“Vejo com um pouco de preocupação a bateção de cabeça entre Paulo Guedes e Lorenzoni”, diz ex-ministro

Para Clóvis Carvalho, ex-ministro de FHC, o conflito é desejado e não é uma coisa para ser evitada, mas é para ser gerenciado

Lara Rizério

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SÃO PAULO – A busca de consenso parece algo distante depois de um processo eleitoral marcado pelo acirramento e polarização política. Mas, para Clóvis Carvalho, ex-ministro do governo Fernando Henrique Cardoso e que atuou na transição para o governo Lula, a construção de consensos é central não apenas para a gestão pública, mas também para a iniciativa privada. 

Em entrevista ao Podcast da Rio Bravo, Clóvis Carvalho, que agora é diretor-executivo da organização social de cultura Poiesis, fala sobre a importância da construção de pontes neste momento de transição política que o país atravessa e ainda demonstra certa preocupação no atual cenário, principalmente com algumas divergências públicas entre o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, e o futuro ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. 

“Eu vejo com um pouco de preocupação – enquanto cidadão, obviamente, ou como quem observa o processo – a bateção de cabeça do Paulo Guedes e o Lorenzoni, porque não se trata, de novo, de definir a autoridade, quem tem o poder. O poder está bem definido quem tem, é quem tem voto. Essa bateção de cabeça pública é pior ainda do que a bateção de cabeça dentro. Só tem um jeito, que é quem preside e é o objetivo final”.

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Para Clóvis, o conflito é desejado e não é uma coisa para ser evitada, mas é para ser gerenciado. Neste sentido, a liderança é muito importante e esse é outro fator que a conjuntura de hoje pode estar gerando um pouco mais de expectativa e insegurança.

“É que no discurso de quem se elegeu nunca foi claro, não se sabe bem. Qual é o plano? A reforma da Previdência é o quê? Ajuste fiscal é importante? O tamanho do Estado? Tem definições. Paulo Guedes, a gente conhece. O que o Lorenzoni pensa? O que o projeto de governo tem? Vamos conhecer. Por isso é interessante, é talvez uma experiência que eu também nunca tinha vivido, que é essa da expectativa. Agora, precisaria ter menos bateção de cabeça”, afirma.

Confira a entrevista abaixo:

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Rio Bravo: Como aconteceu a sua mudança da iniciativa privada para a gestão pública?

Clóvis Carvalho: Eu sou engenheiro eletrônico da Politécnica, me formei em 1968. Estamos fazendo 50 anos de velhice na Engenharia, mas eu na verdade me considero um bacharel em Engenharia, não um engenheiro, porque tive diploma, mas nunca efetivamente pratiquei qualquer campo da Engenharia propriamente dito.

Mas passei pela administração financeira, fui funcionário de banco, trabalhei em algumas empresas públicas – Metrô, Comgás – e terminei fazendo essa primeira fase num grupo industrial grande, Indústrias Villares, donde fui puxado para trabalhar no governo do Montoro na área de Planejamento – na época, era secretário José Serra –, voltei para Villares, onde fiquei até que Fernando Henrique foi nomeado ministro da Fazenda e eu fui ser secretário-executivo.

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A ideia era dar o apoio executivo ao ministro da Fazenda e, como tal, tive a oportunidade de coordenar as ações do Ministério e, assim, coordenar o grupo que formulou e implantou o Plano Real, a chamada “equipe econômica” na época. Com essas experiências, indo o Fernando Henrique para a Presidência da República, manteve a mesma ideia de levar para a estrutura do governo um polo de coordenação da ação de governo. Ele levou essa função para a Casa Civil, que não necessariamente, tradicionalmente, tem essa função.

Em boa parte da história da Presidência, a Casa Civil faz coordenação política. Fernando Henrique mudou essa visão e ele levou para a Casa Civil a coordenação da ação de governo. Na verdade, era o espaço de oportunidade de gerar consenso e alinhamento dos diversos órgãos e linhas de governos – 20 e não sei quantos Ministérios que existiam na época – na direção do plano de governo que tinha sido bem seriamente desenvolvido.

Tínhamos um livro, que era o “Mãos à obra”, que foi para a campanha, mas que de fato serviu de diretriz básica para o governo. Quer dizer, em paralelo com aquilo que eu aprendi na Engenharia, foi sempre voltado para a gestão, para desenvolvimento das condições de que se realizassem os projetos que se queriam.

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Rio Bravo: Para um leitor da Harvard Business Review até hoje – como o senhor disse antes da entrevista começar –, qual é a importância da construção de consensos nesse processo de gestão?

