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A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) planeja testar um novo sistema que usa blockchain, tecnologia por trás das criptomoedas, para identificar desinformação durante as próximas eleições municipais, esperadas para o ano que vem. O objetivo é amadurecer o sistema para que ele funcione como ambiente colaborativo de verificação de fake news, caso a agência seja escolhida como supervisora das plataformas digitais no âmbito do projeto de lei das Fake News (PL 2.630/2020).
Desenvolvido em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG), o sistema visa construir uma comunidade plural composta por autoridades, jornalistas, advogados, defensores dos direitos humanos e empresas de mídia tradicional, entre outros participantes, responsáveis por checar informações possivelmente impróprias e, assim, contribuir com a moderação de conteúdo das big techs. O funcionamento do sistema ainda está em fase de estudos.
Segundo o presidente da agência, Carlos Baigorri, a solução visa resolver um impasse criado pela moderação de informações distribuídas nas redes sociais, objeto de polêmica nos debates sobre o PL. “Quando discutimos fake news e classificação de conteúdos, entramos em um dilema: entre proteger a sociedade da desinformação, de discurso de ódio, e chocar frontalmente com a liberdade de expressão. Não podemos dar um carimbo para um servidor público dizer o que é fake e o que não é fake, isso [não pode] ser definido por uma autoridade central”, explica.
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A tecnologia blockchain, que surgiu com o Bitcoin (BTC), cria um banco de dados colaborativo em que participantes ajudam a verificar dados em uma rede inviolável e com alta capacidade de auditoria — as identidades dos usuários são mantidas sob sigilo, mas as informações trafegadas são visíveis para todos. O projeto da Anatel com a UFG ainda está em seus primeiros estágios, então ainda não se sabe qual tipo de incentivo seria usado para estimular a participação. Na rede do Bitcoin, a criptomoeda BTC é usada como premiação aos verificadores de dados, conhecidos como mineradores.
A Anatel não descarta oferecer o sistema também às big techs, como meio de padronizar as ferramentas de moderação de conteúdo. “Hoje as plataformas já têm sistemas de filtragem e classificação de conteúdos. Você não vê [nas redes sociais] venda de armas, venda de drogas, pedofilia, porque elas próprias já têm incentivos para bloquear isso. Elas efetivamente fazem [esse controle], mas talvez não no nível em que a sociedade brasileira e o Congresso Nacional entendem como adequado”, avalia.
Enquanto o novo sistema de moderação evolui, a Anatel prevê a possibilidade de ampliação imediata do seu conselho consultivo, hoje formado por 12 representantes da Câmara dos Deputados, Senado Federal, Poder Executivo, consumidores, sociedade civil e teles. O Conselho está atualmente com edital aberto para seis cadeiras, com mandatos que findam entre 2024 a 2026. “Com mais participação social, podemos dar mais legitimidade e mais feedback sobre o que eventualmente está sendo feito pela agência”, comenta Baigorri.
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Sobre a capacidade da Anatel para lidar com as atribuições previstas no PL das fake news, Baigorri defende um desenho similar ao das superintendências temáticas que a agência já possui, como a de Relações com Consumidores. O plano envolve reforço de pessoal, seja por meio de treinamento do quadro existente, ou por novos servidores — já há um pedido de concurso público submetido ao Ministério da Gestão e da Inovação.
“Estão previstos mais de 300 servidores para esse concurso. [Caso a Anatel seja escolhida como órgão supervisor], vamos definir para esse concurso perfis de capacidade de servidores que nós não temos hoje, com um viés de direitos humanos, de comunicação, de liberdade de expressão, de democracia”, explica o presidente, destacando que as responsabilidades de fiscalização e sancionamento já poderiam ser absorvidas pela estrutura atual do órgão.
A escolha da Anatel como reguladora das plataformas de mídias sociais é um dos pontos de discordância entre parlamentares nas discussões sobre o PL das Fake News. Segundo o portal Jota, o relator do projeto, o deputado Orlando Silva (PCdoB/BA), teria nas mãos duas versões do relatório, com e sem a Anatel, enquanto trava negociações com a bancada evangélica e partidos ainda resistentes à proposta, como Republicanos, Podemos e MDB.
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Um dos argumentos dos críticos seria a falta de estrutura da Anatel. Para o presidente da agência, no entanto, criar uma nova entidade tomaria um tempo incompatível com a celeridade demonstrada pelos deputados, que aprovaram urgência para tramitação do PL.
“O assunto é premente. A sociedade brasileira quer uma medida do Estado. Se a lei é urgente, é razoável esperar que a efetividade da lei também seja urgente. Criar um órgão novo demora algum tempo para ter estrutura de pessoal, de processo, física, equipamento, sede”, aponta Baigorri. “É uma decisão que cabe ao Congresso Nacional, mas vejo que a Anatel tem uma vantagem, no sentido de que a nossa estrutura já está pronta e operacional para rapidamente dar efetividade à lei”.
O que diz o projeto de lei
A proposta cria a chamada Lei Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e estabelece obrigações a serem seguidas por redes sociais, aplicativos de mensagens e ferramentas de busca na sinalização e retirada de contas e conteúdos considerados criminosos.
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Pelo texto, os provedores (considerados aplicações de redes sociais, ferramentas de busca ou mensageria instantânea) poderão ser responsabilizados civilmente “pela reparação dos danos causados por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade de plataforma” e “por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros quando houver descumprimento das obrigações de dever de cuidado” previstas.
As big techs também são obrigadas a identificar, analisar e avaliar diligentemente os riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento dos seus serviços e dos seus sistemas relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos. A avaliação deve ser feita anualmente ou na introdução de funcionalidades suscetíveis de terem “impacto crítico”.
Dentre os riscos estão a difusão de conteúdos ilícitos, afronta à garantia e promoção do direito à liberdade de expressão, de informação e de imprensa e ao pluralismo dos meios de comunicação social, ao Estado democrático de direito e à higidez do processo eleitoral. Além da disseminação de informações que ofereçam riscos relativos “à violência contra a mulher, ao racismo, à proteção da saúde pública, a crianças e adolescentes, idosos” e aquelas com consequências negativas graves para o bem-estar físico e mental.
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Nestes casos, as companhias precisarão adotar medidas de atenuação “proporcionais e eficazes”, incluindo processos de moderação de conteúdos quando necessário, com rapidez e qualidade de processamento de notificações e eventuais remoções de conteúdos.
Também entra na lista de obrigações “testar e adaptar os sistemas algorítmicos, incluindo os sistemas de priorização e recomendação, de publicidade de plataforma” e a adoção de medidas para proteger os direitos de crianças e adolescentes, incluindo o aprimoramento dos sistemas de verificação de idade.
Conforme o projeto, as big techs precisarão atuar diligentemente para “prevenir e mitigar práticas ilícitas”, como a disseminação de conteúdos ilegais gerados por terceiros que possam configurar algum dos crimes destacados anteriormente. As companhias precisarão produzir relatórios semestrais de transparência, e realizar e publicar anualmente auditoria externa e independente para avaliação do cumprimento das normas estabelecidas pela nova legislação.
O texto também prevê adoção de mecanismos para oferecer maior transparência para exibição de material publicitário, para impedir o uso dos serviços por crianças e adolescentes não adequados a esse público, e estabelecer remuneração a veículos jornalísticos e a detentores de direitos autorais, entre outros temas sensíveis e causaram debate acalorado no Congresso.