Lula abandonou frente ampla na economia e perde tempo com seu próprio “cercadinho”, diz Elena Landau

Economista vê presidente menos disposto a contrariar apoiadores e ceder no debate econômico, e diz que governo tem acumulado "turbulências desnecessárias"

Marcos Mortari

A economista Elena Landau (Foto: Divulgação)
A economista Elena Landau (Foto: Divulgação)

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Perto de completar dois meses em seu retorno ao Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de hoje é diferente daquele que comandou o país por oito anos. Embora tenha construído uma ampla base de apoio entre diversos setores da sociedade para vencer as eleições mais acirradas da Nova República e buscado atrair um leque de partidos para ter governabilidade no Congresso Nacional, Lula parece cada vez menos disposto a contrariar seus apoiadores mais fiéis e ceder no debate econômico.

A avaliação é da economista e advogada Elena Landau, um dos principais nomes do pensamento liberal brasileiro. Em entrevista ao InfoMoney, ela questiona o real espaço reservado à frente ampla no novo governo, critica o retorno de ideias que já teriam se provado ineficazes no passado e diz que a atual gestão tem perdido oportunidades preciosas de fazer a economia avançar.

A despeito de uma equipe ministerial plural, formada por Fernando Haddad (Fazenda), o vice-presidente Geraldo Alckmin (Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), Esther Dweck (Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) e Simone Tebet (Orçamento e Planejamento), ela vê o Lula III menos permeável a ideias contrárias ao que defende o Partido dos Trabalhadores do que nas outras gestões.

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“Desde a vitória, Lula deixou claro que não é um governo de frente ampla”, observa a economista. “A sensação que temos é que ele está consolidando a base do PT dos velhos tempos. O Lula III está mais antigo na concepção de política do que jamais esteve. Completamente diferente dos governos anteriores. A questão que ninguém consegue responder é por que ele está fazendo isso”.

Na avaliação de Landau, o presidente não está aproveitando a tradicional lua de mel de início do mandato, inverte a ordem das discussões econômicas e cria “turbulências desnecessárias”, como nos ataques recentes à política monetária adotada pelo Banco Central e ao presidente da instituição, Roberto Campos Neto. “Parece que Lula quer mostrar que é um presidente de esquerda, que vai resgatar a dívida social a qualquer custo”, diz.

Como resultado, ela argumenta, o governo colhe perspectivas de uma inflação mais alta e de juros persistentemente elevados, enquanto poderia ancorar expectativas dos investidores com a apresentação do novo marco fiscal e investir em uma agenda de melhoria do ambiente de negócios, a partir da reforma tributária, e de ganhos de produtividade na economia, sobretudo de olho nas vantagens competitivas do país na seara ambiental.

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“Estamos perdendo o foco, e o maior prejudicado é sempre aquele que o governo diz querer defender. Será preciso aumentar o custo do crédito, do endividamento. De um lado fazem o projeto Desenrola, do outro adiam a redução dos juros. De um lado querem combater a inflação, mas do outro o real está mais desvalorizado do que deveria. É muito difícil entender, porque não é questão nem de escola de pensamento econômico, é a realidade”, critica.

A postura até o momento adotada por Lula, avalia a economista, seria uma espécie de reedição da política do “cercadinho” usada por seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que criou a rotina de se encontrar quase diariamente com apoiadores em uma área reservada do Palácio da Alvorada para reafirmar bandeiras e atacar adversários. O esforço em criar um clima de campanha permanente manteve a base bolsonarista ativada durante boa parte do último governo, mas deixou o país em constante estado de conflagração.

“Ele está fazendo a estratégia do cercadinho, muito parecida com Bolsonaro. Fala com um grupo de pessoas, na língua delas, e não liga para o resto do Brasil. Lula fez uma campanha de união e reconstrução, e, nos [primeiros] 45 dias, está fazendo uma campanha de desunião e de desmonte de uma série de reformas que deram sustentabilidade ao pouco de crescimento que tivemos depois do governo Dilma Rousseff”, pontua.

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Landau argumenta que a apresentação do novo arcabouço fiscal, que deverá substituir o teto de gastos − regra criada em 2016, no governo de Michel Temer (MDB), que limita a evolução de despesas públicas em um exercício à inflação acumulada no ano anterior −, precisa ser “prioridade zero” da equipe econômica do governo e que é indispensável uma regra que limite gastos. Mas manifesta preocupação com o “fogo amigo” dentro do governo e desconfia de certa anuência de Lula com disputas por espaços.

