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Um dos maiores especialistas em contas públicas do país, o economista Felipe Salto, atualmente secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo, defende que o arcabouço fiscal brasileiro precisa ser “modernizado”.
Segundo ele, o teto de gastos − regra fiscal, criada em 2016, que limita a evolução de despesas públicas em um exercício à inflação acumulada no ano anterior − cumpriu seu papel, mas precisa passar por uma nova discussão e se tornar instrumento vinculado à trajetória da dívida pública.
“O teto de gastos foi importante como marco que ajudou a controlar expectativas. Quando isso é feito, dá-se um sinal ao mercado e ele reduz a exigência de juros para financiar o déficit público. Só que a regra foi feita em uma maneira muito rígida. Isso é muito ruim, porque a literatura de regras fiscais sempre diz que é preciso haver válvulas de escape”, afirmou.
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“É preciso haver uma modernização desse arcabouço fiscal, mas não inventar uma coisa do zero. Partir de algo que já conhecemos. Por exemplo, a meta de primário, que deu certo, o espírito do teto de gastos é importante, porque tem que haver algum controle da despesa, mas vincular essas regras ao limite para a dívida”, sugere.
O especialista recebeu a reportagem do InfoMoney na última quinta-feira (1º), na sede da Secretaria da Fazenda e Planejamento de São Paulo, no centro da capital paulista. Durante a conversa, ele contou que foi procurado pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), para apresentar sugestões para o debate sobre um novo arcabouço fiscal no país.
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), prometeu durante a campanha que revogaria o teto de gastos, mas nunca disse o que seria colocado no lugar como regra fiscal. Desde antes do pleito, muitos economistas têm argumentado que o teto não se sustenta da forma como existe hoje, diante das demandas sociais crescentes, a conjuntura econômica e o comportamento dos gastos públicos.
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Salto defende a incorporação de um limite tendencial para a dívida pública. A ideia dar caráter prioritário à gestão da trajetória da dívida em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Tal premissa seria responsável, juntamente com as estimativas para o desempenho da atividade econômica, por definir a meta de resultado primário a ser perseguida pelo governo federal.
“O problema do teto atual é que ele está descolado da dívida. É uma regra que alguém disse que a despesa tem que crescer pela inflação. Por quê? Não podemos crescer a despesa em um ano em que conseguimos reduzir a dívida mais do que a inflação?”, questiona.
“Temos que fugir do fla-flu”, pondera. “Não é para jogar fora o teto. É importante ter controle da despesa, mas vamos ver uma maneira de calibrar isso para atingir o objetivo que queremos. Nosso objetivo não é reduzir a despesa sempre, mas que a despesa caminhe de uma forma que a dívida fique controlada”, explica.
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Economistas e políticos pressionam o governo eleito a incluir o debate sobre o novo arcabouço fiscal na PEC da Transição − texto que visa abrir espaço fora do teto para garantir o pagamento do Bolsa Família (programa que deverá ser retomado no lugar do Auxílio Brasil) de R$ 600,00 mensais e do adicional de R$ 150,00 a famílias com crianças de até seis anos, além de outras promessas de campanha de Lula. Mas a futura gestão tem buscado empurrar o debate para 2023.
Nos cálculos de Salto, uma licença para gastar entre R$ 80 bilhões e R$ 120 bilhões seria “razoável”. “Neste patamar, a dívida cresce nos dois anos, mas depois começa a estabilizar e cair”, diz. Mas se o Congresso Nacional aprovar um “waiver” entre R$ 175 bilhões e R$ 198 bilhões, como pede o governo eleito no texto original da PEC, as perspectivas para estabilização da dívida pioram.
“Primeiro, é preciso colocar no papel quais são os gastos importantes que não estão contemplados no Orçamento. Há esses R$ 50/60 bilhões para a questão do Auxílio, isso é inescapável. E tem talvez o ajuste do teto, porque ele foi corrigido por uma inflação que está defasada, e o salário mínimo. Se for 2% de reajuste real, vai dar cerca de R$ 9 bilhões. Juntando essas coisas, não chegamos a R$ 100 bilhões. É preciso ter cuidado, se não, de repente, começa a entrar um monte de coisas na conta e cria-se o risco de entrar em uma trajetória de dívida mais difícil de estabilizar em um prazo mais curto”, observa.
