Estas startups estão faturando com a corrida por desenvolvedores no Brasil

Média salarial do profissional de tecnologia da informação é quase 2,5 vezes maior do que a nacional; vagas de tech mais que dobraram na pandemia

Mariana Fonseca

(Helena Lopes/Pexels)
(Helena Lopes/Pexels)

Publicidade

SÃO PAULO – O tempo em que os profissionais de tecnologia ficavam escondidos em uma sala com servidores ficou no passado — e a pandemia de coronavírus apagou definitivamente a imagem do cenário corporativo. As empresas precisaram encarar a tecnologia não mais como um mal necessário, mas como uma área essencial aos negócios em um mundo cada vez mais digitalizado.

Assim, profissionais como desenvolvedores se tornaram os queridinhos do mercado. Vagas sobrando pela falta de especialistas e salários em alta contrastam com o quadro geral do emprego no Brasil.

O Do Zero Ao Topo, marca de empreendedorismo do InfoMoney, traçou um panorama sobre o mercado para profissionais de tecnologia da informação e comunicação no país. Também fez um levantamento sobre salários e quantidade de vagas de tecnologia.

Continua depois da publicidade

E, como oportunidades surgem a partir de problemas, também entrevistou startups que faturam com a corrida especificamente pelos devs — um apelido carinhoso dado aos desenvolvedores.

Empreendimentos como Trybe, Rocketseat, BossaBox e RunOps atuam com educação, com contratação e com otimização da rotina desses profissionais. Tanto esses empreendedores quanto especialistas em tecnologia e em recursos humanos também ponderaram por quanto tempo durará a valorização dos desenvolvedores.

Muitas vagas, poucos profissionais

Sobram vagas em tecnologia, mesmo em um país com 14,8 milhões de desempregados, recorde da série histórica iniciada há nove anos. A Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom) estima que será preciso contratar 70 mil profissionais por ano até 2024 no setor de tecnologia da informação e comunicação (TIC). Em 2017, porém, apenas 46 mil profissionais foram formados em cursos superiores na área (bacharelado e tecnólogo).

Continua depois da publicidade

A demanda reprimida é 25% em Internet das Coisas, 11% em Segurança, 10% em Big Data, 6% em Nuvem e 2% em Inteligência Artificial. Completam a lista profissionais administrativos (19%), de nível técnico (14%) e em outras tecnologias (13%).

Luana Castro, gerente sênior da divisão de tecnologia da informação do PageGroup, diz que houve um aumento nas vagas da área nos últimos cinco anos. “As empresas começaram a se digitalizarem globalmente, por meio um maior desenvolvimento e acesso a tecnologias como a computação em nuvem. As empresas passaram a entender a importância da tecnologia para mais eficiência e faturamento, criando bancos de dados e acessando o comércio eletrônico, por exemplo”, diz Luana.

Não apenas empresas tradicionais se digitalizaram, mas também mais startups foram criadas nos últimos cinco anos. São negócios que nascem digitais – e demandam muitos profissionais de tecnologia.

Continua depois da publicidade

“Por volta de 2012, quando eu estava no mercado tradicional de tecnologia em grandes empresas, a equipe ainda era vista como ferramenta. A atividade principal estava em processos e negócios. Comecei a empreender na área ao ver um movimento de startups ganhando relevância. Elas começaram a captar aportes significativos por volta de 2016. Depois, começaram a ser criadas fora de metrópoles. Por fim, capital estrangeiro chegou ao ecossistema brasileiro”, explica Rodrigo Terron, empreendedor de tecnologia e COO da startup Rocketseat.

O aumento nas vagas cresceu constantemente desde então, e houve mais um salto na demanda com a pandemia de Covid-19. Um levantamento da startup de recursos humanos Gupy, feito com exclusividade para o Do Zero Ao Topo, mostrou crescimento de 142% no volume de vagas publicadas para a área de tecnologia desde o começo da pandemia. O período analisado foi de fevereiro de 2020 até maio de 2021.

Mariana Rolim, diretora executiva da Brasscom, também percebeu um salto no número de vagas em tecnologia da informação e comunicação nos últimos tempos, especialmente neste ano. “Foram 59.153 postos de trabalho criados na área em 2020. Apenas entre janeiro e abril deste ano, foram 69.048 postos”.

