Lei brasileira não prevê tipificação de atos golpistas como terrorismo

Aprovada no âmbito dos megaeventos sediados no Brasil na década passada, legislação exclui motivações políticas em atos de terror social ou generalizado

Luís Filipe Pereira

Manifestantes bolsonaristas invadem o Congresso Nacional na cidade de Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023 (Foto: MATHEUS W ALVES/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO)
Manifestantes bolsonaristas invadem o Congresso Nacional na cidade de Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023 (Foto: MATHEUS W ALVES/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO)

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Inquéritos abertos pelo Supremo Tribunal Federal para investigar a invasão aos prédios considerados símbolos dos Três Poderes, em Brasília, apuram possível crime de terrorismo pelos vândalos que depredaram o patrimônio público. No entanto, a lei brasileira não prevê essa tipificação para atos cometidos por motivação política.

Desde o dia 8 de janeiro, mais de 1,4 mil pessoas foram presas por participação nos atos golpistas, em que vândalos invadiram as sedes do Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto, quebraram e furtaram obras de arte, reviraram áreas de convivência, danificaram o carpete com fezes e urina, quebraram vidraças e computadores, provocaram curto circuito e ativaram o sistema de combate a incêndio.

Por entender que os envolvidos tentaram romper a ordem institucional, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, decidiu pela prisão preventiva de 942 pessoas. No dia das invasões, o magistrado classificou os episódios como “desprezíveis ataques terroristas”.

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Além do crime de terrorismo, entre os delitos a serem apurados pelos inquéritos abertos pelo STF estão crimes de associação criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; tentativa de golpe de Estado; ameaça; perseguição e incitação ao crime.

Segundo o artigo 2º da Lei nº 13.260/16, “terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

Além do trecho acima, no pedido de investigação e apuração dos crimes como atos de terrorismo, Alexandre de Moraes cita os artigos 3º, 5º e 6º da Lei nº 13.260/16 – que dizem respeito à integração de organização terrorista, realização de atos preparatórios e o recebimento de valores para o planejamento das ações terroristas.

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Para o advogado Raul Abramo, especialista em direito penal do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados, a possível tipificação dos crimes como atos de terrorismo pode compreender uma diminuição das garantias processuais, com equiparação a crimes considerados hediondos e, consequentemente, um enquadramento em regimes diferenciados de processamento e maior rigor por parte do Estado. Tal medida surge como forma de evitar um possível “apaziguamento” futuro em relação à conduta dos golpistas.

“Tipificar como terrorismo é trazer a máxima gravidade que o Código Penal permite, ultrapassando a literalidade da legislação por haver um entendimento que as implicações são graves. Ainda que eu compreenda a gravidade, acredito que há uma atecnia para encaixar os crimes cometidos em Brasília como tal”, destacou.

Segundo o Código Penal, a pena para crime de terrorismo pode chegar a 30 anos de prisão. No caso de associação criminosa, a lei prevê até oito anos, pena máxima prevista também para quem cometer o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Para o crime de tentativa de golpe de estado, a pena pode chegar a dez anos de cadeia. Condenações por perseguição, ameaça ou incitação ao crime podem ter pena máxima de dois anos de reclusão.

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Segundo a advogada criminalista Emanuela de Araújo, do escritório AVSN Advogados Associados, e mestre em Direito Penal pela Universidad de Sevilla, sentimentos como espanto e indignação têm pautado a opinião pública e, consequentemente, podem ter influenciado as decisões do ministro Alexandre de Moraes em relação aos atos ocorridos em 8 de janeiro ao classificar as invasões como terrorismo.

“Quando houver uma sentença com transitado em julgado, ou seja, quando não couber nenhum tipo de recurso, acredito que não haverá qualquer condenação pela Lei de Terrorismo”, afirmou, já que “nas próprias denúncias da Procuradoria Geral da República não há delimitação para se enquadrar os crimes cometidos pelos vândalos em Brasília como terrorismo”.

O advogado Daniel Allan Burg, sócio do Burg Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal Econômico pela Escola de Direito do Brasil, defende o princípio da taxatividade, que preza pela precisão na aplicação da lei, afastando conceitos imprecisos.

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Segundo ele, as invasões e depredação do patrimônio público cometidos pelos golpistas em Brasília se encaixam nos crimes contra o Estado Democrático de Direito, e configuram como atentado à soberania.

“Se o mesmo ato, de invadir o Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto, tivesse sido cometido por motivo religioso, poderia ser tipificado como terrorismo. O bem jurídico tutelado pela conduta dos invasores dos prédios públicos é outro. A motivação foi política e isso é evidente”, explicou.

De acordo com o Ministério Público Federal, os denunciados pela PGR devem responder pelos crimes de associação criminosa armada; abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça com emprego de substância inflamável contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima; deterioração de patrimônio tombado.

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As investigações têm como foco autores intelectuais, financiadores e executores dos crimes que não foram presos em flagrante; deputados federais que teriam incitado os atos violentos; e também a apuração de responsabilidade de autoridades do Distrito Federal, que teriam sido deliberadamente omissas e facilitado as invasões aos prédios do Congresso Nacional, STF e Palácio do Planalto.

O InfoMoney procurou a assessoria de imprensa do STF para que o ministro Alexandre de Moraes pudesse se pronunciar sobre o enquadramento dos participantes dos atos golpistas na Lei de Terrorismo, e até a publicação desta reportagem não havia recebido retorno.

Contexto

Quando a Lei de Terrorismo foi aprovada, no âmbito dos megaeventos realizados na década de 2010 no País, e às vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a exclusão do enquadramento de manifestações políticas ao crime de terrorismo causou polêmica no Senado.

Na época, o então senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) – que defendia a clasificação de terrorismo político para quem atentasse contra instituições democráticas – destacou que, “em um Estado democrático de direito, as manifestações e reivindicações sociais, sejam elas coletivas ou individuais, não têm outra forma de serem realizadas senão de maneira pacífica e civilizada”.

Para outros parlamentares da época, a proposta poderia ser usada “para criminalizar movimentos sociais e vozes dissidentes”.

Os então senadores Antonio Carlos Valadares (PSB-PE), Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Lídice da Mata (PSB-BA), Humberto Costa (PT-PE) e Telmário Mota (PDT-RR) foram à tribuna para defender a exclusão do tipo penal de terrorismo para “pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”.