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Veja os destaques da entrevista:
InfoMoney: Como funciona a proposta para um novo arcabouço fiscal que o senhor está organizando?
Felipe Salto: O teto de gastos, com a emenda [constitucional] nº 95, em 2016, foi importante como marco que ajudou a controlar expectativas. Quando isso é feito, dá-se um sinal ao mercado e ele reduz a exigência de juros para financiar o déficit público − o que é bom para a dinâmica da dívida. Só que a regra foi feita em uma maneira muito rígida. Isso é muito ruim, porque a literatura de regras fiscais sempre diz que é preciso haver válvulas de escape.
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A única válvula de escape do teto é o crédito extraordinário, que ficou muito maculado por seu uso no governo Dilma e que depois foram alvo do processo de impedimento. Todo mundo tem medo de usar. Por isso que o atual governo optou por modificar a Constituição várias vezes para cumprir o teto: as emendas 109, 113, 114 e 123, além da cessão onerosa, que eles já tinham retirado do teto em 2019.
É preciso haver uma modernização desse arcabouço fiscal, mas não inventar uma coisa do zero. Partir de algo que já conhecemos. Por exemplo, a meta de primário, que deu certo. O espírito do teto de gastos também é importante, porque tem que haver algum controle da despesa, mas vincular essas regras ao limite para a dívida. A Constituição de 1988 já prevê, nos artigos 48 e 52, o limite para a dívida, mas nunca isso foi regulamentado. Depois, a emenda 109, derivada da PEC Emergencial, no atual governo, introduziu o termo “sustentabilidade da dívida” na Constituição, mas não veio lei complementar depois.
Quando fui procurado pelo vice-presidente [eleito] Geraldo Alckmin, com quem já tenho uma relação de algum tempo, dei essa sugestão. Ele me convidou para tomar um café, na quinta-feira antes do segundo turno (27 de outubro), aqui no centro [de São Paulo]. Eu tinha essas ideias há algum tempo. Nós conversamos, ele pediu sugestões e eu resolvi colocar no papel.
A ideia é ter um limite tendencial para a dívida pública junto com uma meta de resultado primário. O teto de gastos continuaria, mas ele vai permitir um crescimento maior do que a inflação.
IM: O limite tendencial estabeleceria a meta de resultado primário em determinado exercício?
FS: Isso mesmo. Porque, na Lei Orçamentária, colocaríamos a trajetória da dívida. Qual vai ser o resultado primário que vamos buscar? Aquele que produza aquela trajetória para a dívida. Também é preciso levar em conta o PIB estimado… Precisa ter um grupo do governo, a Instituição Fiscal Independente (IFI) ou técnicos do governo e do Legislativo, para bolarem essa sistemática de projeção.
IM: Não seria temerário deixar esse tipo de instrumento nas mãos do governo de turno ou de parlamentares? Há diversos exemplos na história de superestimação de receitas pelo Congresso Nacional para aprovar uma peça orçamentária mais robusta do que seria possível − forçando contingenciamentos no futuro. Como evitar esse risco?
FS: Uma coisa que precisamos entender é que não existe regra fiscal perfeita. Não existe regra fiscal que seja capaz de anular o ímpeto da irresponsabilidade fiscal. É que esse ímpeto hoje acho que está sob controle, por várias razões. Uma presidente caiu por conta de questões fiscais, independentemente do mérito, se estava bem embasado ou não. Temos um teto de gastos que está batendo pino. Um governo atual que é dito liberal teve que mudar o teto. Há um contexto macroeconômico e fiscal em que o mercado pune rapidamente quando os governos são fiscalmente irresponsável. Existe um aprendizado que acredito que não deixará que a coisa saia dos trilhos. Agora, regra fiscal sozinha não faz verão. Tem que existir a regra e o compromisso político em torno dela.
IM: O Tesouro Nacional também apresentou uma proposta de reforma do teto de gastos, abrindo situações em que seria possível o nível de despesas ter crescimento real de um ano para outro, dependendo da trajetória e do patamar da dívida pública. Qual é sua avaliação?
FS: Das propostas que já foram publicadas, essa do Tesouro é muito boa. A ideia deles é manter o teto, mas vincular a discussão com a dívida. Então, toda vez que o desempenho da dívida for melhor do que o esperado, abre-se um pouco de folga para gastar. Acho que também é um bom caminho.