A especialista é cética com os efeitos potenciais das primeiras medidas anunciadas pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda) para reduzir o déficit público em 2023, mas demonstra otimismo com a implementação de instrumentos de revisão de despesas e mensuração de políticas públicas no Ministério do Planejamento e Orçamento, pasta conduzida por Simone Tebet (MDB), de quem foi coordenadora de programa econômico na última eleição presidencial.

Elena Landau é economista e advogada, especialista em regulação econômica. No setor público, foi diretora de desestatização do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Questionada sobre os debates acerca de possíveis mudanças na Lei das Estatais, no papel de agências reguladoras e as sinalizações do governo de uma revisão no processo de privatização da Eletrobras, ela vê um aumento da insegurança jurídica no país.

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“Eu vejo um retrocesso muito grande na questão da segurança jurídica e regulatória em vários aspectos. No caso da Lei das Estatais, existia uma convergência de interesses da direita e da esquerda que preocupa. Um quer apropriar o Estado e o outro quer usá-lo para induzir crescimento. Querem encher as estatais de nomeações partidárias, políticas, sindicalistas, tudo o que já vimos no passado”, alerta.

“É uma história atrás da outra. Agora, essa questão das agências reguladoras. Inventaram o jabuti, que é um retrocesso enorme”, diz. “A discussão enorme da ‘coisa julgada’ no STF também não ajuda. E há a discussão sobre a [revisão dos termos da privatização da] Eletrobras, que é o absurdo dos absurdos”.

“É um discurso irresponsável, como é irresponsável o ataque ao BC. É totalmente desnecessário, quando o Brasil está se abrindo para o mundo por causa da discussão energética, criar uma insegurança jurídica desse tamanho. Quem vai querer ser minoritário de uma empresa estatal que não liga para regras de gestão e está cheia de indicações políticas? Nesses 45 dias, o governo está jogando fora uma série de oportunidades”, avalia.

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Leia os destaques da entrevista:

InfoMoney: Críticos dizem que Lula se distanciou da construção de frente ampla que o levou a um terceiro mandato, sobretudo do ponto de vista econômico. Você concorda com essa leitura? Qual é a sua avaliação dos primeiros 45 dias do novo governo?

Elena Landau: Desde a vitória, Lula deixou claro que não é um governo de frente ampla. Ele reforçou o que tinha em seu programa de governo, do ponto de vista econômico. Demorou para incluir no governo as duas pessoas mais simbólicas da frente ampla: Simone Tebet (MDB) e Marina Silva (Rede Sustentabilidade). Deu prioridade ao PT e outros partidos − que inclusive não têm nada a ver com ele, como o União Brasil − para construir governabilidade. E a prioridade absoluta foi uma expansão de gastos − segundo ele, para resgatar a dívida social. Ele foi muito além do que já estava embutido no cálculo de muita gente, que era o aumento na ordem de 1% do PIB para resgatar promessas de campanha. O surpreendente é que não tenha sossegado depois de ter ganhado do Congresso a autorização da PEC da Transição.

Politicamente ele está fazendo um governo para o PT. A sensação que temos é que Lula está consolidando a base do PT dos velhos tempos. O Lula III está mais antigo na concepção de política do que jamais esteve. Completamente diferente dos governos anteriores. A questão que ninguém consegue responder é por que ele está fazendo isso.

Todo mundo diz que só tem 45 dias de governo e não adianta ficar cobrando. Ninguém esperava um governo liberal, mas ele está criando turbulência desnecessária. Todo governo começa com uma boa vontade [da opinião pública e de atores relevantes da sociedade]. Há muita expectativa das pessoas, elas vieram de um cenário muito ruim e achavam que, logo no início do governo, Lula iria aproveitar essa boa vontade.

Não estamos vendo grandes propostas na mesa, estamos vendo propostas que não vão dar muito resultado, como a questão da MP do Carf. Mesmo em outras áreas. Ele reinaugura o Minha Casa, Minha Vida, mas com os mesmos problemas do passado: localidades isoladas, fora dos centros urbanos, sem serviços em volta. Do lado positivo, está dando uma sinalização de que vai retomar a faixa 1, que é importante. O ministro Camilo Santana (Educação) ainda não mostrou exatamente qual é seu projeto.

