Guilherme Mello, economista de Lula, defende novo arcabouço fiscal, mas não descarta limite de despesas

Em entrevista, economista fala sobre situação fiscal do país, reforma tributária, Banco Central, Petrobras, programas sociais e meio ambiente

Marcos Mortari

Publicidade

A recuperação da credibilidade, da previsibilidade e da transparência do arcabouço fiscal brasileiro, após sucessivas alterações na regra do teto de gastos e do avanço do chamado “orçamento secreto”, será tarefa inescapável de quem quer que seja o Presidente da República consagrado pelas urnas em outubro.

Esta é a avaliação do economista Guilherme Mello, membro da comissão de redação do programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele participou da série de sabatinas organizada pelo InfoMoney com os assessores econômicos dos presidenciáveis.

Foram convidados representantes das campanhas dos seis candidatos ao Palácio do Planalto que tiveram ao menos 1% das intenções de voto em pesquisa realizada pelo Ipec entre os dias 9 e 11 de setembro. O levantamento está registrado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sob o protocolo BR-01390/2022.

Continua depois da publicidade

São eles: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Jair Bolsonaro (PL), Ciro Gomes (PDT), Simone Tebet (MDB), Soraya Thronicke (União Brasil) e Felipe D’Avila (Novo). A campanha de Bolsonaro foi a única que não designou representante para falar sobre as propostas do candidato.

Durante a entrevista, Mello criticou o teto de gastos, regra fiscal criada em 2016, que, para frear uma trajetória crescente de gastos públicos, limitou a evolução de despesas em um exercício à inflação acumulada no ano anterior. Para ele, o controle se deu às custas de pesados cortes em investimentos públicos e em despesas na área da Educação.

O economista, no entanto, culpou o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ministro Paulo Guedes (Economia) por violar a regra fiscal. “Foi ele (Guedes) que sistematicamente violou e alterou a regra que supostamente defendia. E o fez de maneira oportunista e eleitoral. Ele acabou com a credibilidade do nosso arcabouço fiscal. Hoje ninguém mais acredita não só no teto, mas no conjunto das regras fiscais brasileiras, e isso cria um cenário de imprevisibilidade”, disse.

Continua depois da publicidade

Questionado sobre os marcos fiscais que seriam implementados por Lula em um eventual novo governo, o economista disse que há exemplos internacionais positivos de regras que estabelecem metas de resultado primário, limite de dívida ou até que restringem gastos públicos. Segundo ele, não há nada descartado pela campanha.

“Tendo acesso aos dados e conhecimento de qual é o novo parlamento, em diálogo com a sociedade, o [eventual] governo [Lula] vai propor um desenho específico de regra ou um conjunto de regras para nortear a política fiscal, seguindo essas características. Pode ser uma regra de gastos, pode ser uma regra de resultado? O mais importante não é isso na prática”, afirmou.

A entrevista foi concedida na última quarta-feira (21), dois dias após Lula obter apoio formal de ex-presidenciáveis, incluindo Henrique Meirelles (União Brasil), que disputou a última eleição presidencial como candidato do governo Michel Temer (MDB).

Continua depois da publicidade

Durante a conversa, Mello disse que Lula respeitaria a autonomia do Banco Central e que adotaria medidas para contribuir no combate à inflação, como a criação de um estoque regulador de alimentos, a ser utilizado em situações de choques de oferta, e uma mudança na política de preços dos combustíveis adotada pela Petrobras – embora a fórmula também não esteja definida. Ele também defendeu que a estatal seja usada como empresa estratégica na transição energética do país.

O economista também falou sobre a proposta de reforma tributária da campanha, da promessa de retomar a política de valorização do salário mínimo, programas sociais para combater a fome e a desigualdade, entre outros assuntos.

Veja abaixo os principais trechos da sabatina e assista, na íntegra, pelo player acima, ou clicando aqui.