Continua depois da publicidade

Muitas vagas e poucos profissionais levam à alta remuneração. A Brasscom estima que a média nacional de salários é de R$ 1.945, ante uma remuneração média de R$ 4.792 no setor de TIC. É uma diferença de quase 2,5 vezes. Especificamente entre os profissionais de software para transformação digital, a remuneração média sobre para R$ 5.628 (2,9 vezes).

A Gupy destrinchou os ganhos médios por senioridade: o salário médio de programadores ficou em R$ 2.264,89 para júnior, R$ 5.908,70 para pleno e R$ 8.709,41 para sênior entre janeiro e maio de 2021. Os três níveis tiveram aumento sobre a média salarial vista ao longo de 2020 (R$ 2.103,42 para júnior, R$ 5.401,20 para pleno e R$ 8.225,10 para sênior).

Os salários são ainda mais inflados por conta das jornadas remotas. Segundo Luana, o home office consolidado pela pandemia permite que uma startup de São Paulo supra sua demanda contratando desenvolvedores no Sul ou no Nordeste. Por outro lado, empresas de cidades menores têm de adequar seu salário a um nível nacional, e não mais regional.

Continua depois da publicidade

No extremo, essa competição por talentos se tornou global. Já existem diversos casos de empresas brasileiras que perdem bons profissionais porque não conseguem pagar salários que equivalem ao que o profissional receberá em dólares ou euros.

“O distanciamento social começou a evidenciar o trabalho remoto, e as empresas internacionais perceberam que existem outros lugares no mundo com pessoas qualificadas. O Brasil também é mais atrativo do que a Índia em termos de fuso horário. Com ofertas atraentes pelo câmbio, aumenta o desafio das empresas brasileiras em reter talentos”, diz Matheus Goyas, cofundador da startup Trybe. “As empresas internacionais nem têm mais o trabalho de vistos com a contratação remota. Elas podem construir bases locais de contratação”, completa Rodrigo Terron, empreendedor em tecnologia e COO da Rocketseat.

Como resposta à fuga de talentos, algumas empresas estruturaram programas próprios de capacitação de profissionais de tecnologia. As empresas Banco Inter, Localiza, MRV e Take Blip se juntaram para oferecer 130 mil bolsas de estudo para desenvolvedores. As aulas gratuitas são para profissionais em estágio inicial de carreira ou que desejam trocar de profissão. Alguns dos cursos são desenvolvedor Android, desenvolvedor fullstack e desenvolvedor React.

Startups faturam com corrida pelos devs

As startups estão há tempos de olho na procura por profissionais de tecnologia. Existem negócios que criam novos desenvolvedores ou proveem especialização a eles, com o objetivo de colocar mais profissionais no mercado. Outros negócios conectam tais profissionais às oportunidades de trabalho. Por fim, alguns negócios estão focados no depois da contratação: levam mais eficiência para os profissionais e seus projetos.

A Trybe foca em formar desenvolvedores em começo de carreira. A startup de educação (edtech) foi criada pelos empreendedores Claudio Lensing, João Daniel Duarte, Marcos Moura, Matheus Goyas e Rafael Torres em agosto de 2019. Anteriormente, eles criaram o AppProva – ferramenta para preparação de exames vendida para a Somos Educação em 2017.

“Trabalhamos com educação faz 16 anos. Viajamos a diversos países para entender o problema de empregabilidade e vimos uma divergência entre o que se ensina e o que se demanda no mercado de trabalho. No Brasil, era preciso que alguém ocupasse o espaço de formar pessoas com foco no digital. O mercado estava longe de ser atendido com as instituições existentes”, diz Goyas.

Matheus Goyas, cofundador da Trybe (Divulgação)
Matheus Goyas, cofundador da Trybe (Divulgação)

A Trybe fornece um curso de desenvolvimento de software de 1.500 horas, com módulos de software, front end, back end e fundamentos da ciência da computação. São seis horas de aulas por dia em 12 meses.

O objetivo é transformar pessoas sem experiência em tecnologia em profissionais de entrada. A Trybe afirma ter uma empregabilidade de 96% após 30 dias de formatura. São 100 empresas parceiras, como Accenture, Amvev, Localiza, Méliuz e Sambatech.

