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Desenhada em contornos dramáticos, com idas e vindas ao longo da última quinta-feira (31), a novela protagonizada pelo agora ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB) em torno da decisão de abdicar ou não da candidatura à Presidência da República nas eleições de outubro movimentou o cenário político e simbolizou o tamanho da desagregação interna do PSDB em nível nacional.
Rejeitado por setores importantes do partido que defendem a candidatura do ex-governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, ao Planalto, Doria teria sinalizado a aliados que poderia desistir da disputa presidencial e permanecer à frente do governo do estado. Após muitas negociações, o tucano obteve da cúpula da legenda uma garantia formal de que o PSDB apoia seu nome para o pleito nacional. Com isso, deixou a cadeira de governador e transmitiu o cargo ao vice, Rodrigo Garcia (PSDB), que concorrerá a um novo mandato no Palácio dos Bandeirantes.
No comando do estado mais populoso do país desde 1995, o PSDB chega à disputa eleitoral deste ano fragilizado, dividido e ameaçado de perder uma hegemonia de 27 anos, de acordo com cientistas políticos e analistas ouvidos pela reportagem do InfoMoney. “O cenário de alternância de poder em São Paulo é o mais provável neste momento, por uma combinação de variáveis que me parecem estar associadas à política nacional. São Paulo é um estado que se conecta bastante com a estrutura da competição presidencial”, afirma Rafael Cortez, sócio da Tendências Consultoria.
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“Houve uma perda de competitividade do PSDB em dimensão nacional. Não é mais o partido que organiza o campo da centro-direita. O PSDB perdeu essa hegemonia, o que o afetou em sua capacidade de mobilizar apoio político. Combinando todos esses elementos, temos um cenário de troca de governo no estado”, avalia.
Fundado em 1988 a partir de uma dissidência do PMDB, o PSDB chegou ao poder em São Paulo com Mário Covas, eleito governador em 1994 – na esteira do Plano Real – e reeleito em 1998. Em 2001, com a morte de Covas, o então vice Geraldo Alckmin assumiu o cargo e completou o mandato, disputando a reeleição no ano seguinte. Vitorioso em 2002, seria sucedido por José Serra (PSDB) em 2006.
Em 2010, Alckmin venceu mais uma vez e, em 2014, conquistou seu quarto mandato como governador. Em 2018, Doria – que havia sido eleito prefeito da capital dois anos antes – disputou e venceu a eleição para o governo paulista e manteve a supremacia tucana no estado. O custo, no entanto, foi alto demais.
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“O que você tem hoje não é mais exatamente o PSDB. O partido foi se liquefazendo, se desmanchando aos poucos”, afirma o cientista político Carlos Melo, professor do Insper. “Doria teve uma participação importante nesse reposicionamento do PSDB, tirando aquela feição de um partido mais progressista, social-democrata. Aos poucos, o PSDB foi perdendo essa cara.”
Para Vítor Oliveira, cientista político e diretor da Pulso Público, a ascensão de Doria ao comando da legenda em São Paulo marca um ponto de “ruptura” com o modus operandi tucano. “A despeito de ser o mesmo partido que vem se elegendo consecutivamente desde 1994, não é exatamente o mesmo grupo político, especialmente desde 2018”, destaca.
“Até então, mudava o comando da tropa, mas o PSDB mantinha uma certa coesão. Isso foi alterado com o ‘Bolsodoria’ [slogan pelo qual ficou conhecido o apoio de Doria ao então candidato à Presidência Jair Bolsonaro no segundo turno].”
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Azuis e vermelhos
Mergulhado em suas próprias divisões internas, o PSDB sabe que terá uma eleição difícil pela frente – talvez a mais complicada para o partido nas últimas décadas. “A campanha de 1998 foi muito dura para o Covas, que foi aos trancos e barrancos para o segundo turno e derrotou o [Paulo] Maluf, conseguindo uma virada na reta final”, relembra Oliveira. “Desde então, houve eleições relativamente fáceis para o partido. Esta de 2022, provavelmente, não será”, projeta o cientista político.
Historicamente, a disputa eleitoral gira em torno de dois polos: o azul e o vermelho, grupos formados respectivamente por conservadores, de um lado, e progressistas, do outro. “Não é uma questão específica do estado de São Paulo. Toda eleição majoritária uninominal, que é o sistema que usamos para eleger prefeitos, governadores e o presidente da República, conduz a uma bipolarização”, afirma Oliveira.
No caso da eleição de São Paulo, o polo vermelho parece restrito ao ex-prefeito e ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT) e ao ex-governador Márcio França (PSB). Do lado azul, Rodrigo Garcia e o ex-ministro da Infraestrutura Tarcísio Gomes de Freitas (Republicanos), apoiado por Bolsonaro, devem brigar por uma vaga no segundo turno.