Continua depois da publicidade


InfoMoney: O ex-presidente Lula construiu uma ampla coalizão para essas eleições. Trouxe para vice o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), um adversário histórico. Uniu sindicatos, juntou 10 partidos, trouxe Marina Silva (Rede), com quem havia trocado duros ataques no passado, e diversos ex-presidenciáveis, incluindo Henrique Meirelles. Os significados políticos da aliança são claros. E do ponto de vista econômico? Quais concessões o PT fará?

Guilherme Mello: O primeiro significado é a união de boa parte das forças políticas relevantes ao redor de um projeto de resgate do Brasil e de preservação da democracia, que tem sido sistematicamente ameaçada. É também um reconhecimento da liderança política e social de Lula, que foi presidente por duas vezes e o mais bem avaliado da história. Essa unidade representa muito do que o país vive hoje, no sentido de uma união para combater um projeto autoritário, que fracassou na economia e que ataca as instituições e a população recorrentemente em vários setores.

Isso tem implicações inclusive sobre a governabilidade. Nunca tivemos uma coalizão tão ampla e tão forte de partidos ao redor de um programa. A candidatura [de Lula] representa a retomada do diálogo com diferentes setores da sociedade. Nós fizemos mais de 60 mesas de diálogo e continuamos fazendo. É uma nova forma de pensar, de ver a política, de construir um programa.

Continua depois da publicidade

IM: A campanha de Lula já afirmou algumas vezes que pretende revogar o teto de gastos, regra que já vem sendo driblada em diversas circunstâncias. Muitos economistas argumentam que é necessário um novo arcabouço fiscal para o país. Quais seriam os marcos fiscais que norteariam um eventual governo Lula? O que viria no lugar do teto?

GM: Apesar de o PT ter sido contra o teto e ter críticas que no final se provaram verdadeiras − como a de que a regra esmagaria o investimento público (hoje temos o menor nível da história) e a de que isso prejudicaria os recursos para a Educação (hoje temos um investimento muito menor na área do que alguns anos atrás) −, é importante dizer que quem acabou com a credibilidade do teto de gastos foi o governo Bolsonaro, foi Paulo Guedes. Foi ele que sistematicamente violou e alterou a regra que supostamente defendia. E o fez de maneira oportunista e eleitoral. Ele acabou com a credibilidade do nosso arcabouço fiscal.

Hoje ninguém mais acredita não só no teto, mas no conjunto das regras fiscais brasileiras, e isso cria um cenário de imprevisibilidade. Precisamos recuperar a credibilidade, a previsibilidade e a transparência do arcabouço fiscal. Porque não é só uma perda de credibilidade, é também uma perda de transparência do Orçamento público, quando há praticamente R$ 20 bilhões em orçamento secreto para o ano que vem, um gasto de muito mais difícil acompanhamento, sem planejamento.

O que nós estamos colocando nas diretrizes programáticas? Quais são as principais características de um arcabouço fiscal que acreditamos que seja capaz de recuperar a credibilidade do Brasil, a previsibilidade da política fiscal e a transparência do Orçamento? Ele tem que ser flexível, anticíclico (tem que ser um conjunto de regras que atenue a volatilidade do nível de atividade econômica) e priorizar os gastos de boa qualidade. Gastos que gerem emprego e renda, que dialoguem com a transição ecológica, com a transição ambiental e investimentos que dialoguem com o aumento da produtividade.

Outra característica é a necessidade de um acompanhamento do gasto público, para avaliar constantemente sua adequação e efetividade. E, caso aquela política pública se mostre pouco efetiva, ser possível fazer as correções a partir de um diagnóstico bem-feito. Por exemplo: o Auxílio Brasil, programa [de transferência de renda] criado pelo atual governo, tem um problema de desenho, porque um homem solteiro recebe o mesmo valor que uma mulher com 3 filhos. É óbvio que há uma injustiça aqui. Então, não é uma questão de acabar com o programa, mas de melhorar o desenho, para ele se tornar mais efetivo no objetivo de combater a pobreza e a fome e garantir um nível de cidadania justo a todos os brasileiros e brasileiras.

