivas na emissão de gases poluentes, baterias com preço mais acessíveis e mais modelos elétricos para o consumidor escolher.

Em 2021, três a cada 100 carros vendidos serão completamente elétricos ou híbridos. Essa participação de mercado deve chegar até 20% a 25% em 2030, segundo a publicação. “É o principal foco de todas as montadoras do mundo hoje: criar uma área de pesquisa e desenvolvimento focada em eletrificação”, diz Massa.

O futuro dos automóveis já pode ser visto em regiões como Estados Unidos, Europa e China. As companhias mais representativas desse movimento já estão nas bolsas de valores nova-iorquinas. A Tesla (TSLA34) viu suas ações na Nasdaq subirem 743% ao longo de 2020. A valorização da fabricante de carros autônomos, conectados e elétricos continuou neste ano, inclusive tornando o fundador Elon Musk no homem mais rico do mundo. Sua fortuna está hoje em US$ 202 bilhões, segundo o Bloomberg Billionaires Index. Vale lembrar que foi a empresa que inaugurou o mercado de carros elétricos, lançando o Tesla Roadster em 2008.

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Atualmente, o valor de mercado da Tesla está em cerca de US$ 805 bilhões, ante cerca de US$ 39 bilhões da Ford. A Tesla produziu quase 500 mil automóveis em 2020, uma fração dos carros montados pela Ford, que ainda não divulgou os resultados fechados de 2020, mas em 2019 produziu quase 5,4 milhões de unidades.

A discrepância entre avaliação de mercado, mesmo com produção bem menor, seria justificada pelo potencial de carros mais sustentáveis e inteligentes – mas não só, já que os papéis também subiram embalados pela alta generalizada do setor de tecnologia durante a pandemia.

A Tesla é considerada líder na produção de baterias mais densas em energia e no desenvolvimento de software. Segundo o jornal americano New York Times, o modelo mais econômico da Tesla percorre cerca de 400 quilômetros sem recarga. Os comandos do carro são atualizados por rede sem fio, sem a necessidade de revisitar concessionárias.

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Isso não significa que não existam concorrentes tecnológicos. A fabricante automotiva de Elon Musk tem uma fábrica na China. Mas o país também abriga a Nio, conhecida como “Tesla da China”. A empresa fabrica carros autônomos, conectados e elétricos e tem sedes na China e na Europa. Em 2020, a Nio entregou 36,7 mil veículos. A empresa tem suas ações negociadas na NYSE, com avaliação de mercado em cerca de US$ 98 milhões.

Os automóveis também já têm investimentos em conectividade, como assistentes de voz integradas e as atualizações vistas no software da Tesla. “A evolução nesse segmento vai passar muito pela rede 5G e pelos diversos tipos de integrações que essas plataformas podem oferecer. Existem hoje softwares de análise dos veículos ou integrações com Netflix e Spotify, por exemplo, mas há oportunidade de as montadoras se posicionarem como plataformas abertas de desenvolvimento. Nesse campo, está todo mundo mais ou menos no mesmo estágio”, diz Massa.

Outra frente que gigantes de tecnologia e fabricantes automotivas já desenvolvem, mas está bem distante da massificação, é a de carros autônomos. A Ford está de olho nas frentes de conectividade e carros autônomos desde 2015, segundo o CB Insights. A montadora anunciou um plano de “mobilidade inteligente” naquele ano, o que depois geraria a subsidiária Ford Smart Mobility. A Ford tem 100 veículos autônomos em fase de testes.

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Não é uma tarefa simples. Ainda segundo o CB Insights, a Tesla já enfrentou acidentes ocasionados enquanto seus automóveis estavam no piloto automático. A Waymo, frente de carros autônomos do Google, enfrentou atrasos em lançamento e comercialização. A vertical de carros autônomos da Uber realizou demissões.

“A tecnologia para veículos completamente autônomos ainda não está sofisticada o suficiente para levar passageiros humanos. As preocupações crescem, enquanto a tecnologia requer grandes investimentos iniciais e não apresenta perspectiva atual de lucro. A pandemia colocou pressões financeiras nas fabricantes de automóveis, de peças e de produtos audiovisuais. Muitas companhias adiaram seus cronogramas de lançamento”, afirma a empresa de análise de dados em inovação. Kalume Neto, da Jato Dynamics, também cita a falta de permissão para testes e operação desses veículos em grande parte do mundo.

Em abril de 2019, a expectativa divulgada pela Ford era de que os veículos começassem a circular em áreas mapeadas em 2021. Na época, o CEO Jim Hackett ressaltou que as aplicações dos carros autônomos seriam limitadas e que a indústria automotiva “superestimou a chegada dos veículos autônomos”. A pandemia fez a montadora adiar o lançamento para 2022.

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A resposta das montadoras tradicionais (incluindo a Ford)

Segundo o The New York Times, a inauguração de uma fábrica da Tesla em Berlim, na Alemanha, e vendas surpreendentes para o Tesla Model 3 no continente europeu acenderam um alerta para as montadoras, especialmente as alemãs, que são referência na indústria automotiva. Em dezembro de 2019, vendas do Model 3 ficaram atrás apenas das vistas nos tradicionais Volkswagen Golf e Renault Clio na Europa. A fábrica de Berlim também vai produzir o Model Y, SUV da Tesla.