É preciso entender, também, como os eventos de 8 de janeiro afetaram a trajetória do governo. De um lado, poderíamos imaginar que eles reforçam Lula, porque aumentam o apoio da sociedade, já que mesmo a maioria dos que votaram em Bolsonaro foi contra os atos. E há quem diga que os eventos mostram que Lula ainda está muito frágil: ganhou por pouco, ainda não sabe como a base no Congresso está. Então, ele está fazendo a estratégia do cercadinho, muito parecida com Bolsonaro. Ele fala com um grupo de pessoas, na língua delas, e não liga para o resto do Brasil. Ele fez uma campanha de união e reconstrução, e, nos [primeiros] 45 dias, está fazendo uma campanha de desunião e de desmonte de uma série de reformas que deram sustentabilidade ao pouco de crescimento que tivemos depois do governo Dilma Rousseff (PT).

IM: Por exemplo?

EL: Começou a discutir reforma trabalhista, mas ninguém sabe exatamente quais pontos. De fato, a questão dos aplicativos é uma agenda importante, mas exatamente qual reforma [virá]? O ministro da Previdência insiste na discussão [sobre a existência ou não de déficit na Previdência Social], quando nós deveríamos estar avançando na reforma, porque continuamos com uma rigidez muito grande nos gastos obrigatórios.

Além da própria gravidade da mudança da Lei das Estatais, do ataque ao Banco Central e da promessa de desfazer a privatização da Eletrobras, quando não há nenhuma possibilidade. É um discurso de desmonte desnecessário. Tem só 45 dias, mas neste período ele podia ter tido um discurso mais positivo. O mundo está com uma enorme boa vontade com o Brasil, a agenda ambiental nos coloca no centro do mundo de novo, mas ao mesmo tempo há uma série de questões de insegurança jurídica. Desde a Eletrobras até o próprio STF com a “coisa julgada”.

Eu fico assustada não porque esperava uma política econômica muito diferente. Quando o PT assume, a gente já sabe o que ele vai fazer. Mas essa turbulência é desnecessária. Já que Lula escolheu a dedo Fernando Haddad, uma pessoa próxima, para o Ministério da Fazenda, ele deveria deixá-lo trabalhar em sossego, mas não está. Ele está deixando uma briga entre Haddad e Mercadante acontecer, sem arbitrar. A sensação que tenho é que ele gosta da briga. Mercadante diz que vai trabalhar no arcabouço fiscal, quando isso não é assunto do BNDES. Ele estimula uma discussão do André Lara [Resende] com Roberto Campos Neto.

Essa fricção é desnecessária. Não vou discutir se estou frustrada com a discussão da Petrobras. Isso estava no jogo. Agora, uma fricção na área econômica é totalmente desnecessária. Essa é a grande frustração dos 45 dias.

O que o governo deveria estar fazendo nesse momento? Deixe Fernando Haddad trabalhar em paz. A prioridade zero é apresentar o arcabouço fiscal. Ele está trocando a ordem das discussões. Depois disso, até pode conversar sobre metas [de inflação] e uma série de coisas, mas sem arcabouço fiscal, não pode falar nada, porque está totalmente desancorado. Está desancorado no fiscal e vai querer desancorar no monetário também?

IM: Uma das primeiras medidas anunciadas pelo ministro Fernando Haddad foi o fim do voto de qualidade pró-contribuinte no Carf. A senhora já disse não esperar grandes efeitos com a iniciativa. Por quê?

EL: Há cálculos de tributaristas que estimam ganhos de R$ 25 bilhões, que não sabemos se de fato serão obtidos. A mudança no voto de qualidade é recente e é totalmente desnecessário mexer. Achar que isso daria um ganho imediato para a União é falso. Não vai diminuir a judicialização − pelo contrário, aumenta a insegurança jurídica. Em muita coisa não haverá ganho nenhum. Perde-se tempo com esse tipo de coisa. É preciso melhorar a questão da transação creditícia e na facilidade de acordos, mas não é daí que teremos a grande virada fiscal.

O que as pessoas querem ver é de onde vai vir a âncora fiscal. Acham que o teto não é bom, mas qual vai ser a âncora de gastos? Essa é uma questão muito grande que ninguém quer enfrentar, porque gasto no Brasil é conflito distributivo. E cortar gastos quando o governo está discutindo governabilidade sabemos que será difícil.

