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A decisão da Advocacia-Geral da União (AGU) de, amparada por parecer técnico do Ministério da Fazenda, encaminhar ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido pela inconstitucionalidade de duas emendas aprovadas no governo Jair Bolsonaro (PL) para permitir a aplicação de um teto para o pagamento de precatórios e o uso das dívidas do poder público para “encontros de contas” foi bem avaliada por especialistas da área fiscal.
Enquanto a Corte se debruça sobre duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que discutem a chamada PEC dos Precatórios, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) propõe uma solução para conter o crescimento desenfreado do estoque das dívidas do poder público já transitadas em julgado (e que portanto não podem ensejar novos recursos no Poder Judiciário) desde a vigência das regras promulgadas pelo Congresso Nacional.
Como tentativa de virar a página do imbróglio e desarmar uma bomba fiscal programada para 2027, o governo federal requereu ao STF que admitisse o pagamento do montante acumulado por meio de crédito extraordinário, mediante aval do Poder Legislativo, de forma segregada entre o valor principal da causa e os encargos financeiros − que seriam quitados por meio de despesa primária e financeira, respectivamente. Também foi solicitado o afastado qualquer risco de penalização por eventual descumprimento da meta de resultado primário por conta desses pagamentos.
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Na avaliação de especialistas consultados pelo InfoMoney, a iniciativa é positiva por trazer maior previsibilidade para a gestão das contas públicas e por buscar virar a página de um problema fiscal que se tornava cada vez mais grave e de difícil solução. Por outro lado, ainda há dificuldades para se estimar a totalidade dos efeitos sobre as metas fiscais estabelecidas ao longo dos próximos anos.
“A proposta é positiva promover a quitação do estoque de precatórios expedidos e não pagos até o momento. Ao colocar em dia as obrigações do governo, diminui-se substancialmente a pressão adiante. As informações disponibilizadas indicam um estoque de aproximadamente R$ 95 bilhões considerando-se os valores acumulados nos orçamentos de 2022, 2023 e 2024, o que deve elevar a dívida pública em 0,9 pp. – mas, nesse caso, trata-se de reconhecer um valor já existente e não contabilizado”, observam os analistas da XP Investimentos.
“Mas a mudança na classificação das despesas é problemática. A fim de justificar uma interpretação diferente, o parecer da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) aponta que os precatórios expedidos e não pagos constituiriam dívida consolidada. A nosso ver, tal leitura é equivocada: os precatórios continuam representando obrigações relacionadas à sua natureza original. Despesas com pessoal que se originam de precatórios continuam sendo despesa de pessoal, ainda que sejam pagas anos depois, logo a natureza primária se mantém”, ponderam.
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Para os especialistas, considerando que uma parcela das sentenças judiciais pode ser classificada como despesa financeira (que é exceção ao limite de despesas previsto na regra fiscal vigente), haveria possibilidade de a ação do governo abrir algum espaço no Orçamento.
“Não está claro se esse espaço será ocupado pelo restante dos precatórios do exercício ou por outras despesas. Considerando o valor de R$ 66,4 bilhões, com 30% de despesas financeiras, um espaço de aproximadamente R$ 20 bilhões seria criado”, estimam.
“Com o fim do limite de pagamento, o orçamento para os anos de 2025 e 2026 deve contemplar a totalidade de precatórios expedidos pela Justiça. Uma parte significativa desses valores continuaria a ser classificada como despesa primária (caso o argumento do governo seja aceito), e possivelmente os valores ficariam acima do limite de pagamentos. Isso deve gerar uma pressão sobre o limite de despesas, comprimindo as despesas discricionárias como ocorreu no passado”, dizem.
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“Aliás, não é inevitável que um novo ‘meteoro’ atinja o orçamento federal. Com um alto grau de judicialização, em especial de benefícios previdenciários e assistenciais, é pouco provável que essa despesa cresça de forma comportada nos próximos anos”, projetam.
Eles destacam, ainda, que o fim da possibilidade do chamado “encontro de contas” (em que créditos por precatórios poderiam ser usados para abater obrigações junto ao governo, não implicando, portanto, em novas receitas ao poder público) deve beneficiar a União, garantindo maior possibilidade de ingresso de recursos ao seu caixa.