O interesse europeu em carros elétricos não é de hoje: a BMW já havia apresentado seu modelo elétrico i3 em 2013. Porém, ainda de acordo com o New York Times, o i3 não percorre grandes distâncias e seu software de piloto automático não é tão desenvolvido quanto o da Tesla. A novidade não pegou. Em 2020, incentivos governamentais fizeram as vendas de carros elétricos mais do que duplicarem na Europa. Enquanto isso, carros movidos a diesel e gasolina viram queda em comercialização.

As alemãs BMW, Audi, Mercedes-Benz e Porsche – marcas que competem com a Tesla em termos de poder aquisitivo dos seus consumidores – estão criando ou já apresentaram seus próprios modelos elétricos.

Por exemplo, o Audi E-tron e o Porsche Taycan já estão no mercado. A também alemã Volkswagen está de olho em elétricos especificamente para a classe média – lançou no ano passado o automóvel ID3, que custa menos do que o Model 3. A VW também prepara o sucessor no formato SUV, chamado de ID4, para 2021. Assim como a Audi, que deve lançar seu SUV elétrico, chamado Q4, para 2022.

Montadoras americanas também estão lançando modelos elétricos. É o caso do Chevrolet Bolt, da versão elétrica da picape General Motors Hummer e do Ford Mustang Mach E. A Ford define seu modelo como “um SUV elétrico estilizado para lembrar um icônico carro esportivo”. Em 2022, a Ford deve lançar uma versão elétrica da picape F-150.

“Audi, Honda, Porsche, Renault/Nissan, Toyota, Volvo… Basicamente, todas as marcas estão participando da corrida aos elétricos, autônomos e conectados. Cada uma à sua maneira, com foco e graus de maturidade distintos”, resume Kalume Neto. “Talvez a gente não veja muito carros híbridos ou elétricos porque esse é um mercado ainda muito incipiente no Brasil. Nos Estados Unidos e na Europa, você já tem um mercado relativamente desenvolvido”, concorda Massa, da Liga Ventures.

O desafio para as montadoras tradicionais será combater o pioneirismo da Tesla nos carros elétricos – seja em reconhecimento de marca, tecnologia ou vendas.

“É uma questão de modelo mental. Nio e Tesla, por exemplo, são empresas que surgiram na nova economia. A gestão é toda pensada para essa nova realidade. As fabricantes tradicionais, naturalmente, estão lutando. Têm o desafio de gerir dois negócios: a frente de inovação e o legado de fábricas, produção, venda, manutenção e garantia”, diz Massa, da Liga Ventures.

Saídas: parcerias e novos modelos de negócio

A saída para as fabricantes tradicionais do mundo todo enfrentarem a concorrência de players que nasceram com tecnologia pode por meio de processos de fusões e aquisições (M&A), além de alianças entre empresas do setor. Assim, as companhias podem unir seus esforços de pesquisa, de desenvolvimento, de orçamento e de marca para se manterem competitivas.

Antônio Jorge Martins, diretor administrativo e financeiro e coordenador de cursos automotivos da FGV, ressalta que a reestruturação da Ford por uma operação mais enxuta e automóveis com maior valor agregado não é muito diferente dos processos de M&A que outras montadoras anunciaram recentemente.

“A fusão da FCA (Fiat-Chrysler Automobiles) e da PSA (Peugeot Société Anonyme, que detém as marcas Citroën, Opel e Vauxhall) é um exemplo, bem como a aliança Renault-Nissan-Mitsubishi. Além disso, em setembro de 2020, a Honda e a Chevrolet anunciaram uma parceria para o desenvolvimento de novas tecnologias e motores elétricos”, exemplifica Martins. “Associações de negócios ou reestruturações interna são tendências mundiais, tanto pela ótica tecnológica quanto pela financeira. No fundo, esses são os vetores que consolidam o setor automotivo em qualquer parte do mundo.”

Ricardo Bacellar, líder de mercados industrial e automotivo da KPMG Brasil, concorda que o racional é o mesmo para parcerias e reestruturações internas. “As fabricantes precisam tomar decisões estratégicas difíceis, porque estão inseridas em um negócio global. Enquanto FCA e PSA se unem para ter aumento de eficiência, seja por sinergias que reduzam custos no compartilhamento de orçamentos ou por se posicionar melhor em diversos mercados, a Ford optou por realocar investimentos para, no fim do dia, buscar as mesmas coisas”, avalia.

De qualquer maneira, toda a transformação que o setor automotivo global vem sofrendo ao longo dos últimos anos consolidou processos de fusões e reestruturações. “Nunca tem um motivo só. Mas na ponta está o novo desejo do consumidor por mais conectividade”, diz Bacellar.

“As empresas precisam agir rápido. Por isso, tantos produtos novos no setor. Basta olhar o que era um carro zero-quilômetro três anos atrás e comparar com um modelo atual. Mais caro, mas muito mais tecnológico. Quem não oferece o que o cliente deseja na maior velocidade possível vai ficar para trás – e foi o que aconteceu com a Ford.”

A consolidação de novos negócios e mais tecnologia se expande em todas as direções do mercado automotivo. Bacellar pontua, por exemplo, que o aluguel de carros por assinatura é uma tendência que veio para ficar. “No passado, ninguém imaginava esse tipo de serviço. Mas virou uma alternativa para os consumidores. A KPMG fez uma pesquisa que apontou que 80% dos brasileiros tinham interesse por esse serviço em 2019, mas ninguém oferecia ainda. Agora, estamos passando por um momento de transformação”, diz.

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Giovanna Sutto

Repórter de Finanças do InfoMoney. Escreve matérias finanças pessoais, meios de pagamentos, carreira e economia. Formada pela Cásper Líbero com pós-graduação pelo Ibmec.