IM: Qual vai ser a meta fiscal? Qual será o parâmetro usado? Teremos apenas o resultado primário ou haverá algo no lugar do teto de gastos?

GM: Nossa pesquisa demonstrou que existem regras fiscais que funcionam em diversos formatos. Há regras que limitam o gasto público e que são boas, mas também há outras ruins, como é o caso da brasileira. Existem boas regras de resultado primário ou nominal, mas também existem regras de resultado que não funcionam e foram abandonadas ao longo do caminho.

Ainda não conhecemos a real situação fiscal do ano que vem, porque a cada dia o governo inclui uma nova herança negativa do ponto de vista fiscal para tentar viabilizar a eleição de Bolsonaro. Não temos clareza do cenário fiscal do ano que vem. Mais do que isso, não temos clareza de qual será o novo parlamento, onde as mudanças no arcabouço fiscal terão de ser negociadas.

Mais importante para nós do que falar se vai ser uma regra de gasto, de resultado ou de dívida, é apontarmos quais são os pilares, as características, os princípios norteadores da nova regra. Tendo acesso aos dados e conhecimento de qual é o novo parlamento, em diálogo com a sociedade, o [eventual] governo [Lula] vai propor um desenho específico de regra ou um conjunto de regras para nortear a política fiscal, seguindo essas características. Pode ser uma regra de gastos, pode ser uma regra de resultado? O mais importante não é isso na prática.

IM: Nada está descartado?

GM: Não há nada descartado. O mais importante é que seja uma regra crível, previsível, transparente, negociada e acordada politicamente entre os atores relevantes e que carregue consigo essas características, esses princípios de uma boa regra fiscal, que nós não inventamos, encontramos na literatura − inclusive na literatura do FMI − e na experiência internacional.

IM: Sinalizações de descontrole fiscal podem levar o Banco Central a adotar uma política mais agressiva no combate à inflação, o que sempre penaliza os mais pobres. O mandato de Roberto Campos Neto vai até dezembro de 2024. A autonomia do BC será respeitada? Haverá alguma modificação na proposta aprovada durante o governo Bolsonaro?

GM: Não. O presidente Lula já disse que vai manter, até o final do mandato, o atual presidente do Banco Central e não vai alterar a institucionalidade que rege o funcionamento do BC. É sempre bom lembrar que Henrique Meirelles, candidato [à Presidência da República] em 2018 e que agora declarou apoio ao presidente Lula, teve total autonomia durante sua gestão [como presidente do Banco Central] para conduzir a política monetária. Ele teve tanta autonomia que, às vésperas da crise de 2008, o Brasil era o único país do mundo subindo a taxa de juros − o que depois se provou um equívoco. Mas, naquele momento, o BC, por motivos próprios, entendia que era preciso, e o presidente Lula não interferiu.

Evidentemente que a autonomia do Banco Central tem que ser respeitada, mas isso não impede que o presidente eleito vá dialogar com o presidente do BC e tente encontrar convergências para alcançar os objetivos previstos em lei, de combate à carestia e de fazer isso com o maior nível possível de emprego − também objetivos do governo federal. Para Lula, o combate à carestia é uma prioridade, porque o aumento do preço dos alimentos afeta a vida dos mais pobres.

O que estamos discutindo é como o governo federal pode reconstruir e recuperar instrumentos que podem colaborar no combate à carestia. A inflação de alimentos continua altíssima, e as pessoas sentem isso no mercado. O Brasil hoje não tem mais estoque regulador de alimentos, ele tem uma Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) que só existe no papel. Ela foi completamente desmontada, acabaram com os estoques reguladores, que são um instrumento importante de segurança e soberania alimentar, mas também de controle de choques de preços.