Além do índice de contratações, a Trybe coloca como diferencial da Trybe a monetização pelo modelo de sucesso compartilhado (income share agreement). O usuário só começa a pagar o curso após atingir um salário de ao menos de R$ 3 mil na área de TI. As parcelas são de até 17% da renda bruta auferida. O curso R$ 36 mil no modelo de sucesso compartilhado (ante R$ 18 mil à vista). O contrato é corrigido anualmente pelo IPCA e tem prazo máximo de cinco anos. Após esse período a dívida vence, mesmo que ele tenha pago apenas parte do valor.

A startup não é a única brasileira a fornecer cursos a programadores por meio de income share agreement. Outros exemplos são Blue e Tera. O grande benchmark internacional é a Lambda School, uma escola americana de programação que fornece profissionais para empresas como Google, Microsoft, HP e Walmart.

Especificamente no caso da Trybe, os financiamentos vêm dos próprios recursos. A empresa montou no final de março deste ano um fundo de direitos creditórios (FIDCs) de R$ 50 milhões. “Somos o único cotista subordinado. Isso significa que somos responsáveis primários por inadimplência e eventual não sucesso dos estudantes”, ressalta Goyas.

Em 2020, a startup de educação acumulou 700 estudantes. Atualmente já são 2 mil estudantes, 200 deles formados. O objetivo é chegar a 3 mil estudantes até o final de 2021. A Trybe também está de olho no mercado de educação para quem busca uma formação mais avançada e com foco em oportunidades internacionais. Anunciou recentemente a aquisição da Jungle Devs, que tem um programa de quatro anos em programação, completamente em inglês.

Outra startup de educação que foca em programadores mais avançados é a Rocketseat. Criada em 2017, a escola é voltada principalmente a quem tem alguns anos de mercado e se sente subutilizado. Além de fazer cursos, o aluno cria um perfil com seu portfólio e interage com outros profissionais por meio de perguntas e respostas.

“65% dos alunos do Ignite, nosso produto de especialização, já estão no mercado trabalhando como devs. Após três meses de conclusão do curso, que dura oito semanas, mais de 50% reportam um upgrade na própria empresa ou no mercado”, diz o COO Rodrigo Terron.

Rodrigo Terron, da Rocketseat (Leonardo Minatti/Divulgação)
Rodrigo Terron, da Rocketseat (Leonardo Minatti/Divulgação)

A empresa tem 100 mil alunos ativos, considerando cursos gratuitos e pagos. 21 mil deles cursaram ou cursam o Ignite. O objetivo da Rocketseat é especializar 100 mil desenvolver até o final de 2023. Para isso, expandirá suas trilhas de programação, das cinco atuais para 20 delas.

A Trybe e a Rocketseat formam profissionais que buscam cargos de horário integral. Já a startup BossaBox foca em profissionais que preferem atender empresas sob demanda. O objetivo é ser um freelancer com dedicação integral.

A BossaBox começou como uma consultoria de tecnologia e software house em 2017. A experiência dos fundadores em projetos de tecnologia rendeu a ideia de encontrar a melhor maneira de trabalhar neles. Para a BossaBox, isso significa montar “squads como um serviço”. São equipes ágeis e que unem profissionais em desenvolvimento, design, devops, gerência de produto e quality assurance.

“Não é apenas conectar empresas e profissionais em um marketplace. Entendemos que montar as squads é essencial para que tiremos o maior potencial possível de uma tecnologia. Verticalizamos a cadeia de desenvolvimento e colocamos cultura, gestão e processos como conferência de qualidade e cumprimento de prazos”, diz André Abreu, cofundador da BossaBox.

Os fundadores da BossaBox (Divulgação)
Os fundadores da BossaBox (Divulgação)

A startup reúne 15 mil profissionais e desenvolveu 110 projetos para empresas como Hering, Multicoisas e OMO. As companhias pagam a BossaBox, que então repassa a remuneração aos profissionais. Entre 2017 e 2020, a startup saltou de R$ 50 mil para R$ 8,5 milhões de reais em faturamento. As metas ainda não foram fechadas para 2021, mas a BossaBox viu um crescimento de 23% ao mês durante o segundo trimestre deste ano e um aumento no tíquete médio por squad.

