Guerra fiscal pode custar mais de R$ 200 bilhões ao governo em repasses para fundo de compensação do ICMS

Tratamento dado a benefícios fiscais durante transição da reforma tributária gera incertezas e preocupações sobre futura disputa judicial

Marcos Mortari

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), durante reunião com líderes partidários do Senado Federal (Foto: Pedro Gontijo/Senado Federal)
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), durante reunião com líderes partidários do Senado Federal (Foto: Pedro Gontijo/Senado Federal)

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O volume de incentivos fiscais concedidos pelos governadores a partir do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) deve exigir aportes mais expressivos do que o inicialmente planejado pelo governo federal para o período de transição da reforma tributária, caso o Senado Federal não modifique a Proposta de Emenda à Constituição aprovada pelos deputados no início do mês.

É o que mostram números obtidos pelo InfoMoney junto às 27 secretarias estaduais de Fazenda e Planejamento, analisados por especialistas em contas públicas. O levantamento mostra que, apenas em 2023, a expectativa dos entes é que as renúncias de receitas com o tributo fiquem em R$ 232,49 bilhões. A conta sobe para R$ 259,50 bilhões e R$ 273,47 bilhões nos dois anos seguintes.

O cálculo ainda pode variar, dependendo do comportamento das projeções para a inflação no período, mas a tendência é que se prove ainda mais alto, já que em alguns casos o levantamento considerou dados menos frescos, constantes de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, aprovada em cada ente subnacional no ano passado.

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O montante que envolve os incentivos fiscais concedidos pelos estados e pelo Distrito Federal tem impacto direto nas discussões sobre a reforma tributária dos impostos sobre o consumo, tratada na PEC 45/2019, aprovada pela Câmara dos Deputados e que agora segue para análise do Senado Federal. E tem implicações sobre os efeitos do novo sistema para a União.

Isso porque o substitutivo votado pelos deputados cria um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiros-fiscais, bancado com recursos do governo federal, com o objetivo de compensar, até 31 de dezembro de 2032, empresas contempladas por benefícios oferecidos por cada estado através do ICMS, desde que concedidos por “prazo certo e sob condição”. O recorte vale apenas para benefícios regularmente concedidos até 31 de maio de 2023.

Como a proposta traz a substituição do ICMS e do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) ‒ este último cobrado pelos municípios ‒ por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), sem margem de manobra para que estados escolham setores para conceder benefícios, os entes perdem um instrumento político usado na busca por atrair empresas em troca de incentivos pouco eficientes para a economia.

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É o que se convencionou chamar de “guerra fiscal” ‒ uma disputa na qual estados oferecem descontos de alíquota e vantagens tributárias a setores específicos que nem sempre têm incentivos pela lógica operacional para se instalarem lá.

Nesse sistema, empresas cada vez mais decidem onde realizar suas operações baseadas em vantagens tributárias em vez de levar em conta vantagens competitivas relacionadas aos seus próprios negócios, como a proximidade de mercado consumidor, infraestrutura adequada e disponibilidade de matéria-prima e mão de obra qualificada. O resultado é menos eficiência para a economia e dificuldade em competir no cenário internacional.

A matéria votada pelos deputados cria um período de transição em que os impostos existentes gradualmente deixam de existir e são substituídos pelo IBS e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) ‒ destinada aos tributos federais.

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Quanto mais avançado estiver o momento da troca de sistema tributário, menor será a potência do ICMS (e, portanto, maior o peso do novo tributo). Como consequência, menor também passaria a ser a força de benefícios fiscais concedidos nos últimos anos. Para preservar durante a transição determinados incentivos criados, convalidados por lei complementar aprovada pelo Congresso Nacional, decidiu-se pela instituição do fundo.

A PEC prevê aportes da União ao fundo compensatório durante oito anos, atualizados pela variação acumulada do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE). Eis os valores estipulados:

1) R$ 8 bilhões em 2025;

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2) R$ 16 bilhões em 2026;

3) R$ 24 bilhões em 2027;

4) R$ 32 bilhões em 2028;

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5) R$ 32 bilhões em 2029;

6) R$ 24 bilhões em 2030;

7) R$ 16 bilhões em 2031;

8) R$ 8 bilhões em 2032.

Ou seja, a expectativa inicial é que o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiros-fiscais do ICMS some um montante de R$ 160 bilhões ao longo de oito anos ‒ o que corresponde a pouco menos de 70% do volume de incentivos previstos pelos estados apenas em 2023. Mas o cálculo também precisa considerar as regras de transição previstas no texto (como será mostrado a seguir).

Apesar das previsões específicas de aportes, o texto diz que a União deverá garantir complementações em caso de insuficiência de recursos para a compensação dos incentivos concedidos originalmente via ICMS. O dispositivo é visto por especialistas como uma das principais fontes de incerteza na mensuração do custo total da reforma tributária para o governo federal.