Outro exemplo é o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). O valor da merenda escolar foi congelado por tanto tempo e a inflação de alimentos foi tão alta, que as escolas substituíram arroz, feijão, mandioca e carne por biscoito e suco em pó. Isso obviamente afeta a alimentação e a educação das crianças, mas também o pequeno produtor de alimentos que vendia para as escolas. Não à toa hoje estamos no menor nível de área plantada de arroz, feijão e mandioca da história, que são fundamentalmente a base da alimentação do povo brasileiro.

Precisamos recuperar essas políticas públicas, a Conab, o PNAE, as compras públicas, o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o programa de crédito ao pequeno produtor, para recuperar a segurança e a soberania alimentar, a distribuição de alimentos e combater a fome − que existe, sim, e é grande no Brasil – e para ter um instrumento para amenizar choques de preços. Nós não controlamos uma quebra de safra ou um choque de preços internacionais, mas, se temos os instrumentos corretos, um estoque e uma produção robusta, é possível minimizar esses choques e reduzir os preços. Com isso, você combate a carestia e contribui com o BC.

Isso também vale para combustíveis e outros preços, onde o governo pode recuperar instrumentos que podem colaborar com o BC na missão. O grande desafio é combater a inflação sem aumentar desemprego e gerar recessão.

IM: Lula já criticou diversas vezes o Preço de Paridade Internacional (PPI), adotado pela Petrobras. Qual é a proposta da campanha?

GM: Este é mais um caso de múltiplos instrumentos possíveis. O Brasil é um grande produtor de petróleo, produz todo o petróleo que, em tese, consome e 70% dos derivados que consome. Como grande produtor, não deve se comportar como um país que não produz e que não tem uma empresa de energia.

Há vários instrumentos [possíveis]. No caso americano, por exemplo, eles fazem estoque regulador. Não acho que seja o caso brasileiro. Podemos discutir um fundo de estabilização de preços ou até uma mudança no PPI. Os preços internacionais do petróleo são uma referência, mas quando você tem uma empresa articulada, que atua nos diversos setores da cadeia de petróleo e gás, é possível gerir seus custos e receitas de forma a amenizar o impacto dos choques. O PPI transmite diretamente: o choque vem e ele é repassado ao consumidor. É possível construir instrumentos. Fundo de estabilização é um deles, mas existem outras possibilidades.

IM: Como a proposta relatada pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN)?

GM: É uma possibilidade, tem que ser discutida no Congresso. Tem que ver qual vai ser o novo Congresso e como vai estar a situação da Petrobras. Mas há duas coisas fundamentais e que estão acontecendo no mundo inteiro: 1) retomarmos o investimento em refino, para garantir um nível de soberania energética maior, dependermos menos da importação de combustíveis e, com isso, termos um espaço maior para gerir nossos custos domesticamente, sempre tendo o PPI como referência. É uma referência porque é um custo de oportunidade para a empresa (poderia estar vendendo por um preço maior), mas isso não quer dizer que é uma lei de ferro, que é inescapável. Inclusive, a Petrobras virou uma das maiores empresas de petróleo do mundo sem o PPI, e lucrava muito; 2) a Petrobras se transformar novamente em uma empresa de energia. O futuro das empresas de petróleo, inclusive as privadas, é se transformarem em empresas de energia que pesquisam novas fontes renováveis, novos combustíveis, os biocombustíveis. A Petrobras era líder nesse setor, ela pesquisava, inovava. Mas desde 2016, especialmente no governo Bolsonaro, foi abandonando essa tradição. É hora de a Petrobras voltar a pensar no seu futuro como empresa. E o futuro dela como empresa dialoga com a transição energética, com a transição ecológica e a pesquisa de novas fontes de energia e novos combustíveis.

IM: A reforma tributária é um ponto fundamental na agenda de provavelmente todos os candidatos. O programa de Lula não entra em detalhes, mas o senhor já manifestou simpatia com a ideia de simplificação proposta com o IVA, embora ressalte que a medida é insuficiente e defenda uma redução da carga sobre o consumo e maior tributação sobre a renda e o patrimônio. Do lado do IVA, qual é o melhor texto hoje em discussão? E, do lado de renda e patrimônio, quais os caminhos a serem seguidos?