As discussões sobre produtividade não estão entrando, assim como sobre corte de gastos. Então, perde-se um tempo danado discutindo se vai tirar o saque-aniversário do FGTS, quando se deveria discutir a liberdade de o trabalhador escolher onde ele vai colocar sua poupança compulsória. Discutem-se temas que são laterais neste momento. E até hoje ninguém sabe o que vai entrar no lugar do teto.

Minha crítica vem da perda de um momento importante, que é quando o governo chega com apoio, ainda que o apoio de Lula tenha sido de uma eleição que “passou raspando”. Ele criou 37 ministérios e está trazendo ministros que muita gente não concorda, tem que aproveitar essa governabilidade para avançar, e não para retroceder.

É uma agenda de desconstrução, e não de construção. Uma agenda de desunião, e não de união. Qual a necessidade de Lula, a cada discurso, falar de Bolsonaro? Ninguém quer saber de Bolsonaro. Ele é passado. Para que atacar os eleitores dele? É preciso unir o país. Nem todo eleitor de Bolsonaro é de extrema-direita e terraplanista.

IM: As primeiras ações do governo geram aumento de despesas, como o aumento do salário mínimo, correção nos valores de bolsas de estudo, atualização da faixa de isenção do Imposto de Renda, reajuste para servidores públicos e uma revisão do papel dos bancos públicos. Quais são suas expectativas sobre a formatação do novo arcabouço fiscal, considerando esses movimentos iniciais? O caminho deverá ser aumento de carga tributária? Como essa equação vai fechar?

EL: Até o momento, vimos uma pressão de despesas já previsível − daí o pedido feito na PEC da Transição. Na questão de receitas, o pacote do ministro Haddad tem algumas medidas que só valem para 2023, enquanto estão contratando gastos permanentes. Acho que, se vier aumento da carga tributária, deveria ser pelo corte das isenções, jamais pela criação de novos impostos. Há espaço para discutir. Mas é surpreendente a reação à reoneração dos combustíveis. Haddad estava corretíssimo quando anunciou a reoneração − especialmente para gasolina, que não faz sentido algum. Os preços do óleo voltaram aos preços pré-guerra, não há sentido não reonerar. Com isso, já se deixa de ganhar mais de R$ 50 bilhões.

A mesma coisa com IPI. Por que não ser mais agressivo no capim alto? É claro que há outros gastos tributários que implicam uma negociação no Congresso, onde ele ainda está com uma base muito frágil. O lugar óbvio seria a Zona Franca de Manaus. Ela é totalmente inadequada, tanto do ponto de vista tributário, quanto do ponto de vista da sua funcionalidade nos tempos atuais. Ela tem que ser toda repensada dentro do seu papel na Amazônia e na indústria.

Do lado do Planejamento, a modernização das regras orçamentárias vai trazer novidades importantes. Primeiro, se de fato desconstitucionalizarmos parte delas, saindo daquela coisa extrema que é precisar de uma emenda constitucional para lidar com casos como a pandemia. Se emenda constitucional funcionasse, o 0,5% que Guedes prometeu cortar todo ano em isenções estaria valendo, quando foi ele mesmo que aumentou as desonerações às vésperas das eleições. Não é a Constituição que vai fazer com que as pessoas levem a sério regras no Brasil. Regras temos várias, o problema é termos credibilidade.

Na discussão orçamentária, há duas questões fundamentais: a revisão de despesas e uma definição de planejamento para todo o mandato, que não é exatamente o velho PPA, para que fique claro que, se quiser dar aumento ao funcionalismo, não basta olhar para o teto de 2023. Ele tem efeito permanente e vai afetar o planejamento dos próximos quatro anos. Não se trata de coisa de curto prazo, mas uma sinalização importante que, pela primeira vez no Brasil, estamos falando seriamente em spending review e organização de políticas públicas.

