Barrada pelo Planalto, infectologista critica insistência em cloroquina: “Estamos escolhendo de que borda da Terra plana vamos pular”

Em depoimento à CPI da Pandemia, Luana Araújo diz que deixou secretaria especial do Ministério da Saúde após ser informada que nomeação não ocorreria

Marcos Mortari

A médica infectologista Luana Araújo, ex-secretária de enfrentamento à Covid do Ministério da Saúde, em depoimento à CPI da Pandemia (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)
A médica infectologista Luana Araújo, ex-secretária de enfrentamento à Covid do Ministério da Saúde, em depoimento à CPI da Pandemia (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

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SÃO PAULO – A infectologista Luana Araújo, convidada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para assumir a Secretaria Especial de Combate à Covid-19, disse, nesta quarta-feira (2), que deixou o cargo depois de apenas 10 dias porque não teve sua nomeação aprovada por outras instâncias do governo federal. A médica presta depoimento junto à CPI da Pandemia do Senado Federal.

Durante a oitiva, ela contou que, após alguns dias de trabalho na pasta antes de ser formalizada no posto, foi informada por Queiroga que infelizmente a nomeação “não ia passar pela Casa Civil” – ministério comandado pelo general Luiz Eduardo Ramos. Em seguida, afirmou não ter certeza se a instância correta era aquela.

De fato, as nomeações para cargos de segundo e terceiro escalão no governo federal passam pela Casa Civil e são assinadas pelo chefe da pasta e pelo ministro da área específica, no caso Queiroga.

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“Eu não estava oficialmente nomeada, mas fui apresentada e trabalhei como se estivesse nomeada. Inclusive, não recebi um centavo por esses dias de trabalho, paguei do meu bolso todos os deslocamentos de Belo Horizonte a Brasília, que é onde eu moro, e contribuí para o que era importante e necessário naqueles momentos”, afirmou.

“O que me foi dito é que existia um período entre a criação da secretaria e um processo chamado ‘apostilamento’ de cargos, que deveria ser feito para que a minha nomeação fosse publicada em Diário Oficial. A minha nomeação estava programada, segundo o que me foi dito, para uma segunda-feira, não saiu; aí ficou para uma terça-feira, não saiu; quando chegou na quarta-feira, eu já tinha entendido o que tinha acontecido, eu já tinha entendido que aquilo não ia funcionar. E eu trabalhei normalmente na quarta-feira, até que na quarta-feira à noite eu fui chamada e fui comunicada de que, infelizmente, com pesar, a minha nomeação não sairia”, disse.

Araújo não soube informar o motivo de sua nomeação não ter se concretizado. Após ser anunciada publicamente por Queiroga, reportagens mostraram a posição frontalmente contrária da infectologista ao chamado “tratamento precoce”, defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e que havia sido motivo de atrito com os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.

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Em postagens nas redes sociais, a médica afirmou que o Brasil estava na “vanguarda da estupidez mundial” ao defender esse tipo de terapia, que chamou de “neocurandeirismo”. Durante a sessão na CPI, ela reafirmou suas convicções e apontou para o fato de evidências científicas não balizarem o tratamento de infectados pelo novo coronavírus com medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina – que, segundo ela, sequer foi motivo de debate durante sua curta passagem pelo Ministério da Saúde.

“Isso nem foi assunto. Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Quando eu disse que um ano atrás nós estávamos na vanguarda da estupidez mundial, eu infelizmente ainda mantenho isso em vários aspectos, porque nós ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da Terra plana a gente vai pular”, disse.

“A gente precisa desenvolver soluções, estratégias claras adaptadas ao nosso povo. A gente precisa ajudar o gestor, que neste momento é o ministro Queiroga, a conseguir os resultados que ele precisa, porque desses resultados dependemos todos nós. Então, ao invés de a gente fazer isso, com todo o respeito do mundo, nós estamos aqui discutindo algo que é um ponto pacificado para o mundo inteiro. Esse que é o perigo da nossa fragilidade e da nossa arrogância. É preciso que a gente aprenda com os outros lugares, com as outras instituições. A gente precisa ganhar tempo. Não tem cabimento isso”, complementou.