O problema do teto atual é que ele está descolado da dívida. É uma regra que alguém disse que a despesa tem que crescer pela inflação. Por quê? Não podemos crescer a despesa em um ano em que conseguimos reduzir a dívida mais do que a inflação? Sim.
IM: Embora não exista regra fiscal perfeita, não é ruim nosso arcabouço fiscal ser substituído com a frequência com que temos assistido? O teto de gastos foi instituído há seis anos. Por outro lado, muitos já diziam que a regra seria inexequível no longo prazo e que investimentos públicos seriam sacrificados para bancar a continuidade de boa parte das despesas obrigatórias.
FS: Temos que fugir do fla-flu, porque uns dizem: “eu avisei, o teto foi mal desenhado”. Mas eu avisei (risos)… Publiquei com um artigo com José Roberto Afonso mostrando que era importante controlar o gasto, mas decidiram colocar uma coisa tão rígida, que, quando o teto começou a ser uma restrição, teria que ser mudado. O [secretário do Tesouro Nacional no governo Michel Temer,] Mansueto [Almeida], que é meu amigo, espertamente, jogou a despesa para cima, piorando a meta de déficit primário em 2016 para [o então ministro da Fazenda, Henrique] Meirelles ficar com uma folga até o fim do mandato, criando uma restrição mesmo depois de três ou quatro anos.
Em 2016 fixaram o teto, e só em 2019 ele começou a ser um problema. Na IFI, nós alertávamos todo ano [sobre o risco de rompimento do teto de gastos]. O Marcos Mendes até dizia: “A IFI todo ano fala que o teto vai ser rompido no ano seguinte”. De fato, havia risco. Tanto que, em 2020, só não foi rompido porque veio a pandemia e uma carta branca para gastar. Fizeram R$ 520,6 bilhões [de despesas] acima do teto. Em 2019, houve a cessão onerosa. Mas agora estou feliz, porque ele assinou um texto, junto com Armínio [Fraga], dizendo que teria que mudar também.
Estou brincando, mas é um aprendizado. Não é para jogar fora o teto. É importante ter controle da despesa, mas vamos ver uma maneira de calibrar isso para atingir o objetivo que queremos. Nosso objetivo não é reduzir a despesa sempre, mas que ela caminhe de forma que a dívida fique controlada.
IM: Mas não preocupa o senhor mudar a regra sempre? O senhor sempre disse que o Brasil era pródigo em criar regras fiscais, mas deixa a desejar na hora de cumpri-las. Nada garante que esse comportamento agora mudaria. Como evitar que isso continue acontecendo?
FS: Há dois caminhos. Um é passar o arcabouço fiscal para lei complementar, que é a ideia que Pérsio [Arida] defende há algum tempo e agora a ideia ressurgiu. A outra, que eu prefiro, é colocar na Constituição essas novas regras, mas sem uma rigidez tal que depois exija de novo uma Proposta de Emenda à Constituição. A Constituição tem que dar as bases para o comportamento da dívida, da despesa e da receita. É ruim ficar mudando toda a hora.
IM: Uma das poucas vezes em que Alckmin se manifestou sobre o assunto publicamente, os termos da sua proposta foram claramente defendidos por ele (embora seu nome não tivesse sido mencionado). Houve uma conversa depois do aceno? Foi feito algum convite?
FS: Não. A última vez que encontrei Alckmin foi no dia 15 de novembro. Naquela oportunidade, expliquei melhor [a proposta], escrevi no papel, desenhei o gráfico, e ele ficou muito interessado. Mas é uma contribuição intelectual. Que bom se for útil. Mandei para o Guilherme Mello também, para o Nelson Barbosa e para o Pérsio.
IM: Qual foi a reação deles?
FS: Agradeceram. Eles também têm as próprias ideias. Mas acho que há uma convergência. Se você pegar a proposta do Tesouro, a minha e a do Armínio, qual é a convergência? É que o teto que está aí não dá. Isso já é uma coisa boa, porque antes não existia esse consenso. A outra coisa positiva é trazer a dívida para a discussão.