“Ao fim, mudança é positivamente líquida. Ao quitar os precatórios expedidos e não pagos, o governo evita um problema em 2027 que provavelmente resultaria em outra postergação de pagamentos. Ainda há dúvidas com relação ao orçamento de 2024, mas a proposta não deve abrir espaço nos exercícios seguintes por conta do volume de sentenças judiciais. Entretanto, vemos como problemática a mudança na classificação de despesa primária e financeira dos juros de mora dos precatórios”, concluem.
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Já Adriano Laureno, gerente de análise política e econômica da Prospectiva Consultoria, acredita que ainda é cedo para afirmar categoricamente o percentual de principal e encargos financeiros sobre o estoque de precatórios ou mesmo dos precatórios futuros.
“De qualquer forma, ao mesmo tempo em que essa segregação pode abrir um pouco de espaço fiscal via retirada dos gastos com encargos financeiros do resultado primário, temos que lembrar que o teto do pagamento de precatórios deixará de existir. Então, é possível que essa abertura de espaço primário da retirada dos encargos seja mais que compensada pela necessidade de se pagar um volume maior de ‘principal’ dos precatórios, em 2024/25/26”, pontua.
O especialista destaca, ainda, que a medida pode representar uma espécie de estímulo econômico num momento de desaceleração global e mesmo diante das restrições a uma expansão relevante do governo impostas pelo novo marco fiscal. “Encontrou-se uma forma de aumentar a capacidade financeira de empresas e pessoas físicas com precatórios a receber”, diz.
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“Embora os precatórios represados não sejam alimentares, e, portanto, tenham um multiplicador na economia relativamente baixo, a distribuição de R$ 95 bilhões adicionais em 2024 será um impulso fiscal considerável”, avalia.
“De certa forma, o governo encontrou uma forma de impulsionar a economia, ao mesmo tempo em que eleva a segurança jurídica do país e a transparência das contas públicas. Uma expansão fiscal que, em outras condições seria extremamente questionada, mas nessa pode ser vista como uma ação positiva de responsabilidade com o longo prazo”, observa.
Para Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena, a solução oferecida pelo governo é positiva e pode resolver o problema do adiamento no pagamento de precatoristas.
O especialista em contas públicas considera correta a decisão do Tesouro Nacional de segregar despesas primárias e financeiras no pagamento dos precatórios.
“A expectativa é que o Supremo acate a tese e dê fim a essa novela dos precatórios, conferindo previsibilidade aos precatoristas, ao mercado, à sociedade e ao próprio governo”, disse.
Na sua interpretação, o pedido da AGU não abre espaço orçamentário para o governo que modifique o cenário para apuração de resultado primário em 2024. Ele pontua que a argumentação de Tesouro Nacional, PGFN e AGU aponta para a manutenção da dotação fixada para precatórios.
O que está em jogo?
Na peça, a AGU alterou posição prévia em que defendia o indeferimento das ações contra as emendas constitucionais para defender sua inconstitucionalidade, amparada em nota técnica conjunta elaborada pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), ambos órgãos vinculados ao Ministério da Fazenda.
Nesse sentido, a pasta concorda com os autores das duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) impetradas sobre o assunto, que alegam violação do Estado Democrático de Direito, do devido processo legislativo, da separação dos Poderes, do direito de propriedade, do princípio da isonomia, do direito à tutela jurisdicional efetiva e à razoável duração do processo, da segurança jurídica, da coisa julgada e do direito adquirido, do princípio do juiz natural e, por fim, dos princípios da moralidade, da impessoalidade e da eficiência administrativas.
A AGU lembra que na exposição de motivos que acompanhou o envio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 46/2021, o governo anterior alegou “risco iminente de colapso da administração pública federal” para defender a implementação de um limite para a alocação de despesas com pagamentos relacionados a precatórios, evitando que tais compromissos inviabilizassem a continuidade de políticas públicas em curso e o funcionamento regular da máquina pública.
O atual governo, no entanto, argumenta que a nova dinâmica de pagamento dos precatórios produziu “um volume significativo e crescente de despesa artificialmente represada”, que precisaria começar a ser equacionado a partir de 2027, e não veio acompanhada de encaminhamento para a solução do passivo que seria acumulado a médio e longo prazos.