Do lado do arcabouço fiscal, há uma série de propostas. O problema é que, se houver regras muito complicadas, ninguém entende mais. É preciso ter a filosofia. Uma questão vai ser obviamente a dinâmica da dívida pública, mas ela sozinha não resolve, porque é uma equação que tem dívida sobre PIB. Se houver uma mentalidade heterodoxa, desenvolvimentista, que é o grosso dos economistas que hoje apoiam Lula, a intenção vai ser reduzir a relação da dívida pública pelo crescimento do PIB. “Gasto é vida”, ideia que já está de volta. O BNDES está de volta, os bancos públicos, a indução de crescimento etc. Não pode ter só isso. Do contrário, começa a história de aumentar a receita, que aumenta o PIB e a relação da dívida cai. Principalmente com a falsa solução da Teoria Monetária Moderna de que você pode gastar em real e dívida não é problema. Isso é uma cloroquina da economia.

Só isso não vai ancorar expectativas. É preciso ter alguma regra de limitação de gastos. Não sei o que vão colocar, mas é essa regra que tem impedido aumentos irreais do salário mínimo ou isenção também irreal da faixa do Imposto de Renda. Não acho que será satisfatório para a sociedade brasileira um arcabouço fiscal que não tenha algum tipo de controle de gastos. E meta apenas qualitativa não dá, é preciso ter metas quantitativas claras.

IM: A abordagem mais clara em avaliação de políticas públicas pode conferir ao Ministério do Planejamento uma participação maior na condução de política fiscal, em auxílio ao cumprimento do arcabouço fiscal?

EL: Está entre as funções do Planejamento. No Planejamento será necessário fazer um Orçamento crível para quatro anos de governo. A ministra Simone [Tebet] tem repetido que, com 2% de déficit, não há crescimento sustentável em nenhum país do mundo. Ela tem essa consciência e tem trabalhado em conjunto com Fernando Haddad. Está na mão deles − e na minha opinião não deveria estar na mão de mais ninguém − a definição desse arcabouço fiscal e orçamentário. O avanço do BNDES, com Aloizio Mercadante dizendo que vai debater arcabouço fiscal, é uma briga política interna do governo totalmente deletéria.

A ministra Simone vai ter um papel importante em organizar prioridades. O governo Lula tem prioridades completamente diferentes da gestão anterior: educação, Minha Casa, Minha Vida, habitação popular, toda a parte social, revisão das políticas sociais, inovação, tecnologia. É um governo diferente. E Simone vai ter que trazer isso refletido na nova Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

A maioria das demandas são legítimas, já que temos um nível de desigualdade e pobreza muito elevado. Estamos com atrasos na capacitação de mão de obra, na questão de tecnologia e inovação… O trabalho da Simone vai ser encaixar isso dentro de um Orçamento. Daí a importância fundamental de fazer revisão de despesas, de rever gastos tributários ineficientes. Acho que a tarefa política mais difícil que temos no Brasil, junto com a reforma tributária, é a revisão dos puxadinhos de uma elite empresarial e econômica que está acostumada a viver sob a sombra do Estado. Há subsídios ineficientes em todos os lugares, uma série de distorções que mostram enorme regressividade no uso do recurso público.

IM: Como a senhora tem acompanhado os embates entre Lula e o Banco Central? Na sua avaliação, os juros estão hoje no patamar adequado? E o debate sobre mudança da meta de inflação seria legítimo neste momento?

EL: A cruzada contra o Banco Central não é técnica, é política. Lula está com uma base muito frágil, tem que escolher algumas bandeiras e reforçar quem é ele. A sensação que tenho é que Lula não quer passar para a história como o Lula socialdemocrata que deu continuidade às políticas liberais do governo Fernando Henrique. Parece que Lula quer mostrar que ele é um presidente de esquerda, que vai resgatar a dívida social a qualquer custo.

A briga com o Banco Central só atrapalha, desancorando expectativas, e a discussão da meta [de inflação] vem na mesma direção. Não é o momento de discutir nada disso. O mais importante é ancorar expectativas no Brasil. Quando Tony Blair foi eleito [no Reino Unido], a primeira coisa que fez foi declarar a independência do Banco Central, exatamente para furar a bolha de expectativas de um governo que seria irresponsável na questão da política monetária.