GM – Precisamos ser muito pragmáticos. A boa reforma é aquela capaz de ser aprovada no parlamento e que dialogue com as características que desejamos para uma nova estrutura tributária. Temos que atacar a complexidade do sistema, principalmente daqueles tributos sobre o consumo. Essa simplificação não é apenas para facilitar o pagamento, mas para retirar características ruins do atual sistema. Há impostos que às vezes incidem em cascata, [nosso sistema] tem alíquotas diferenciadas até por produto, gera a chamada guerra fiscal entre os estados, onera a exportação e onera o investimento. Hoje, um carro de entrada elétrico paga mais tributo do que um carro de entrada a combustão. O sistema tributário brasileiro está dando incentivo para mantermos nossa frota a combustão e não fazer a transição para a frota elétrica, que é o futuro da indústria automobilística.

Há uma série de problemas na estrutura tributária que precisam ser resolvidos, e um projeto de reforma de IVA é fundamental. Mas a ideia de ter uma alíquota única é muito difícil, porque hoje o setor de serviços paga uma alíquota menor do que a indústria. E aí existe um problema, porque eles obviamente resistem a essa mudança. Então, é preciso negociar, criar excepcionalidades, tarifas diferenciadas por setor, por atividade. A PEC 110 avançou um pouco nesse sentido. Precisamos ver se é possível construir algum tipo de consenso sobre ela ou sobre outra proposta.

Mas não basta simplificar e ganhar competitividade. Outra característica que queremos mudar no sistema tributário brasileiro é a regressividade, o fato de que ele concentra renda, porque tem um peso de tributo sobre o consumo muito alto e um peso muito pequeno sobre a renda, em particular sobre as grandes rendas. Nosso objetivo é aumentar a tributação sobre as grandes rendas. A principal fonte das pessoas com renda muito alta é a distribuição de lucros e dividendos de suas empresas e investimentos – o que hoje é desonerado no Brasil. Não estou falando aqui em valores como R$ 5 mil, são grandes rendas. Temos que retomar essa tributação, rever a tabela do Imposto de Renda. Os governos do PT, em todos os anos, reajustaram a faixa de isenção. Desde 2016, não se ajusta a faixa de isenção, fazendo com que um trabalhador que ganha hoje 1,5 salário mínimo passe a pagar IR.

Também há algum ganho possível com tributação sobre patrimônio, em particular sobre as grandes heranças. Hoje, uma pessoa que deixa duas casinhas para seu filho paga uma alíquota de imposto sobre herança igual a quem deixa R$ 3 bilhões. Essa também pode ser uma fonte de receita para os estados, que perderam muito com a mudança no ICMS.

Defendemos a possibilidade de construirmos um novo sistema tributário, em que as grandes rendas e os grandes patrimônios sejam mais tributados, para que desoneremos a tributação sobre consumo e sobre folha de salários − principalmente sobre o primeiro emprego e empregos de um salário mínimo, que devem ser incentivados. O desenho exato vai depender do parlamento. O que importa é que seja uma proposta que respeite esses princípios e que seja passível de ser aprovada.

IM: Um mea culpa do presidente Lula sobre o governo Dilma Rousseff (PT) refere-se ao amplo e longo programa de desonerações. ­Qual vai ser o papel desta política em uma possível nova gestão? E os regimes especiais também serão observados nos ajustes, já que muitos contribuem na regressividade do sistema?

GM: O Brasil tem um volume expressivo de desonerações e isenções. Muitas não cumprem seu papel e não geram o benefício esperado originalmente. Evidentemente, é preciso fazer uma revisão, mas ela tem que vir em conjunto com a revisão do sistema tributário. Revisar pontualmente uma isenção ou outra não vai resolver o problema de fundo, que é a característica concentradora de renda, regressiva e que retira competitividade da economia brasileira.

