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Brasileiros são ávidos compradores de dólares digitais em formato de criptomoeda. Segundo dados da Receita Federal, corretoras de ativos digitais declararam a aquisição de R$ 113,5 bilhões nessa categoria de cripoativo apenas no ano passado. E o número real tende a ser bem maior, porque ele exclui as transações de exchanges estrangeiras – incluindo a maior delas, a Binance.
As stablecoins, como também são chamados, são criptomoedas que têm paridade com outro ativo, em geral o dólar americano. Há atualmente US$ 133,3 bilhões nesse tipo de cripto circulando no mercado, segundo dados do CoinMarketCap.
Essas moedas são vistas normalmente apenas como veículo para entrar em sair de posições de Bitcoin (BTC) e outras moedas digitais, pois mantêm um valor estável em dólar, ao contrário das demais criptos.
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No entanto, esse uso vem sendo questionado, ao menos no Brasil: segundo dados da Receita, a soma de todas as aquisições dos principais ativos digitais em corretoras nacionais em 2022 não chegou a R$ 30 bilhões, apenas 26% do montante alocado em dólares digitais. Parece haver, portanto, um interesse em stablecoins que vai além da operação com criptomoedas voláteis.
A confiança nesse tipo de ativo, no entanto, foi colocada à prova na última semana como nunca antes: a USD Coin (USDC), considerada a stablecoin mais segura do mercado, perdeu a indexação com o dólar e chegou a ser negociada a US$ 0,81. Na prática, alguém que tinha US$ 1 mil em USDC ficou, repentinamente, com apenas US$ 810 na carteira, apesar da promessa de que a moeda não varia como as demais criptomoedas.
As perdas vieram assim que a emissora Circle do USDC, que tem por trás as gigantes Coinbase e BlackRock, revelou uma exposição de US$ 3,3 bilhões ao Silicon Valley Bank (SVB), que sofreu intervenção regulatória e foi fechado no dia 10 de março.
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Segundo especialistas, o movimento foi causado principalmente pelo medo de repetição do colapso da Terra/Luna, cuja stablecoin foi a zero após uma corrida de saques em maio do ano passado, e foi responsável por varrer US$ 60 bilhões em valor de mercado das criptomoedas.
Resgates aceleram
Mas a dúvida em relação às stablecoins continua. Mesmo após a criptomoeda recuperar a paridade com o dólar, a empresa emissora vem processando resgates em massa de USDC, reduzindo a quantidade de tokens no mercado – na semana passada, clientes trocaram US$ 3 bilhões de USDC por dólares “de verdade”.
O movimento foi identificado por corretoras de criptomoedas. Durante o final de semana passado, a exchange Bitso interrompeu temporariamente os depósitos em USDC, mas manteve os saques e notou um aumento de retiradas nesse período.
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O problema com as stablecoins, no entanto, vai além da USDC: a Binance USD (BUSD), terceira maior stablecoin do mundo, já chegou a ter US$ 23 bilhões em circulação, mas tem atualmente pouco mais de US$ 8 bilhões, após a emissora Paxos sofrer pressão de autoridades nos EUA. Seu futuro, por ora, é incerto.
Já a Tether (USDT), maior do mercado com US$ 70 bilhões em circulação, é constantemente criticada pela opacidade de suas reservas e falta de auditorias realizadas por empresas reconhecidas globalmente. Ainda assim, é uma das poucas que ainda saem ilesas dos episódios mais recentes de cerco de reguladores.
Vale a pena o risco?
Stablecoins de dólar oferecem vários benefícios frente à aquisição direta da moeda americana. Não é preciso ter conta bancária em dólar (algo que só recentemente foi liberado no Brasil após a aprovação do Marco do Câmbio), pois os tokens estão disponíveis em qualquer corretora. Dependendo da plataforma, é possível até obter rendimento em cima do depósito, como uma poupança – como é o caso da Bitso.
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Além disso, já existem cartões de débito, como os emitidos por Ripio, Crypto.com e Binance, que permitem gastar essas moedas digitais facilmente no Brasil – na prática, já é possível ter uma conta em dólar e gastar em reais. Isso sem falar nos benefícios tributários: ao contrário do câmbio comum, a compra de stablecoin não sofre incidência de IOF.
No entanto, o caso recente envolvendo a USDC levanta a questão: comprar dólar nessa modalidade vale o risco?