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A médica, que disse sofrer diversas ameaças por suas posições e declarações, afirmou haver estudos randomizados que mostram aumento de mortalidade com o uso de cloroquina e hidroxicloroquina e que é preciso haver responsabilização por quem o propaga.

“Quando a gente transforma isso em uma decisão pessoal é uma coisa, quando você transforma isso numa política pública é outra. A autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação. A autonomia precisa ser defendida sim, mas ela precisa ser defendida com base em alguns pilares: no pilar do conhecimento, da plausibilidade teórica do uso daquela medicação, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento sobre aquele assunto, no pilar da ética e no pilar da responsabilização”, disse.

Questionada se havia relação entre suas posições sobre o tema, ameaças recebidas por apoiadores de Bolsonaro e o veto à sua nomeação, respondeu: “Eu não sei lhe responder essa pergunta, mas essa hipótese me deixa extremamente – eu não vou nem dizer frustrada – envergonhada, porque eu, a despeito de qualquer dissidência nesse sentido, em uma coisa que é tão pequena dentro de uma estratégia que é tão complexa com relação à pandemia, me coloquei à disposição, o meu conhecimento, a minha imagem, tudo isso à disposição do atual governo, para que, juntos, chegássemos ao resultado que a população precisa”.

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Durante sua curta passagem pela pasta, a médica conta que enfrentou muitas dificuldades para a formação de uma equipe. “Infelizmente, por tudo que vem acontecendo, por essa polarização esdrúxula, essa politização incabível, os maiores talentos que a gente tem para trabalhar dentro dessas áreas não estavam exatamente à disposição para trabalhar nessa secretaria”, disse.

“Temos cérebros incríveis dentro deste País. Eu abri mão de muitas coisas pela chance de ajudar o meu País. Não precisava ter feito isso, mas fiz e estou aqui agora. Os senhores acham que as pessoas, de fato, que têm interesse em ajudar o País e competência para fazer isso, neste momento, se sentem muito compelidas a aceitar esse desafio? Não se sentem. Então, infelizmente, a gente está perdendo”, completou.

Para o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), a não nomeação de Luana foi uma questão política, por ela não compactuar com o uso da cloroquina no tratamento da Covid-19. “É inacreditável que alguém formada por uma das melhores universidades do mundo seja vetada. O ministro Queiroga disse aqui pra nós que teria autonomia pra nomear quem ele quisesse. Já está provado que não é verdade, ele mentiu aqui pra gente”, declarou.

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O senador Marcos Rogério (DEM-RO) questionou a “histeria” no parlamento sobre nomeações discricionárias. “É inquestionável a qualificação técnica da doutora Luana. Apesar da estranheza, todos sabem que em nenhum Poder Executivo existem nomeações automáticas. Nos municípios são feitas pelos prefeitos e nos estados e no governo federal pela Casa Civil. Não é razoável querer criminalizar. Há uma liberdade plena para nomear”, contrapôs.

Graduada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e epidemiologista mestra em saúde pública pela Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, a consultora em saúde pública para organizações internacionais, o nome de Luana Araújo havia sido celebrado em parte da comunidade médica após o anúncio de que integraria a nova secretaria de enfrentamento à Covid-19.

Luana Araújo é a 12ª fonte ouvida pela comissão parlamentar de inquérito, criada para investigar ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia e desvio de verbas federais enviadas a estados e municípios.

Antes dela, o colegiado já recebeu os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello; o atual titular da pasta, Marcelo Queiroga; o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres; o ex-secretário de Comunicação da Presidência da República Fabio Wajngarten; o gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo; o ex-ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo; a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro; e a médica Nise Yamaguchi.

Durante o depoimento, explicou que a secretaria faz parte de uma estrutura e foi criada para coordenar os esforços do governo federal relativos à pandemia, auxiliar na interlocução com estados e municípios, além de concatenar as sociedades científicas nacionais e internacionais no suporte aos esforços brasileiros no combate à pandemia.