IM: Há muitas críticas à PEC da Transição pelo tamanho do espaço fiscal que pode ser aberto fora do teto de gastos e o prazo para a excepcionalidade. Qual sua avaliação sobre a pedida do governo eleito? Dependendo do fôlego fiscal garantido e o prazo, uma regra fiscal pode não conseguir compensar esse espaço gerado. O PIB estimado pode não ser suficiente para fazer a dívida convergir a médio prazo. Qual seria o patamar que tornaria as regras em discussão ineptas?
FS: Nós fizemos essas simulações. Quanto menor esse valor inicial que vai se permitir gastar além do teto, melhor para a trajetória [da dívida pública]. Algo razoável seria entre R$ 80 bilhões e R$ 120 bilhões. Neste patamar, a dívida cresce nos dois anos, mas depois começa a estabilizar e cair. Então, acho razoável. Agora, no caso dos R$ 175 bilhões ou mais, vai ficar muito difícil ter um horizonte de estabilização de médio prazo. Vai levar mais tempo para estabilizar. Claro que isso envolve premissas de juros, crescimento etc. Mas o ideal é que se controle um pouco esse valor adicional inicial que estão discutindo para gastos em 2023 para evitar esse efeito-cascata sobre a dívida.
IM: Dependendo do patamar do “waiver” (ou seja, da licença para gastar) aprovado, vale a pena investir na construção de um novo arcabouço fiscal? Já que o horizonte para convergência da dívida pública em relação ao PIB poderia ficar tão à frente que talvez não ancore expectativas.
FS: Acho que vale, porque esse problema vai surgir a todo tempo. O teto foi rompido em 2020, 2021, 2022 e 2023, pelo que está se programando, porque estava mal calibrado. Simplesmente a despesa não cresce pela inflação. Senão seria preciso fazer uma nova Constituição, na verdade, para cortar o gasto na proporção em que o teto preconizava. Dado isso, é preciso, necessariamente, de um novo arcabouço fiscal. Em que pese essa licença para gastar resolva o problema de curto prazo, será necessário ancorar as expectativas, mostrar que o governo vai ser responsável.
No fim das contas, talvez tenha sido bom separar as discussões, porque primeiro seria uma PEC só. Depois, ficou essa PEC para discutir o gasto adicional, e, em seguida, deve vir outra medida para discutir qual vai ser a nova regra fiscal. Mas acho que essa discussão é inescapável. Eu já dizia isso quando estava na IFI. Temos um encontro marcado com a mudança no teto.
IM: Quais são os incentivos que o governo eleito tem para promover essa discussão se houver um “waiver” muito amplo? Seria só a pressão do mercado?
FS: Primeiro, é preciso colocar no papel quais são os gastos importantes que não estão contemplados no Orçamento. Há esses R$ 50/60 bilhões para a questão do Auxílio [Brasil, que será substituído pelo Bolsa Família], isso é inescapável. E tem talvez o ajuste do teto, porque ele foi corrigido por uma inflação que está defasada, e a questão do salário mínimo. Se for 2% de reajuste real, vai dar cerca de R$ 9 bilhões. Então, juntando essas coisas, não chegamos a R$ 100 bilhões. É preciso ter cuidado, se não, de repente, começa a entrar um monte de coisas na conta e cria-se o risco de entrar em uma trajetória de dívida que seja mais difícil de estabilizar em um prazo mais curto.
IM: Com o prazo apertado de 20 dias para aprovar tudo no Congresso Nacional, planos alternativos têm aparecido e podem ganhar força na medida em que forem percebidas dificuldades adicionais para a PEC. Qual sua avaliação sobre as teses ventiladas? Já foi defendida liberação de créditos extraordinários via medida provisória. Há quem advogue pelo adiamento da votação da PEC e do Orçamento para o ano que vem…
FS: Um dos economistas que mais conhecem de contas públicas no Brasil, o José Roberto Afonso, publicou um artigo defendendo que se faça por crédito extraordinário esse gasto adicional, para não mexer novamente na Constituição. São pessoas respeitadas, é uma linha possível. Eu prefiro que se resolva logo, de uma vez, o arcabouço fiscal. O governo está indo para um terceiro caminho, que é liberar um gasto adicional e deixar a discussão da regra para depois. É uma decisão de governo. Acho que há uma questão política também: para fazer mudança na Constituição a essa altura do campeonato, [o governo eleito] depende do atual presidente da Câmara.