“Preço nunca foi uma objeção para as empresas que atendemos. Sempre vimos demanda, e criamos a startup porque a dificuldade em arrumar mão-de-obra era nítida. Mas hoje está uma guerra, com uma nova realidade criada pela pandemia”, diz Abreu.

Assim como a BossaBox, a startup RunOps também tem como objetivo tornar tanto a rotina dos desenvolvedores quanto seus projetos mais eficientes. Mas, desta vez, a startup atende os funcionários contratados pelas próprias empresas. O fundador Andrios Robert é engenheiro de formação e trabalhou como desenvolvedor em empresas como IBM e Telefônica. “Sentia dificuldade de fazer os projetos com autonomia, porque precisava buscar informações com outras áreas”, diz Robert.

A RunOps provê acesso de informações ao desenvolvedor, mas tratando os dados para garantir a segurança contra vazamento e o registro de quais ações são feitas. “Com menos interrupções, programamos mais e entregamos mais software e com mais qualidade. Um problema que demoraria um dia para resolver pode ser solucionado em cinco minutos, enquanto os times que controlam acessos podem se dedicar a outras tarefas.”

Andrios Robert, fundador da RunOps (Divulgação)
Andrios Robert, fundador da RunOps (Divulgação)

Fundada em janeiro deste ano, a startup tem 100 desenvolvedores na versão paga de seu software como um serviço (SaaS), atendendo empresas como Dock e Magnetis. A meta é atingir 1,5 mil desenvolvedores utilizando o RunOps nos próximos 18 meses.

“Os primeiros clientes são brasileiros, mas nosso produto é todo em inglês e o esforço comercial acontece todo nos Estados Unidos. O Brasil vai crescer naturalmente, por estarmos sediados aqui”, diz Robert. Por isso, a startup procurou investidores americanos. A RunOps captou recentemente um aporte semente de US$ 1 milhão com a aceleradora Y Combinator e com fundos como Global Founders Capital e Valor Capital Group. A RunOps vai criar uma aplicação web e aumentar as integrações de 30 para 100 neste ano – por exemplo, acesso a bancos de dados. Assim, conseguirá atender desenvolvedores em mais empresas.

Até onde vai o otimismo?

Como apontam os dados da Brasscom, a demanda por desenvolvedores vai continuar acima da formação em cursos superiores nos próximos anos. Assim surgiram as iniciativas das próprias empresas e dos cursos livres.

Mas as vagas e salários continuarão volumosos com mais profissionais de tecnologia disponíveis? Os especialistas e empreendedores ouvidos pelo InfoMoney afirmam que a saturação do mercado ainda está longe de acontecer.

“A transformação digital ainda não acabou. Pode ser que cheguemos a um momento em que a demanda será atendida, mas não será rápido. Até porque a demanda por desenvolvedores é global”, diz Terron, da Rocketseat.

“Vejo um prazo de pelo menos dez anos para atingirmos uma estabilidade de salário, porque a característica do mercado de tecnologia é ser perecível”, concorda Luana, do PageGroup. “Desenvolvimento, dados e segurança estão em alta hoje, então empresas e pessoas estão focadas nessas áreas. Mas depois podemos ver um foco maior em inteligência artificial, por exemplo. Quem sempre se atualiza tem uma vantagem.”

Abreu ressalta que empresas vão criar vagas até suprirem sua demanda – e que tais necessidades evoluem constantemente. Mas as companhias também ficarão de olho na produtividade de cada desenvolvedor. “Podemos ver esforços para manter a equipe, sem novas contratações, com aumento na produção. As companhias também vão olhar para lacunas que possam ser preenchidas por plataformas no code”, diz o cofundador da BossaBox. Elas permitem criar aplicações sem programação tradicional, usando meios como interfaces gráficas. A ironia: até as empresas de soluções no code precisam de profissionais de tecnologia.

Mariana Fonseca

Subeditora do InfoMoney, escreve e edita matérias sobre empreendedorismo, gestão e inovação. Coapresentadora do podcast e dos vídeos da marca Do Zero Ao Topo.