Como consequência, a AGU diz que a suspensão do pagamento integral dos precatórios trouxe, por um lado, um “falso alívio fiscal imediato”, e, por outro, impôs “dificuldades à preservação da sustentabilidade fiscal de longo prazo, além de produzir impactos negativos nas estatísticas fiscais e efeitos econômicos nocivos indiretos”.
A administração em exercício lista cinco categorias de prejuízos causados pela implementação da nova regra: 1) danos fiscais diretos ocasionados pela criação de despesas permanentes no espaço aberto de forma temporária pela mudança; 2) danos fiscais causados pelo “aumento abrupto nas taxas de juros reais exigidas para financiamento da dívida pública brasileira, decorrente da elevação da percepção de risco”; 3) danos decorrentes da elevação do prêmio de risco embutido nas contratações públicas de obras, serviços e fornecimento de bens, em razão do risco de “calote” de obrigações contratuais; 4) danos à transparência das contas públicas dada a ocultação dos indicadores da dívida pública bruta e liquida; e 5) danos econômicos decorrentes da aversão ao risco de se investir no Brasil.
Ao justificar a busca por uma nova abordagem ao problema, a AGU cita avaliação da Secretaria do Tesouro Nacional, que diz que a manutenção do crescente passivo relacionado ao não pagamento de precatórios que passa à margem da dívida pública poderia, inclusive, prejudicar os esforços do governo para reconquistar o chamado grau de investimento (“investment grade”) − uma espécie de selo de bom pagador junto às agências de classificação de risco.
“Os esforços da equipe econômica em buscar ações para melhorar a situação fiscal estão, portanto, sendo minados pela existência de uma forte pressão fiscal com data certa para eclodir: 2027, ano em que, se nada for feito, os passivos acumulados propiciados pelas supracitadas PECs terão que ser liquidados”, diz a nota assinada pelos órgãos técnicos.
Em outro flanco, o governo alega que a possibilidade de uso de precatórios para compensar débitos perante a Fazenda Pública (o chamado “encontro de contas”) tornaria imprevisível a disponibilidade financeira da União, “na medida em que subtrai do Governo o controle sobre o momento de liquidação de suas dívidas ou obrigações decorrentes de decisões judiciais, inviabilizando, assim, o seu planejamento orçamentário e financeiro”.
A nota conjunta preparada pelo Tesouro e a PGFN ainda aponta o o risco de continuidade do regime transitório de pagamento de precatórios. “A manutenção do não pagamento em dia das obrigações com precatórios irá aprofundar o problema da transparência fiscal, acumulando passivos cada vez maiores fora dos indicadores de endividamento bruto e líquido do Governo Federal, além de criar um grave problema fiscal que terá de ser equacionado em 2027”, pontua.
“A permanência do atual sistema de pagamento de precatórios tem o potencial de gerar um estoque impagável, o que resultaria na necessidade de nova moratória, intensificando e projetando em um maior período de tempo as violações a direitos fundamentais”, alega a AGU.
Segundo cálculos da Secretaria do Tesouro Nacional, o valor total de precatórios expedidos e não pagos é de aproximadamente R$ 112 bilhões. Desses, apenas com relação ao passivo vencido acumulado e não pago estima-se um débito da ordem R$ 65 bilhões ao final de 2023. Some-se a isso a parcela que seria postergada em 2024 em função do subteto, de cerca de R$ 30 bilhões. Assim, chega-se ao valor total aproximado de R$ 95 bilhões não pagos por conta do subteto. A avaliação é que o montante poderá superar R$ 250 bilhões se nada for feito até 2027.
Como solução ao problema, o governo pede a autorização de abertura de créditos extraordinários para dar quitação aos passivos existentes, com a exclusão dessas despesas dos limites estabelecidos pela lei complementar que instituiu o novo marco fiscal e das consequências sobre as metas definidas.
“[O] pagamento imediato do estoque de precatórios expedidos e não pagos por meio da abertura de crédito extraordinário cria condições para regularização dos pagamentos sem comprometer o planejamento orçamentário em curso, gerando inúmeros benefícios econômicos, diretos e indiretos, e sociais decorrentes da regularização dessas obrigações”, sustentam o Tesouro e a PGFN.