IM: Inclusive, há discussões para trazer de volta ao texto da PEC a previsão de uso de excesso de arrecadação ainda em 2022…
FS: Tem que trazer o Orçamento para bases mais realistas. É preciso ter uma reforma orçamentária e fiscal − não só essa discussão de curtíssimo prazo que está sendo feita.
IM: O senhor acha que Lula já deveria ter anunciado o nome do ministro da Fazenda para ajudar nessas negociações e ancorar expectativas?
FS: Não. Acho que o mercado está muito ansioso, tem que tomar um Rivotril, ficar mais tranquilo. Faz 25 dias que o governo foi eleito e já se exige um comprometimento com relação à política econômica com muito pouco tempo. É preciso entender que a plataforma que ganhou será uma coisa de coalizão no sentido estrito da palavra: vai ter que juntar um monte de gente diferente. Basta ver a chapa de Lula e Alckmin. O vice ficou com a missão de reunir especialistas que pensam diferente − e acho que está cumprindo bem. Não se vai chegar, da noite para o dia, a um consenso. Claro que, quando escolher o ministro, será um sinal muito forte. Mas acho que não se ganha nada em antecipar.
IM: Quais conselhos o senhor daria ao próximo governo para enfrentar o quadro fiscal? Quais são os principais riscos que o senhor vislumbra para a gestão de Lula?
FS: O governo federal precisa virar essa página da incerteza sobre a política fiscal. É urgente que tenhamos uma solução para o teto de gastos. Ela pode ser melhor ou pior, mas o mercado precisa ter clareza de como vai ser a política fiscal.
Virada a página, qual é o principal desafio? Crescimento econômico. É preciso retomar uma política externa civilizada, que esteja direcionada ao comércio exterior, retomar as negociações para o acordo entre Mercosul e União Europeia, em que nossa indústria pode ganhar muito. Em uma terceira frente, reestruturar o BNDES e os instrumentos que o Estado brasileiro tem para financiar investimentos de grande monta. O governo federal cometeu equívocos lá atrás, com subsídios gigantescos, o Tesouro bancando emitindo dívida… Não estou dizendo que tem que voltar isso, mas precisamos ter uma política industrial creditícia, utilizando os instrumentos que temos. Como a Coreia do Sul tem, os Estados Unidos têm, a Alemanha tem. E escolher projetos que tenham externalidades positivas, porque aí o retorno social desses investimentos escolhidos serão muito maiores do que o custo para o Estado. Isso vai ajudar na arrecadação e no crescimento.
Há uma série de coisas que precisam ser feitas de maneira urgente. Não dá para entrar e depois pensar. Tem que ter um plano coeso para que, a partir de 1º de janeiro, o novo governo já possa utilizar bem essa estrutura que o Estado brasileiro tem para poder voltar uma roda de crescimento econômico que não vai ser trivial. Haverá desafios, também, na área da educação. O desmonte na educação vai ter que ser revertido. Porque, para aumentar também a produtividade do trabalho, será necessário investir muito em educação técnica, educação superior, educação básica – e nós não estamos fazendo isso. Em todas as frentes há coisas importantes para fazer.
Uma quinta frente é a questão ambiental. Perdemos muito investimento não por questões macroeconômicas, mas por questão ambiental: o tratamento que foi dado à Amazônia, a política ambiental. É preciso reestruturar isso, que vai ajudar a atrair investimentos de boa qualidade. O Brasil tem todas as condições de ter uma política ambiental que ajude a atrair recursos para investimento produtivo de boa qualidade.
IM: Quando falamos em endividamento, o desempenho do PIB pode ser fundamental. No atual momento, o cenário internacional não favorece o crescimento – recessão global, juros altos, inflação etc. Por outro lado, há uma demanda muito grande por algumas políticas públicas. Onde será possível cortar alguma coisa?
FS: O que precisa é ter medidas de gestão para economizar no custeio. Só que daí não vai vir um grande ajuste fiscal. Acho que é possível tirar daí cerca de R$ 10 bilhões. É bastante dinheiro, mas não é o que vai resolver a questão do equilíbrio fiscal. O que vai resolver? É preciso ter uma política salarial e de contratações e concursos que permita a despesa de pessoal crescer menos do que cresce o PIB e é preciso uma reestruturação dos gastos obrigatórios. Isso não vai ser feito da noite para o dia. Por isso que a regra fiscal é importante: ela vai motivar para que essas mudanças sejam feitas ao longo do tempo.