“A secretaria tem por objetivo maior dar agilidade e precisão às informações sobre a pandemia para que os gestores tenham condição de lidar melhor com o que está acontecendo. Então, a minha função e o meu desejo naquela secretaria era que ela funcionasse como um antecipador de problemas”, disse.

Ao destacar em sua apresentação que, de ontem para hoje, 12 grandes aviões lotados caíram no país, em referência às mortes pela doença, Araújo enfatizou que saúde pública é muito mais do que médicos e hospitais e que a discussão sobre o que chamou de “pseudo tratamento precoce” é “esdrúxula”.

Ela afirmou, ainda, que não se pode imputar sofrimento e morte a uma população para se alcançar a imunidade de rebanho. “Com relação à questão da imunidade de rebanho, é muito importante que as pessoas saibam o seguinte: estamos falando de uma infecção por um vírus RNA – um tipo de material genético com uma tendência a sofrer mutações com muita facilidade. Era, é, e sempre será muito esperado que vírus com base em material genético de RNA sofram mutações claras ao longo do tempo. Uma imunidade de rebanho natural, dentro do SARS-CoV-2 e da doença Covid-19, é impossível de ser atingida, não é uma estratégia inteligente”, pontuou.

“Por que conseguimos fazer isso com a vacinação? Porque conseguimos induzir uma resposta ao mesmo tempo e muito mais sólida, aparentemente, do que a infecção natural, e num período de tempo mais curto. E outra: a gente atinge a imunidade de rebanho com a vacinação sem sofrimento. Eu não posso imputar sofrimento e morte a uma população simplesmente pensando em atingir uma imunidade de rebanho. Isso não existe. Para mim, é muito estranho que a gente discuta esse tipo coisa, não tem lógica”, completou.

Luana Araújo defendeu que o Ministério da Saúde tenha uma ação proativa e não reativa, com abordagem precoce dos pacientes. Padrão ouro de testagem no país, o chamado teste PCR, pelas dificuldades técnicas, leva muito tempo para conferir resposta, e com isso se perde a oportunidade de interrupção da cadeia da doença, segundo a médica.

“Nossa estratégia de testagem, até o momento, foi baseada num tipo de teste, que vocês já devem ter feito, muitos aqui, chamado PCR, que é aquele em que a gente coloca um swab, um cotonete grande no nariz. Esse teste é o padrão ouro que a gente tem hoje, mas, infelizmente, pelo tamanho do nosso País e pelas dificuldades técnicas de realização de um teste que precisa de uma estrutura laboratorial grande e complexa, leva muito tempo pra gente ter o resultado desse teste. Então, na hora em que o paciente recebe de volta esse resultado, a gente já perdeu a oportunidade de interrupção da cadeia de transmissão da doença, que é o que a gente precisa hoje”, pontuou.

Perguntada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da comissão, sobre os impactos das falas de Bolsonaro na pandemia, Luana Araújo disse que não gostaria que sua participação técnica fosse utilizada com finalidade política, mas lamentou.

“É uma situação muito difícil e muito complexa, triste para quem trabalha com infectologia, para quem trabalha com saúde pública, para quem vê paciente, para quem testemunha as dificuldades e os horrores que a gente vem passando. Eu compreendo perfeitamente que existam consequências de determinadas políticas públicas – e uma das minhas atribuições, por exemplo, é tentar desenvolver políticas públicas que minimizem os impactos socioeconômicos graves de uma situação como essa. Mas não é possível ouvir uma declaração ou um conjunto de declarações de quem quer que seja – não estou personalizando na figura do presidente – sem sofrer um impacto quase que emocional, além do racional que a gente trabalha o dia inteiro”, disse.

“A mim, como médica, como infectologista, como epidemiologista, como educadora em saúde, isso me suscita a ideia de que eu preciso trabalhar mais, de que eu preciso informar melhor as pessoas, de que eu não estou sendo suficiente nas palavras que eu tenho usado, porque, a mim, me parece que falta informação de qualidade. Na hora em que você obtém a informação de qualidade e passa essa informação de uma forma que a pessoa tenha condições de compreender, não é mais esse tipo de comportamento que a gente espera que aconteça. Então, a mim dói”, concluiu.

(com Agência Senado e Reuters)

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.