“Adicionalmente, a segregação do principal dos encargos financeiros nas sentenças judiciais para fins de cômputo como despesa primária e financeira permite criar um aperfeiçoamento contábil que propiciará a adequação do fluxo futuro de pagamentos das sentenças judiciais aos instrumentos de gestão fiscal existentes”, prosseguem.
Para justificar o cumprimento dos requisitos necessários para o uso do instrumento do crédito extraordinário, o governo alega que o volume crescente do passivo relacionado aos precatórios gera impactos imediatos no custo da rolagem da dívida federal e afeta a reputação do país junto a investidores estrangeiros, trazendo prejuízos aos indicadores macroeconômicos, ao planejamento orçamentário e, consequentemente, às oportunidades de investimento do poder público.
A AGU defende que os valores de precatórios não pagos oportunamente durante determinada execução orçamentária tenham a natureza de dívida consolidada, mas propõe que, nas sentenças judiciais, seja feita a indicação individualizada dos elementos que compõem o montante global da despesa a ser paga − ou seja, o valor principal e o valor dos encargos financeiros (juros).
A ideia seria viabilizar o registro contábil do primeiro como despesa primária e do segundo como despesa financeira, aplicando o entendimento também sobre o estoque de precatórios acumulados e não pagos até o momento. Desta forma, o governo alega haver um melhor tratamento do ponto de vista contábil e uma adequação perene para o pagamento das despesas.
“[O]s encargos financeiros associados às sentenças judiciais refletem o efeito monetário da passagem do tempo sobre um direito existente contra o Estado, somado a eventuais penalidades que visam a ressarcir o credor pelo atraso no reconhecimento desse direito e no pagamento da respectiva dívida. Esse componente das sentenças judiciais tem, portanto, clara natureza financeira”, sustentam os órgãos do Ministério da Fazenda em nota técnica.
“Considerando-se que um direito líquido e certo reconhecido pelo Poder Judiciário contra o Estado deve ser pago, sem qualquer tipo de constrangimento, não faz sentido sujeitar os encargos sobre esse direito a um limite de resultado primário, enquanto despesas de natureza semelhante (financeira), como os encargos sobre os títulos da dívida pública, não o são”, prosseguem.
Na prática, a medida faria com que as despesas relacionadas ao pagamento do valor principal dos precatórios acumulados teria impacto direto no resultado primário, ao contrário do pagamento de juros e outras despesas de natureza financeira, que afetariam apenas a dívida pública.
“A declaração de inconstitucionalidade [dos trechos das emendas constitucionais em discussão] é, portanto, necessária para o resgate da segurança jurídica e da confiança no Estado brasileiro, sendo certo que a devida observância e cumprimento das decisões judiciais é pilar fundamental do Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, o exemplo de garantia de atendimento das decisões judiciais deve partir do próprio Estado”, afirmou a AGU na manifestação ao STF.
O órgão pede que a Corte autorize a União a definir, em até 60 dias, ainda que por meio de parametrização aproximada, a distribuição do estoque de passivos de precatórios expedidos e não pagos já informados à União, segregando-se os valores principais e os valores referentes aos encargos financeiros sobre a causa, para fins de sua quitação imediata por meio, respectivamente, de despesa primária e despesa financeira. E que seja determinado aos órgãos competentes que façam a mesma segregação em decisões que forem expedidas futuramente.
Também solicita o reconhecimento da urgência e imprevisibilidade do pagamento imediato dos precatórios expedidos e não pagos já informados à União, de modo que o governo possa solicitar ao Congresso Nacional a abertura de créditos extraordinários.
A AGU pede, ainda, que seja afastado o cumprimento de eventual decisão do STF quaisquer limites legais e constitucionais ou condicionantes fiscais, financeiras ou orçamentárias aplicáveis, que determine aos órgãos responsáveis pela execução orçamentária e financeira da União e pela apuração das estatísticas fiscais que se confira às despesas com os encargos incidentes sobre o principal dos precatórios o mesmo tratamento dado aos encargos incidentes sobre os títulos da dívida pública para fins de apuração de metas fiscais.
E, por fim, que a Corte ratifique entendimento que as ações referentes à execução orçamentária e financeira necessárias ao cumprimento da decisão não sejam consideradas violação da meta de resultado primário.