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Segundo a última pesquisa do Ipespe, encomendada pela XP Inc., Haddad larga à frente na corrida eleitoral, com 28% das intenções de voto no cenário estimulado – dez pontos percentuais de vantagem sobre França (18%). Tarcísio aparece com 10%, e Garcia, com 5%. No dia 28 de março, um levantamento do Real Time Big Data também mostrava Haddad isolado na liderança, com 27%, seguido por França e Tarcísio (ambos com 14%). Garcia tinha 6%. Os demais candidatos que pontuaram foram Renata Abreu (Podemos), com 2%; além de Vinicius Poit (Novo), Abraham Weintraub (Brasil 35) e Felício Ramuth (PSD), todos com 1%.
“Provavelmente, teremos Haddad favorecido por uma onda lulista que tende a ser suficiente para colocá-lo no segundo turno”, projeta Melo. Cortez também aponta o candidato do PT como o favorito para representar o lado vermelho no segundo turno, deixando França para trás. “A tendência é Haddad ser o nome mais competitivo da esquerda, possivelmente puxado por um bom desempenho da candidatura de Lula na disputa presidencial. Quem começa na frente tende a receber o voto útil”, explica.
Um palanque para Bolsonaro
De acordo com os analistas, o enfraquecimento do PSDB em nível nacional pode se refletir na eleição em São Paulo e tornar a missão de Rodrigo Garcia ainda mais ingrata. Para chegar ao segundo turno, o agora governador paulista dependerá, sobretudo, da força da máquina estadual. Por outro lado, terá como adversário o nome apoiado pelo governo federal.
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“Bolsonaro já fez muito pela candidatura do Tarcísio nesses últimos três anos e meio, promovendo o nome do ministro. Tarcísio é uma espécie de bolsonarismo ‘higienizado’, sem a retórica virulenta e que não está envolvido em polêmicas”, analisa Oliveira. “Ele pode ser mais palatável até para eleitores que, de certa forma, não aprovam o governo Bolsonaro.”
“É muito provável que Bolsonaro tenha em São Paulo o mesmo apoio que tem no país, de cerca de 25% a 30% do eleitorado. Se o presidente transferir esse apoio, Tarcísio pode ser muito competitivo”, corrobora Carlos Melo.
Para Cortez, a candidatura do ex-ministro da Infraestrutura é reflexo direto da fragilidade tucana. “Essa perda de hegemonia do PSDB no plano nacional está expressa na entrada do candidato bolsonarista em São Paulo, gerando competição dentro da centro-direita”, afirma.
A forte rejeição a João Doria é outro empecilho para o avanço de Garcia na corrida eleitoral. “Por mais que Doria tenha agido corretamente em várias áreas, como concretamente no caso das vacinas, se transformou em uma figura controversa. E essa figura controversa, hoje, é carregada para a candidatura do PSDB”, analisa Melo. “Rodrigo Garcia [que se filiou no ano passado ao PSDB, oriundo do DEM] não é identificado com o partido e carrega nas costas toda a controvérsia em torno do Doria. É uma grande desvantagem.”
Fora do páreo
Até o momento, entre os principais nomes que apresentaram suas pré-candidaturas ao governo de São Paulo, dois acabaram desistindo da disputa. Guilherme Boulos (PSOL), que chegou ao segundo turno da eleição na capital paulista em 2020 (perdeu para o então prefeito Bruno Covas, do PSDB), decidiu apoiar Fernando Haddad em uma costura política que deve lhe garantir o apoio do PT à prefeitura de São Paulo em 2024.
“Boulos chegou ao segundo turno em 2020, foi bem, mas já perdeu a eleição correndo sozinho”, diz Vítor Oliveira. “A chance dele talvez seja majorada em função de um acordo com o PT, recebendo apoio, em 2024, do eventual governador petista. Ele sabe que pode tomar uma rasteira, mas o ‘não’ ele já tem. Não tem muito a perder e tem bastante a ganhar”, afirma.
No campo mais à direita, Arthur do Val, integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) conhecido como Mamãe Falei nas redes sociais, se viu obrigado a renunciar à candidatura depois que vazaram áudios nos quais faz afirmações ofensivas e machistas depreciando as mulheres ucranianas – ele viajou ao país sob a alegação de que gostaria de ajudar a população local no conflito com a Rússia.
Do Val, que se desfiliou do Podemos e migrou para o União Brasil, é alvo de pedidos de cassação na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Em 2020, ele recebeu mais de 500 mil votos (quase 10%) na disputa pela prefeitura da capital paulista e terminou em quinto lugar.
“O caso do Boulos é mais relevante que o do Arthur do Val”, avalia Carlos Melo. “A retirada da candidatura do Boulos unifica o campo que vai da centro-esquerda à esquerda. Boulos poderia tirar algo em torno de 5% do Haddad, o que talvez deixasse o petista fora do segundo turno”, explica. “São duas desistências absolutamente diferentes. Uma se deu pela via da articulação, por uma engenharia política. A outra aconteceu por causa de uma lambança, de um tiro no pé terrível, um fato novo e inusitado. Não dá para colocar no mesmo plano.”