Clóvis Carvalho: Consenso é o elemento fundamental a ser buscado. Todo processo de gestão, na minha percepção, gira em torno da execução de algo que em grupo, em equipe, independente da formação dela, se define como o futuro a ser criado. Para você ter certeza de que vai avançar, a qualidade da decisão é função da qualidade da implementação. O processo de tomada de decisão condiciona de uma forma muito forte a própria execução, portanto, aquilo que se almeja com fazer coisas, tomar decisões. A qualidade da execução está intimamente ligada à energia que é colocada na tomada de decisão.

Se você toma uma decisão consensual, a energia no processo da execução é muito maior, porque não vai ter desvios ou vetores divergentes que vão levar para outro lugar, então é sempre importante buscar consenso. Mas nem sempre o consenso é viável de ser obtido no tempo que você tem disponível ou com os recursos que você tem disponível para isso, então se você não consegue o consenso ou, na medida em que não consegue o consenso na formação de uma decisão, você busca o consentimento. É mais fraco, mas tem gente que diria: “Olha, se dependesse só de mim eu não faria assim, mas levando em conta que a gente gastou muito tempo, muita energia buscando o alinhamento completo e, na medida em que não viola os meus valores isso que está sendo proposto, OK, eu topo, vamos lá”. É um consentimento numa linha. Na implementação o alinhamento é menor, mas está lá.

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Agora, o fundamental é que se não consegue o consenso, não consegue o consentimento, chama a autoridade, ela decide e vamos em frente, porque o que não pode é essa coisa de ficar rodando em torno do problema sem ter uma decisão. Quanto mais participativa a construção da saída, mais forte e importante a implementação.

Rio Bravo: Mas isso tem a ver com a qualidade do argumento que vai ser lançado nessa estratégia do convencimento, ou não?

Clóvis Carvalho: Não sei se é na qualidade do argumento, é na qualidade da construção conjunta, participada. Precisa ter aí uma coexistência de alguns fatores que são importantes. Num grupo que vai desenvolver ou discutir um problema e caminhar para a tomada de decisão, é fundamental ficar claro quem é a autoridade, aquele que vai dizer “sim, vamos fazer”, “não, não vamos fazer”.

Depois disso precisam estar participando todos aqueles que podem ajudar ou atrapalhar a implementação da decisão ou que se tome uma boa decisão. Quantas vezes a gente não viveu isso? “Temos que resolver esse problema, chama Fulano”. “Ah não, Fulano é contra”. Mais um motivo para estar aqui, que ele seja contra agora, não depois. Precisa por tudo, todo o conhecimento lá e, finalmente, precisa ter informação. O grupo não pode elaborar na ignorância.

Isso tudo ajudou muito na construção do Plano Real. A equipe, que a gente chamava de “equipe econômica”, que formulou o Plano, ela não obedecia a nenhuma hierarquia. Quem estava lá, nós fazíamos reuniões duas vezes por semana, às vezes mais, mas era quem estava lá. Todo mundo que podia ajudar podia trabalhar.

Rio Bravo: Mas quanto tempo duravam essas reuniões, por exemplo?

Clóvis Carvalho: Uma hora e vinte de reunião, dez minutos de intervalo.

Rio Bravo: Essa disciplina?

Clóvis Carvalho: Essa disciplina. E aí sala fechada, não entra ninguém, não entra serviço de café, não entra secretária para deixar recados etc., porque nós tínhamos lá presidente do Banco Central, o ministro da Indústria e Comércio, tinha o presidente do Banco do Brasil, o Jurídico do Banco Central. Não, não se interrompe. Isso em cima do quê?

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Não é da grande imposição de regras. Não, é respeito, que é um valor fundamental. Respeito aos outros. E aí tinha outras regras de funcionamento da reunião. Não se fala junto, não tem discussão dois a dois, a palavra circula pela direita. Todo mundo tem direito de falar e tem direito de ser ouvido, esse é outro ponto chave.

Não basta eu ter direito de falar, mas a turma está conversando lá, não estou sendo ouvido. O coordenador ali não era a autoridade, a autoridade estava no andar de baixo, era o ministro que estava lá. E depois, na Casa Civil, a mesma coisa. A Câmara de Política Econômica foi quem conduziu depois a política econômica, era a área de formação de consenso na área econômica, que juntava todo mundo que estava envolvido nisso daí.

Rio Bravo: A despeito de toda essa abordagem pragmática, o senhor não acredita que a política partidária possa interferir nesse processo?

Clóvis Carvalho: Não, no processo de tomada de decisão, não ou só na medida em que você, no processo de tomada de decisão, traz também os representantes das posições partidárias, e nós tivemos em muitas ocasiões esse tipo de participação na tomada de decisão. Em processos de definição de desestatização, privatização etc. e tal se chamava, inclusive, aqueles que iam conduzir o processo legislativo.