IM: As mudanças nas regras para o ICMS acarretaram em perdas de arrecadação para os governos estaduais. Qual o tamanho do impacto para São Paulo? E o que pode ser feito para compensar o dano provocado aos cofres públicos?
FS: Eu sempre digo que São Paulo é o aluno que tira nota 10 e senta na primeira fileira. Não só desde que eu cheguei, historicamente, de 1995 para cá. Em 1995, [Mario] Covas pegou o estado quebrado. O ajuste fiscal que ele fez foi muito importante porque ele conseguiu recolocar o estado de pé (não tinha dinheiro para pagar salário, gasolina das viaturas policiais) e, mais do que isso, aumentou o investimento. A partir disso, nunca mais o estado teve problema fiscal. Estamos investindo mais do que o governo federal e São Paulo não pode fazer dívida. Vamos terminar o biênio 2021-2022 com o investimento em mais de R$ 50 bilhões.
A situação de São Paulo é muito positiva. Vamos deixar no caixa uma cifra de algo como R$ 33 bilhões. A divida líquida em relação à receita vai terminar o ano em 112%, que é o menor nível da série histórica, com um investimento crescente. E, mais do que isso, o aval do Tesouro Nacional para, se o próximo governo quiser, contratar mais R$ 14 bilhões em operações de crédito novas. E há um monte de projetos no pipeline, inclusive do metrô, que, se forem todos executados, vão permitir aumentar a malha metroferroviária em 40% nos próximos quatro anos. São Paulo está fazendo a lição de casa muito bem.
Agora, tomamos um baque com a questão do ICMS de combustíveis, mas não fomos pegos de calças curtas. É como na fábula da cigarra e da formiga: no inverno fizemos ajuste fiscal, guardamos dinheiro − fomos criticados por isso. O programa de ajuste fiscal que foi feito na pandemia foi para ter dinheiro para pagar os gastos com saúde depois. Só que, além disso, conseguimos ter uma poupança que agora nos dá essa segurança para poder passar por esse período em que o ICMS já está desacelerando bastante.
Também, pela ação diligente da Secretaria da Fazenda e da Procuradoria Geral do Estado, conseguimos que o STF determinasse a compensação, que está em R$ 1 bilhão por mês, em razão das perdas com a Lei Complementar 194. Isso, em termos anualizados, dá R$ 12 bilhões. Mas também tem as tarifas de energia, que, se não conseguirmos reverter e decidirem que elas devem ser retiradas da base de cálculo, perdemos mais entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões. Então, estamos falando de uma perda potencial de São Paulo, em termos anualizados, que pode chegar a R$ 17/18 bilhões. Mas, se conseguirmos continuar tendo compensação e evitar essa questão [energética], é possível controlar.
Mas haverá um ponto estrutural, que é a desaceleração da atividade econômica − o Brasil vai crescer 1/3 do que está crescendo agora e está com uma taxa de juros muito alta. Isso vai prejudicar um pouco estruturalmente a arrecadação de todo mundo. E é por isso que o ponto de partida muito bom que temos vai ajudar a passar por esse período mais turbulento.
IM: Caso a compensação não atenda de forma integral as perdas das unidades federativas, o que pode ser feito? A reforma tributária é apontada como prioridade pelo governo eleito logo nos primeiros meses de gestão. É possível caminha nessa direção? O “consenso” entre os estados pode ser aproveitado?
FS: Primeiro que não há consenso entre os estados, é conversa fiada. Cada estado quer uma coisa. Na hora em que senta lá no Confaz, é cada um por si e Deus para todos ou, quando eles se unem, todos contra São Paulo. Sempre foi assim e não mudou. A diferença é que acho que agora tanto os estados mais pobres quanto os mais ricos estão dispostos a abrir mão de algumas coisas.