Ninguém esperava que o PT não fosse PT, mas não precisava ter ido para um lado tão radical e criado uma turbulência absolutamente desnecessária. Começou como uma marola e virou um tsunami. Se não fosse a frieza do presidente do Banco Central [Roberto Campos Neto] em não enfrentar esse ataque… Não estou discutindo se deveria ter ido votar de camisa verde e amarela, mas ele está fazendo seu papel. Aumentou as taxas de juros em reação à desorganização fiscal que foi gerada pelo próprio ministro Paulo Guedes, e estávamos na esperança de que este ano pudesse marcar o início da redução. Quando Lula ataca o BC e piora as expectativas, ele adia esse processo. Estamos perdendo o foco, e o maior prejudicado é sempre aquele que o governo diz querer defender. Será preciso aumentar o custo do crédito, do endividamento. De um lado fazem o projeto Desenrola, do outro adiam a redução dos juros. De um lado querem combater a inflação, mas do outro o real está mais desvalorizado do que deveria. É muito difícil entender, porque não é questão nem de escola de pensamento econômico, é a realidade.

No momento, eu não mexeria em nada até que tivéssemos um avanço do arcabouço fiscal. Depois que Roberto Campos Neto fez, em sua entrevista [ao programa Roda Viva], um sinal de apaziguamento, se o PT, através de sua presidente [Gleisi Hoffmann] ou de Lula, continuar no ataque ao Banco Central, é claramente uma disrupção política que vai cair no pé de quem menos pode se defender no mercado.

Para que esse ataque? O Conselho Monetário Nacional não depende de Lula. São dois ministros e o presidente do Banco Central. Lula pode falar o que quiser sobre meta, que não garante que o CMN vá seguir. A independência do BC não vai ser questionada de novo, acabou de ser aprovada pelo Congresso, que já avisou que não vai rever isso. Ficam perdendo tempo para falar para o cercadinho, com impacto muito negativo sobre a economia e sobre os que menos podem se defender de juros altos e inflação. E é uma bobagem dizer que o BC está transferindo renda para o mercado financeiro. O mercado financeiro sabe trabalhar com juros altos ou baixos.

Eu não entendo essa postura em relação ao Banco Central, como não entendo o ataque à privatização da Eletrobras. Esses 45 dias são marcados pela política, por uma consolidação do cercadinho. Depois da experiência da prisão e do apoio que recebeu do grupo mais radical do partido, Lula pode ter de fato mudado de visão sobre a economia. Ele pode ter abraçado uma visão muito mais à esquerda dos fatos, muito mais intervencionista do que já foi, e ter uma visão velha do mundo. Lula está falando para um público de 40 anos atrás.

Tão grave quanto a discussão sobre questões fiscais e de Banco Central é a agenda de produtividade, que está abandonada. Há uma discussão sobre [acordo entre] União Europeia e Mercosul, e Lula quer rever itens como conteúdo nacional, que todo mundo sabe que não funcionou. Não há nenhuma discussão sobre integração de cadeias produtivas, de abertura. Mais do que direita ou esquerda, o que está muito ruim neste governo é a falta de uma agenda de produtividade moderna, de descarbonização e meio ambiente. Há um discurso, mas quando olhamos o detalhe, ainda são instrumentos antigos e de pouca efetividade.

IM: Boa parte da agenda de produtividade passa pela reforma tributária. Quais são suas expectativas em relação ao avanço desta matéria em meio a queixas especialmente do setor de serviços e de grandes municípios?

EL: Nunca vamos ter um ambiente tão propício para a votação da reforma tributária como tivemos no início do governo Bolsonaro. Mas infelizmente a ideia de colocar a CPMF atrasou tudo e perdemos esse momento.

Não há nenhum profissional mais qualificado para discutir reforma tributária do que Bernard Appy neste momento no Brasil. A reação contra ele é absolutamente injustificada. É uma pessoa conciliadora, que debate e vive disso há muitos anos.

A primeira coisa da reforma tributária precisa ser resolvida entre as duas casas [legislativas] sobre como conduzir o processo. As bases estão muito bem definidas na área do imposto sobre o consumo. É óbvio que ninguém gosta de pagar imposto, então fica a grita do setor de serviços, porque ele paga muito menos imposto do que a indústria. Mas, se você quiser ter uma reforma tributária neutra e reduzir o imposto sobre a indústria, vai ter que aumentar de alguém. Outro problema é que antes os secretários de Fazenda estavam apoiando a reforma, agora a discussão do ICMS trouxe um item a mais para resolver.