O então deputado Alberto Goldman foi relator da lei do monopólio da Petrobras e depois da constituição da ANP, a Agência Nacional do Petróleo. Muitas vezes participou desse processo interno de discussão para, de novo, a coisa fundamental, alinhar todas as forças, com as participações de todos. Isso um pouco foi a ideia, retomando, do Fernando Henrique na função da Casa Civil, e isso introduziu um dado qualitativo diferente, porque você separa o ambiente do puramente da transação política, absolutamente necessária, legítima, daquela que define o rumo para onde vamos e quais são os passos que vamos dar.

Fernando Henrique era o político, então a coordenação da sala de política e a ação política, na verdade, no caso do Fernando Henrique era essa. Eu vejo com um pouco de preocupação – enquanto cidadão, obviamente, ou como quem observa o processo – bateção de cabeça do Paulo Guedes e o Lorenzoni, porque não se trata, de novo, de definir a autoridade, quem tem o poder. O poder está bem definido quem tem, é quem tem voto. Essa bateção de cabeça pública é pior ainda do que a bateção de cabeça dentro. Só tem um jeito, que é quem preside e é o objetivo final.

Rio Bravo: Existe toda uma literatura ávida por detalhes e revelações sobre os bastidores da política – tem série de TV, enfim, livros que foram publicados a respeito –, mas o fato é que quem está do lado de fora sabe pouco a não ser a partir desses ruídos que vazam ou são revelados pela imprensa. Quando a gente tem esse tipo de trombada do lado de fora, internamente, o clima é ainda pior?

Clóvis Carvalho: Ele é ruim, sempre. Se é pior ou melhor, provavelmente quando vaza é porque dentro já está muito ruim, mas o cuidado é que tem que ser imposto pela autoridade – na verdade, pelo líder, no caso –, que é o cuidado de buscar permanentemente esse consenso.

Vão existir dissensos, obviamente. Conflito é desejado, conflito não é uma coisa para ser evitada. É para ser gerenciado, daí a liderança é muito importante e essa é outra coisa que, digamos, a conjuntura hoje pode estar gerando um pouco mais de expectativa e insegurança.

É que no discurso de quem se elegeu nunca foi claro, não se sabe bem. Qual é o plano? A reforma da Previdência é o quê? Ajuste fiscal é importante? O tamanho do Estado? Tem definições. Paulo Guedes, a gente conhece. O que o Lorenzoni pensa? O que o projeto de governo tem? Vamos conhecer. Por isso é interessante, é talvez uma experiência que eu também nunca tinha vivido, que é essa da expectativa. Agora, precisaria ter menos bateção de cabeça.

Rio Bravo: Nessa dinâmica de construção de consenso, as declarações polêmicas, que são ótimas para a imprensa, atrapalham ainda mais o processo?

Clóvis Carvalho: Claro, não tem dúvida. Criam mais insegurança. E a partir de 1º de janeiro, acho que do que o país precisa é que a sociedade e as forças que na verdade realizam a transformação etc. e tal se sintam seguras com a direção.  

Rio Bravo: Mas internamente essa insegurança também aumenta com essas declarações polêmicas?

Clóvis Carvalho: Com certeza. “Para onde vamos, companheiro?” Olha um do lado do outro e se pergunta isso.

Rio Bravo: Dentro desse processo de transição, quais seriam boas práticas que, na sua avaliação, poderiam ser estabelecidas como pedra fundamental?

Clóvis Carvalho: O teor inerente numa equipe, num grupo, de confiança mútua e respeito mútuo define efetivamente a energia que é capaz de ser gerada para levar para a frente.

No campo político, está se falando, essencialmente, de uma disputa de poder. Se não se desenvolvem os mecanismos de viver um ambiente – porque isso se desenvolve, isso não cai do céu – de confiança e de respeito entre o conjunto das pessoas ou dos fatores que estão lá, é muito difícil avançar.

Quer dizer, a energia vai sendo jogada fora. Que é que consegue impulsionar nessa direção? Uma liderança com a clareza dos valores, número 1, e 2, do objetivo, ou seja, a visão de futuro, “onde que nós vamos, companheiro?”. E aí a delegação, que é fundamental, se dá de uma forma muito clara. Eu acho que o êxito, que eu considero numa gestão exitosa do Fernando Henrique, com os problemas que sempre existem, vem muito disso, uma liderança com clareza de rumo.

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Lara Rizério

Editora de mercados do InfoMoney, cobre temas que vão desde o mercado de ações ao ambiente econômico nacional e internacional, além de ficar bem de olho nos desdobramentos políticos e em seus efeitos para os investidores.