A revisão de isenções, benefícios e regimes especiais é importante até para gerar mais equidade, justiça social e progressividade ao sistema. Mas não é possível fazer isso sem rever o conjunto. Se focar em uma desoneração pontual ou outra, vai ter um lobby daqui, outro dali, tira uma desoneração aqui, entra outra ali, e você não resolve.

Nosso objetivo é discutir o sistema tributário brasileiro em seu conjunto e remodelá-lo. Na remodelação, vamos rever regimes especiais, isenções, desonerações. Isso não quer dizer que não possa haver alíquotas diferenciadas, algum tipo de isenção, mas é preciso ter um objetivo e ver se o benefício fiscal está gerando resultado. Há muito incentivo cujo efeito para a sociedade não é avaliado.

IM: Outro ponto em discussão nas campanhas é a reforma administrativa. O que há de concreto na campanha de Lula em relação ao enxugamento da máquina e correção de distorções no setor público? É possível fazer uma reforma com riscos reduzidos de judicialização? Lula também tem indicado a recriação de ministérios. O senhor poderia comentar a respeito?

GM: Do ponto de vista fiscal, a criação de ministérios [tem impacto] praticamente nulo. Na verdade, há um conjunto de servidores que podem servir a 10 ou 30 ministérios. Depende de como você vai dividi-los. A questão dos ministérios precisa dialogar com os anseios e as demandas da sociedade. Não ter um ministério para a questão da igualdade racial e das mulheres não dialoga com a realidade da sociedade, porque esses temas são muito importantes. O Ministério do Planejamento e o Ministério da Indústria e Comércio [Exterior] foram engolidos pelo atual Ministério da Economia, o que se provou um grave equívoco. Inclusive, vejo que até o presidente Bolsonaro fala em recriar ministérios. Nem reduzir ministério economiza dinheiro, nem aumentar o número de pastas aumenta o nível de gasto. É uma escolha política de como você vai comunicar as prioridades do governo e organizar as pautas.

Quanto à reforma administrativa, o que temos discutido fundamentalmente é uma reforma do Estado. Quando se fala em reforma administrativa, as pessoas já pensam no viés fiscal: cortar gasto com pessoal. O que esse governo fez foi congelar gasto com o funcionalismo público. Há carreiras que estão sete anos sem reajuste, com toda essa inflação. E qual é o resultado? Os serviços públicos se deteriorando, mas, pior que isso, o que há é o desmonte de uma série de instituições responsáveis pela fiscalização e pelo acompanhamento. Basta ver a área ambiental: as instituições de controle, fiscalização e gestão ambiental estão completamente desmontadas.

Precisamos é transformar o Estado em algo mais eficiente e mais capaz. O foco é na valorização, no treinamento dos profissionais e que eles possam oferecer um serviço de melhor qualidade para a população. Como fazer isso? É preciso criar mesas de diálogo entre o governo e as carreiras para discutir, sim, remuneração, plano de carreira, mas também como melhorar a avaliação de desempenho, a oferta de serviços públicos e como treinar os profissionais para os desafios do futuro. O setor público também vai passar por um processo forte de digitalização, de informatização. Isso vai mudar a própria função dos trabalhadores ao longo dos próximos anos.

IM: Qual é o papel do desenvolvimento sustentável e da preservação dos nossos biomas no programa de governo de Lula? E o que há de medidas concretas para reduzir o desmatamento, viabilizar a transição energética e aproveitar as potencialidades do verde no Brasil?

GM: O meio ambiente é uma espécie de interruptor: ele pode ligar ou desligar o Brasil do mundo. Se não mudarmos nossa agenda ambiental, vamos continuar desligados do mundo e perdendo uma série de oportunidades de investimentos, inclusive de financiamento, que não vêm para o Brasil porque a agenda ambiental do atual governo é um desastre.