Por isso, acho que a reforma tributária tem que ser uma que defina a migração do ICMS para o destino. A proposta de Bernard Appy faz isso porque cria o IVA nacional, mas ela é muito ambiciosa. Acho que tem que ser um segundo passo. E São Paulo perde arrecadação, mas estaríamos dispostos a ir por essa direção porque sabemos que, com esse novo regime, haveria mais crescimento econômico, empresas que saíram daqui poderiam ser atraídas novamente. E como ficam os estados mais pobres? É preciso criar um fundo de desenvolvimento regional e permitir que eles acessem esses recursos para substituir os benefícios tributários que dão atualmente, que criam toda essa guerra fiscal.
São Paulo hoje tem uma conduta de defesa. Ele se defende na guerra fiscal, mas não faz política predatória. Os outros estados fazem: Santa Catarina, Minas Gerais, Pernambuco, Goiás. Perdemos a Nestlé, que estava na região de Bauru, para o Paraná. Se tivéssemos dado um crédito outorgado do tamanho de um bonde, como fizeram, ela teria ficado. Não fizemos, porque isso teria derrubado a arrecadação. Levado à exaustão, se São Paulo adota uma política dessas, seríamos amanhã o que Minas Gerais é hoje. Minas está com a dívida crescendo sem parar, e não é porque a assembleia não aprovou o regime de recuperação fiscal. Isso é a consequência.
Tem que ter uma reforma tributária, mas acho que tem que ser por etapas. Primeiro, começar migrando o ICMS para o destino. Depois, discute o IVA nacional.
IM: A Alesp aprovou um reajuste salarial de 50% para o salário do governador com efeito cascata para uma parcela do funcionalismo que ganha mais. É uma medida justa? Como o senhor enxerga a decisão sob a ótica da capacidade que o governo tem de arcar com esse tipo de despesa?
FS: Primeiro, o funcionalismo teve reajuste de 10% a 20% ainda no governo [João] Doria. Então, é mentira que não foi dado reajuste para os servidores. Foi. Segundo, a mudança no teto afeta 18,3 mil servidores. Não são só “algumas categorias”. Terceiro, há auditores fiscais, por exemplo, que estão sem reajuste há anos. É justa essa situação? Não é, porque eles assumem riscos − principalmente os que estão nos cargos de chefia. Quando você faz esse aumento do subsídio, está valorizando essa burocracia permanente, sem a qual o estado vai à falência. Eu digo porque eles cuidam da política tributária e da política fiscal do estado.
Portanto, essa é uma medida essencialmente de valorização da burocracia. Não tem nada a ver com aumentar o salário do próximo governador. [O governador eleito] Tarcísio [de Freitas (Republicanos)] é servidor de carreira. Se quiser, ganha o salário dele da Câmara. Então, o que temos que ter em mente é que a medida foi de aumentar o teto do funcionalismo.
Eu sou a favor porque faço conta: custa R$ 1,7 bilhão. O limite da Lei de Responsabilidade Fiscal é de 49% da receita corrente líquida. Estamos em 37,6%. Com R$ 1,7 bilhão, não vamos chegar nem perto dos 49%. Ficaremos abaixo dos 40% ainda. É uma medida fiscalmente responsável, que valoriza a burocracia, que vai dar tranquilidade ao próximo governante, vai ter a indicação dos servidores. Agora, está longe de resolver os problemas estruturais de RH do estado de São Paulo – e eu sempre disse isso.
IM: O que o senhor tem pensado para seu futuro depois da Secretaria da Fazenda de São Paulo? Seu desejo é voltar a Brasília?
FS: Estou 100% focado aqui, porque esse período de transição está dando mais trabalho ainda. É preciso atender a equipe de transição – é uma obrigação nossa dar as informações, ajudar etc. E cuidar do dia a dia da secretaria. Também estamos fazendo um balanço de todas as atividades, para mostrar não só o que fiz no meu período…. Do ponto de vista pessoal, estou avaliando as possibilidades. Estamos conversando.
IM: A experiência no Poder Executivo agradou?
FS: Sim. Gosto muito do trabalho na Secretaria da Fazenda, e, por mim, se fosse possível continuar, certamente seria uma possibilidade interessante.
IM: Iria para o governo federal sem problemas…
FS: No governo federal, claro que, para quem é economista – principalmente dessa área fiscal – também é uma possibilidade interessante. Agora, essas coisas dependem de o governo eleito querer.