Uma “guerra” financiada

Um dos primeiros a apontar para o risco foi o especialista em contas públicas Felipe Salto, economista-chefe da corretora Warren Rena. Em entrevista concedida ao InfoMoney há quatro semanas, ele alertou que a proposta desenhada pelos deputados poderia prolongar a “guerra fiscal” ‒ e desta vez bancada por recursos da União.

Para ele, há ainda brechas para que estados aproveitem a compensação do estoque de benefícios concedidos durante a transição para dar novos incentivos no período. E o fato de o ICMS ser extinto apenas daqui a 10 anos poderia gerar riscos de prorrogações indesejadas, tornando o processo de implementação da reforma tributária ainda mais incerto e arriscado. Na sua visão, a fotografia no futuro, caso o tributo estadual seja preservado por mais uma década, seria de uma disputa mais intensa entre os entes e com governadores ainda mais dependentes dos instrumentos de incentivos fiscais.

“Da forma como está, o texto que saiu da Câmara dos Deputados vai obrigar a União a substituir de modo ilimitado essa montanha de benefícios vigentes, mesmo o Fundo de Compensação de Incentivos tendo um máximo previsto para 2028 e 2029. Não é um desenho correto. É preciso uma transição curta, que comece logo e que imponha, sim, custos de curto prazo para que se coletem benefícios a médio e a longo prazo”, defende.

“Essa história de dizer que ‘ninguém perde’ é um péssimo sinal. Não há reforma boa onde todos mantenham o estado das coisas como bem entendem. Essa questão dos benefícios é a mais gritante. Vai ter fundo com dinheiro da viúva de sempre, a União, mas o ICMS vai remanescer com alíquota enorme até dezembro de 2032. Ora, alguém acredita que, com alíquotas correspondentes a 60% das atuais (inclusive as interestaduais, que ensejam benefícios fiscais), o ICMS será extinto e a guerra fiscal acabará, mesmo no longínquo 2033? O Senado precisará corrigir isso com urgência”, prossegue.

O cálculo da transição

Para estimar o custo das compensações para o governo federal, é importante entender como funcionaria o período de transição, já que os recursos da União teriam que bancar somente a potência perdida com incentivos fiscais que atendam os requisitos previstos na PEC.

O substitutivo aprovado pelos deputados diz que, de 2029 a 2032, as alíquotas de ICMS e ISS cairão anualmente à razão de 1/10 em relação ao que está fixado nas respectivas legislações dos entes subnacionais. Isso significa que, apenas daqui a seis anos os recursos do fundo compensatório começariam a ser usados, num momento em que ele já teria um estoque de R$ 112 bilhões.

Tendo como base o montante fixo de R$ 232,49 bilhões (que são as renúncias fiscais projetada pelos estados em 2023) e desconsiderando os efeitos da inflação (que impacta tanto o estoque dos gastos tributários quanto os aportes anuais da União ao fundo), o governo teria que compensar R$ 23,25 bilhões em 2029, R$ 46,50 bilhões em 2030, R$ 69,75 bilhões em 2031 e R$ 92,99 bilhões em 2032.

Nesta conta simplificada, o montante necessário para compensação na transição somaria R$ 232,49 bilhões ‒ uma diferença de R$ 72,49 bilhões em relação ao que está previsto na PEC. O Ministério da Fazenda contesta a avaliação de que os recursos seriam insuficientes, mas até o momento não apresentou estimativas para como o fundo se comportaria ao longo do tempo.

Diretor institucional do Comitê Nacional dos Secretários de Estado da Fazenda (Comsefaz), André Horta diz que é unânime entre os entes subnacionais a avaliação de que os recursos estabelecidos para o fundo são insuficientes para bancar toda a compensação prevista na proposta, mas o colegiado tampouco apresentou um cálculo.

Ele destaca que a sugestão da maioria dos secretários estaduais é que os valores fossem incorporados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, destinado a reduzir o abismo de condições que existem entre unidades federativas, e que cada governador pudesse decidir a forma como utilizaria os recursos destinados ao seu estado, seja bancando incentivos fiscais ou com investimentos em infraestrutura.

Em entrevista concedida ao InfoMoney no início do mês, o economista Bernard Appy, secretário extraordinário de reforma tributária do Ministério da Fazenda, disse que a avaliação da pasta é que o montante previsto na proposta seria suficiente para cumprir os objetivos estabelecidos.

“O risco de faltar recursos para o fundo é muito, muito pequeno. O mais provável é que sobrem recursos no fundo, que seriam depois distribuídos para o Fundo de Desenvolvimento Regional”, disse.

“Obviamente, a União não entrou nesse aporte de recursos do fundo de forma irresponsável. A avaliação é que o valor que está hoje alocado para o fundo muito provavelmente será suficiente para cobrir o custo. Mas esse é um tema que pode eventualmente ser aperfeiçoado no Senado Federal”, completou.