Luisa Pires, head de criptoativos da Levante, ressalta que as stablecoins sempre vão oferecer risco de contraparte e, por isso, recomenda investir diretamente no dólar, no lugar das stablecoins. “É a garantia dos Estados Unidos x a garantia da Coinbase. Então, hoje, com o cenário das corridas bancárias e escrutínio regulatório por parte dos EUA frente as stablecoins, vale você sempre deixar o seu investimento no dólar americano para correr menos riscos”, ressalta.
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Para a especialista, o ambiente de incerteza se deve principalmente à expectativa de um ambiente mais hostil para as stablecoins nos EUA, o que pode gerar turbulências nessa categoria de ativo. “Acredito que o impacto pode ser extremamente negativo no curto prazo, caso vejamos algum tipo de regulamentação voltada à proibição da negociação para as stablecoins centralizadas”, conta.
Player direto desse setor, a Bitso discorda. “Acredito que todo debate em torno das stablecoins representa uma grande oportunidade, e não um risco para o mercado. Os criptoativos passaram daquele estágio inicial de serem vistos como ferramentas de especulação e agora são utilizados para variadas finalidades”, opina destaca Daniel Steinberg, diretor jurídico Brasil e regulatório global da corretora.
“Temos visto muitos casos, por exemplo, de pequenas e médias empresas com custos em dólares buscando as stablecoins como alternativa mais viável; pessoas que vão viajar ou estudar no exterior poupando mensalmente em stablecoins; transações entre países sendo agilizadas com o uso de criptoativos…. os casos de uso têm crescido cada vez mais e, por isso, é natural e muito benéfico para o mercado que as discussões sobre regulação também se intensifiquem”, destaca.
Marcio Kogut, especialista em blockchain e fundador da fintech de consórcios Mycon, considera o caso da USDC como pontual, e não enxerga risco relevante no investimento em dólar digital.
“Ninguém imaginava que um banco regulado pelo banco central fosse quebrar, tanto é que não só a stablecoin tinha dólares custodiados lá para fazer a paridade, como outras startups do mundo inteiro tinham dinheiro no SVB. Foi um fato isolado que desestabilizou uma moeda que não deveria ter desestabilidade. Ela já existe há muitos anos e sempre foi segura e confiável”, comenta.
As stablecoins estão ameaçadas?
Apesar de problemas no curto prazo, é consenso entre especialistas de que as stablecoins deverão ter seu lugar no mundo, embora alguns cuidados precisem ser tomados, como verificar a saúde financeira da empresa emissora, checando se as reservas que lastreiam o ativo estão depositadas em instituição confiável.
“Não existe risco de investir em uma moeda atrelada a dólar se o dinheiro estiver em um banco de primeira linha, porque a probabilidade de ele quebrar é muito pequena”, afirma Kogut. Ele relembra que as stablecoins devem fazer parte do dia a dia dos brasileiros em pouco tempo – com o lançamento do real digital, bancos vão poder emitir suas stablecoins lastreadas em depósitos de clientes.
“Vai ser atrelado ao real e custodiado em um banco grande, como o Banco do Brasil, ou Caixa. É possível [que o real digital] se desestabilize caso um banco desses venha a quebrar, mas a probabilidade é muito pequena”, explica.
Luisa, da Levante, é da opinião de que as stablecoins são o alicerce das criptomoedas porque, sem elas, o mercado de cripto iria regredir de forma rígida. Diante disso, acredita que, mesmo se a pressão regulatória crescer nos EUA, sempre haverá empresas no mundo todo interessadas em intermediar as emissões, e eventualmente alternativas sem controle central, como a DAI, podem se sobressair.
A Bitso também aposta forte no segmento, reforçando que percebe um interesse crescente das pessoas e empresas em dolarizar seu patrimônio em países que passam por cenários de variação econômica, como aumento da inflação e desvalorização da moeda, e que as stablecoins ajudam a resolver esse problema.
“A forma mais simples de fazer isso atualmente é através das stablecoins, pois basta depositar em reais em sua wallet e converter instantaneamente para dólar digital. É um processo mais fácil, mais rápido e mais barato do que enviar dinheiro ao exterior e investir diretamente lá. E ainda conta com a segurança da tecnologia blockchain”, reforça Steinberg.