Sou cautelosamente otimista. Não acho que vai ser como estava em 2019, pronta para ser aprovada. Vamos ter trabalho. De todo modo, é uma das prioridades da Fazenda, do Planejamento e da própria Casa Civil. O governo está envolvido nisso. Porque não vamos melhorar o ambiente de negócios no Brasil sem a reforma tributária. Precisamos desonerar exportações, simplificar [a estrutura tributária], para que possamos ter crescimento sustentado, com uma agenda de produtividade e não com essa questão do uso do Estado como indutor. Está maduro para avançarmos.

Mas não podemos deixar de lado a reforma do Imposto de Renda, que é uma das coisas importantes para fazer, porque a regressividade nele é insustentável. Os regimes especiais precisam ser revistos. Quando Lula fala em colocar o rico pagando imposto, começa pelas próprias isenções. A maioria delas beneficia a elite sem nenhum retorno para o trabalhador. Isso vai desde o FGTS até o IPI, a desoneração, a Zona Franca de Manaus e o próprio Simples. O problema é que, quando você vai mexendo nos regimes especiais, começa a coisa de luta de classes e uma discussão muito forte no varejo. Eu tenho medo de soluções fáceis e inócuas, como imposto sobre grandes fortunas, uma CPMF temporária, e uma falta de balanceamento na discussão sobre dividendos.

O Imposto de Renda deveria ter um grupo separado para começar uma discussão muito forte, por conta da regressividade. O pobre já está no Orçamento. A gente gasta muito. Os gastos públicos são elevados e os gastos sociais também, mas eles são muito mal focalizados. A população não tem de volta do Estado serviços públicos de qualidade para aquilo que ela paga. A boa notícia que temos é que o ministro Wellington Dias está, de fato, encarando as fraudes e desvios que aconteceram no Auxílio Brasil. Mas podemos melhorar em tudo.

IM: Há uma série de discussões na política com impactos relevantes sobre a segurança jurídica e o ambiente de negócios. A Câmara aprovou, em dezembro, mudanças na Lei das Estatais – e senadores se articulam para retomar o debate após críticas da sociedade. Um deputado propôs mudanças significativas no funcionamento das agências reguladoras, com a criação de conselhos temáticos que poderiam participar da edição de atos normativos. Já a AGU iniciou estudos sobre cláusulas da privatização da Eletrobras, para questionar o processo. Caminhamos para mais riscos para o ambiente de negócios no Brasil? Qual a dimensão do problema que enfrentamos nesta seara?

EL: Eu vejo um retrocesso muito grande na questão da segurança jurídica e regulatória em vários aspectos. No caso da Lei das Estatais, existia uma convergência de interesses da direita e da esquerda que preocupa. Um quer apropriar o Estado e o outro quer usar o Estado para induzir crescimento. Querem encher as estatais de nomeações partidárias, políticas, sindicalistas, tudo o que já vimos no passado. Tivemos um ganho enorme com a mudança na qualidade da gestão das estatais. Nos últimos anos, a Petrobras voltou a ser a grande empresa nacional que tem que ser, com a competência que tem. É possível discutir se distribui dividendos demais ou não, mas os desinvestimentos que ela fez foram importantíssimos para uma maior competição no setor, para melhorar a operação e diminuir preços na ponta. Nunca vi alguém querer diminuir preços e manter o monopólio. Só se faz isso com uma intervenção nos preços.

Outro ponto é a complacência que o Brasil tem com uma coisa ilegal que são os jabutis em medidas provisórias. Foi o jabuti na privatização da Eletrobras que estragou boa parte do processo, uma coisa de lobby, sem nenhuma justificativa, para atender dois ou três grandes empresários do Brasil para colocar gasodutos no interior e termelétricas desnecessárias, atropelando o planejamento do setor. Trata-se de uma apropriação do Estado, o que implica na socialização dos custos para a população dos subsídios para grupos pequenos.

É uma história atrás da outra. Agora, essa questão das agências reguladoras. Inventaram o jabuti, que é um retrocesso enorme. Levamos anos para votar a nova lei das agências reguladoras. O que temos que fazer é cobrar do Senado Federal uma melhor sabatina [dos indicados para as autarquias]. Vimos no passado que eles indicam pessoas que não se qualificam sequer pela lei, e não acontece nada. Há uma convergência de interesses entre governo, tentando capitalizar politicamente na redução de tarifas etc., e o Congresso, para poder aumentar sua competência de lobby e enfraquecer as agências. Há um populismo de direita e esquerda atrapalhando isso. É um retrocesso grande.