Após a conclusão do levantamento sobre a projeção das secretarias estaduais de Fazenda e Planejamento para o volume de recursos em benefícios fiscais concedidos via ICMS, esta reportagem solicitou posicionamento do Ministério da Fazenda sobre os números, a discrepância de estimativas e o que poderia ser feito pela pasta para contornar possíveis problemas com a necessidade de aporte maior do que o esperado.

Em nota, a pasta respondeu: “O Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, conforme previsto na PEC 45/2019, se aplica apenas a benefícios industriais onerosos concedidos regularmente até 31 de maio de 2023 por prazo certo e sob condição, ou seja não é para compensar qualquer tipo de benefício concedido pelos estados, mas apenas parte dos benefícios. Adicionalmente, a redução dos benefícios será graduada a 10% ao ano, em linha com a redução do ICMS de 2029 a 2032, o que significa que o montante a ser compensado será de 10% dos benefícios em 2029, crescendo até 40% dos benefícios em 2032”.

Especialistas consultados pelo InfoMoney, no entanto, destacam que o texto da PEC aprovada não faz um recorte específico voltado aos benefícios industriais ‒ abrindo margem para mais incertezas.

Para Salto, também gera dúvida o fato de os aportes para o fundo começarem em 2025 ‒ quatro anos antes da primeira vez que será utilizado. Ele questiona, ainda, o motivo de o texto não ser mais claro sobre a proibição de novas concessões e a delimitação dos incentivos contemplados.

Na avaliação do economista Tiago Sbardelotto, da XP, a regra de compensação de benefícios do ICMS estabelecida pela proposta é “complexa” e a conta “difícil de fechar” para a União. O risco, segundo ele, é haver uma disputa sobre o que será de fato pago pelo governo federal.

“Minha leitura é que isso vai ser um possível ponto de novo conflito entre União e estados. Parece que vamos rumar para algo parecido com a Lei Kandir, com o governo depois tendo que reconhecer e pagar uma compensação aos estados”, observa.

As chances de tal cenário se confirmar no futuro, na avaliação de Salto, são “enormes”. “Uma das promessas que os idealizadores da PEC 45/2019 espalham é a de que o contencioso diminuirá. Ao contrário, tende a aumentar, se o Senado não corrigir o texto que saiu da Câmara em muitos pontos. Neste tópico, em particular, é quase líquido e certo que haverá muitos questionamentos”, diz.

“Já há governadores sinalizando ao Supremo Tribunal Federal, outros que não se satisfizeram com o volume de recursos e outros ainda que não querem saber da perpetuação dos benefícios por tanto tempo. A arbitragem, neste caso, deveria ser da União. Os conflitos federativos não serão resolvidos por geração espontânea ou mesmo pela junção, num balaio de gatos, de todos esses interesses”, pontua.

“É o que em economia chamamos de Teorema da Impossibilidade de Arrow. Se todos os interesses individuais são contemplados, o resultado agregado, para o coletivo, tenderá a ser muito ruim. Por isso a política é tão fundamental e por isso o Executivo, como aconteceu em todos os casos de boas reformas aprovadas pelo Congresso, tem de exercer um papel diferente do que está exercendo. Esse ‘oba oba’ de aprovar qualquer coisa é muito ruim. No Senado, sou otimista, não vai ser assim”, aposta.

O preço da reforma

Considerando as projeções de renúncias fiscais dos estados e o texto aprovado pelos deputados, Sbardelotto avalia que é possível que a União tenha que aportar até R$ 100 bilhões a mais para honrar os compromissos ‒ o que pode começar a tornar o custo da reforma tributária muito alto para o governo.

O economista explica que, em linhas gerais, é natural que a União assuma compromissos para viabilizar politicamente a aprovação da reforma tributária. Mas os custos devem respeitar projeções de ganhos para a economia com o novo sistema tributário.

“Há várias discussões sobre o potencial da reforma em termos de crescimento econômico. Alguns estudos falam entre 0,2% e 1,2%. Para o governo fechar a conta hoje, para conseguir pagar esses fundos a que se comprometeu e não ter prejuízo, nossa estimativa é que a economia teria que crescer pelo menos 0,5% a mais a partir de 2027. Para o ganho de arrecadação federal compensar a despesa adicional com esses fundos. Se crescer menos que isso, o governo terá prejuízo”, diz.

“Existe uma conta que está dada, que o governo vai ter que se comprometer. E existe uma incerteza do outro lado, que é se a reforma vai trazer o crescimento esperado. Se a conta aumentar e, em vez de R$ 40 bilhões mais R$ 32 bilhões [anuais com os fundos previstos na PEC], tivermos algo em torno de R$ 70 bilhões a R$ 100 bilhões, seria necessário mais crescimento, de cerca de 0,7% a 0,8% para compensar”, estima o especialista.

Há uma expectativa de que o debate federativo e seus desdobramentos ganhem mais espaço durante a tramitação da PEC no Senado Federal. O presidente da casa legislativa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), espera que o texto seja votado em plenário até outubro, permitindo que a Câmara dos Deputados analise eventuais modificações na sequência, de modo que a promulgação ocorra ainda em 2023.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.