Precisamos reconstruir uma agenda ambiental e voltar a ser referência. Somos o país que mais reduziu o desmatamento no mundo, saindo de 24 mil km² em 2004 para 4 mil km² em 2014. Isso foi feito valorizando as instituições de controle e criando condições de desenvolvimento sustentável nos biomas. A questão ambiental não é só preservar, é desenvolver as regiões, criar oportunidades de trabalho, de auferir renda para as pessoas que moram ali, preservarem e desenvolverem, não destruírem e sobreviverem.

Hoje, a lógica de boa parte das pessoas que vivem nessas regiões de florestas e cerrado é: ‘eu tenho que destruir para sobreviver’. E existe um incentivo do governo para que essa destruição ocorra, inclusive liderada por organizações criminosas, milícias etc. Temos que mudar. É preciso um projeto de desenvolvimento sustentável. Para isso, precisamos recuperar as instituições de controle e fiscalização, o Ibama, a Funai, o ICMBio, mas também colocar a transição ecológica e a transição energética, o projeto de descarbonização da economia, como um horizonte de futuro que vai moldar as missões que o governo vai estabelecer e que vão articular os setores público e privado em um conjunto de investimentos em infraestrutura e em projetos para desenvolver as regiões de maneira sustentável.

Um pilar do nosso programa de desenvolvimento é a transição ecológica e a transição energética, entendidos como uma oportunidade enorme de desenvolver setores, gerar emprego, gerar desenvolvimento, e não só preservar.

IM: Hoje, 33 milhões de brasileiros passam fome e mais de 125 milhões vivem em situação de insegurança alimentar, segundo levantamento da rede Penssan. Estudos também indicam uma tendência de piora na desigualdade de renda no país desde 2015. Os dois assuntos são muito citados por Lula em seus discursos. Quais são as principais medidas para atacar esses problemas?

GM: Manter os R$ 600,00 [mensais de transferência de renda] é um compromisso do governo Lula. Mas precisamos redesenhar o programa. O Auxílio Brasil é um programa mal desenhado, porque gera injustiças. [Precisamos] Valorizar a primeira infância, pagando um adicional por filho, para que as mães com filhos tenham condições de sustentar e educar esses filhos, retomar os incentivos que existiam no Bolsa Família: a criança frequentar a escola, vacinar-se. Hoje, a cobertura da vacinação de poliomielite no Brasil caiu drasticamente, sendo que a paralisia infantil tem voltado, inclusive nos Estados Unidos.

Mas não é só redesenhar o programa de transferência de renda. O combate à pobreza e à fome tem que vir junto com a perspectiva de geração de empregos − e com salários decentes. É isso que vai realmente tirar as pessoas da pobreza e que tirou as pessoas da pobreza durante o governo Lula. Temos uma série de medidas, como a renegociação das dívidas das famílias através do programa Desenrola, para que elas saiam do cadastro negativo e voltem a ter acesso a crédito e consumir. Retomada de obras de infraestrutura que estão paradas, para gerar milhões de empregos ao redor do Brasil. Retomada do Minha Casa Minha Vida.

E saliento o salário mínimo forte. Sabemos que ele deixou de ser reajustado acima da inflação desde o governo Temer e hoje seu poder compra em relação à cesta básica é uma fração do que foi durante os governos Lula. O salário mínimo serve como uma espécie de farol dos rendimentos do trabalho. Quando é puxado para cima, não só as pessoas que ganham − seja no mercado de trabalho, seja com benefício social e aposentadoria − têm uma renda maior, vão consumir mais e as empresas vão aumentar produção, mas as pessoas que trabalham na economia informal também terão seus rendimentos aumentados.

Precisamos combinar um bom programa de transferência de renda e combate à pobreza, que sabemos fazer e já fizemos, com medidas para a geração de emprego, renda e retomada do crédito. Com emprego, as pessoas terão condição de sair da pobreza e superar a fome.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.