A discussão enorme da “coisa julgada” [em matéria tributária] no STF também não ajuda. E há a discussão sobre a [revisão dos termos da privatização da] Eletrobras, que é o absurdo dos absurdos. A lei foi aprovada pelo Congresso Nacional. A AGU vai atacar o Congresso Nacional? Lula diz que houve uma “bandidagem”. Quer dizer que todo mundo que está na base do governo dele hoje e aprovou a lei é bandido?

No fundo, o que Lula quer é narrativa. Ele não vai chegar a lugar algum com essa discussão da Eletrobras. Ele não vai desfazer esses contratos. Agora, se chegar ao ponto de sequer avançar, haverá um nível de insegurança jurídica enorme no Brasil, porque, para isso, ele não só vai ter que desfazer um contrato, como dar um calote.

É um discurso irresponsável, como é irresponsável o ataque ao BC. É totalmente desnecessário, quando o Brasil está se abrindo para o mundo por causa da discussão energética, criar uma insegurança jurídica desse tamanho. Quem vai querer ser minoritário de uma empresa estatal que não liga para regras de gestão e está cheia de indicações políticas? Não estou dizendo que indicação política é proibido, mas tem que haver indicação com qualidade técnica. Nesses 45 dias, o governo está jogando fora uma série de oportunidades. Muito além do que se podia imaginar que o PT fosse fazer. Por isso que dizem que são 45 dias que já parecem um ano.

IM: Quais são suas expectativas para a agenda do meio ambiente e do clima nos próximos anos? Como ela também pode ser importante para o nosso desenvolvimento econômico?

EL: No programa de governo de Simone Tebet, o social e o ambiental estavam em destaque. Todas as reformas econômicas eram pressupostos para atingir esses dois objetivos. A agenda climática é fundamental. Ela tem a possibilidade de abrir o Brasil para o mundo, com a mudança completa de percepção do que o mundo espera de nós, mas também tem uma dimensão social e econômica enorme. Não por acaso, os lugares em que há desmatamento ilegal, garimpo ilegal, há índices de desenvolvimento humano muito baixos e índices de violência muito altos.

Do outro lado, que estamos vendo com a questão Yanomami, não adianta combater a ilegalidade sem criar oportunidades de legalidade. Olhando os dados do desmatamento ao longo da década de 2010, há uma redução muito grande até 2012. Depois, ele começa a subir novamente. Muito intrigada com isso, fui perguntar aos ambientalistas e especialistas, e eles apontaram a falta de oportunidades de emprego. O Brasil foi muito bem na fiscalização e no combate, mas muito mal na criação de alternativas de empregabilidade. Então, a pessoa sem opção volta.

A agenda de descarbonização pode ser um motor da inovação tecnológica e da nova indústria no Brasil. Minha expectativa é que fosse nessa direção. Quando ouço falar em indústria naval, e não essa agenda moderna de descarbonização, eu me assusto. Como vamos perder uma oportunidade dessas?

O Brasil precisa se colocar melhor no mundo como o grande player dessa agenda. Aí vem o Lula preocupado com a Argentina, com um gasoduto que sequer foi discutido no Brasil e que há grandes controvérsias. Há muito ruído, quando deveríamos ter algo muito mais claro. É uma visão velha de mundo, quando deveríamos aproveitar todo o nosso potencial verde para ser um agente de mudança, tanto social quanto econômica. Para fazer a mudança na indústria brasileira, na capacitação profissional, usar os recursos que podemos obter com essa transformação climática para investir na área social do entorno desses lugares.

Tudo bem, está começando, são só 45 dias. Desfazer a boiada de Ricardo Salles é importante. Mas isso é só o começo. É preciso muito mais do que isso. Minha sensação geral é que estamos lentos. Há muita ansiedade, porque há muitas oportunidades. Mas esses 45 dias mostram que viemos com uma agenda velha. Temos uma agenda antiga, de 30 anos atrás, que não parece que o mundo mudou. É uma agenda fraca na capacitação de mão de obra, fraca na inovação tecnológica, na revolução industrial e na própria percepção do Brasil em sua posição no mundo e na questão climática, nas discussões monetárias e fiscais, na gestão das empresas estatais. É uma agenda atrasada. Estamos andando para trás em muitas coisas.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.